
Nas suas Meditações, Descartes propõe uma reflexão sobre a realidade, a sua consistência e validade, na sua relação e na sua oposição com o mundo dos sonhos. A experiência onírica apresenta características que, se numa primeira aproximação seriam totalmente diversas das da vigília, numa análise mais aprofundada quedariam expostas as suas congruências e semelhanças.
"Neste momento, parece-me que os olhos com que olho este papel, e esta cabeça que movo, não estão adormecidos; que é com um desígnio e com um propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que acontece no sono não parece tão claro nem tão distinto como tudo isto. Mas, pensando nisso cuidadosamente, lembro-me de ter sido frequentemente enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões"... A conclusão a que chega o francês, pelo menos nesta fase, é que não há uma linha exata e inequívoca que nos permita separar com certeza apodítica as duas vivências. As experiências que tenho quando estou a sonhar são indistintas, na sua qualidade e natureza, das experiências que sofro quando acordado. Esta é, aliás, a justificação para a existência dos pesadelos: estivesse eu seguro de que se tratava somente de efeitos e de ruídos no meu cérebro, dormiria na paz dos anjos.
A dúvida cartesiana é de cariz filosófico. Na sua base encontra-se a questão central do fundamento para o conhecimento: onde e como sustentar a verdade epistemológica. Não se trata de uma pergunta de romancista. O situacionismo do romancista, a sua âncora, reside na destrinça exata entre o que é a realidade do mundo e a realidade do livro. É por estar bem estabelecida a rutura entre obra e vida que o bom escritor de romances tem o desejo de conseguir apagar da mente do leitor o sentido do tempo e, através dele, da realidade. É no momento desse desperdício, ou seja, da desatenção para com as coisas do mundo, que o leitor submerge na obra, enfrentando as personagens e o enredo, não como res extensa, mas como realidade espiritual alternativa. Esta duplicidade permanece, embora de forma inconsciente, na mente do leitor a cada instante, a cada frase e a cada página, ficando ao seu alcance imediato abandonar a leitura e, em certos casos, saltar entre os dois universos, o pragmático e o contemplativo, à medida das necessidades do momento e ao ritmo estético individual.
Não causa qualquer tipo de estranheza a possibilidade de durante a leitura de O Estrangeiro, o sujeito embrenhado nas tribulações do Sr. Meursault, ser incomodado pela informação de que o seu autor, o Sr. Camus, morrera num acidente de viação em 1960, abandonando a página em questão e dando-se completo e completamente aos novos dados do real.
Esta tese aguenta o permanente desafio da realidade, a teimosia dos factos (como alguém lhe chamou) enquanto houver um disjuntor, uma disjunção exclusiva, entre os dois mundos, o da leitura e o da não-leitura. A partir do momento em que a primeira para, a segunda toma conta da biologia, e todas as funções e reações químicas e físicas, o modo de alerta, ou pelo menos o modo de vigilância, assume as rédeas, assumindo os objetos e os indivíduos o seu fardo quotidiano.
Mas que dizer quando existe uma transposição, uma violação, de um dos lados da fronteira? Não seria uma mistura dos dois planos – tal representaria um escolho à ideia aqui defendida – mas uma intrusão de uma protuberância momentânea, no caso, a distopia de um personagem romanesco na profanidade da existência concreta. Por uma estranha fenomenologia, o sacerdote da obra O Poder e a Glória de Graham Greene, viu-se transportado para a piedade de uma muito real crente mexicana, ao ponto de se imiscuir nas suas orações. Face às dificuldades e desventuras, ao culminante fuzilamento, a figura do padre perseguido conseguiu de alguma misteriosa forma, forçar a entrada na mente e no espírito de um ser humano de carne e osso a um nível de proximidade apenas concedido a um ser íntimo ou a um familiar próximo. A senhora em causa, deu por ela a rezar numa eucaristia pela alma – que mais podia ser? – do desafortunado personagem clerical.
Esta obra de 1940, retrata a existência exasperada e as experiências fugitivas de um padre – supostamente o último no Estado de Tabasco – durante as perseguições católicas dos anos 20 e 30 do século passado no México. Vítima das investidas por parte das autoridades militares e policiais, mas também vítima dos seus próprios pecados e falhas, o padre – que se mantém anónimo durante todo o romance – enfrenta a prisão, a fome, o vício, o cansaço, a traição, o desprezo da filha (ilegítima) e, finalmente, conforme dissemos, o pelotão de fuzilamento.
Esta insólita ocorrência parece-me uma das mais belas homenagens a uma obra de arte e ao seu autor. Se a importância de um romance se medir pela influência que tem nos seus leitores, da forma e intensidade com que se reveste na sua vida, estamos perante um achado histórico. A arte e a literatura como vivência duplicada, uma segunda pele que emerge num instante e espontaneamente, irrompendo a consciência como uma erupção vulcânica, é um diapasão mais do que confiável para aferir a dimensão da criação artística.
Os mais desconfiados dirão, talvez, que não será o único critério para aferir o valor de uma peça. As implicações filosóficas, sociais e políticas, e o domínio técnico e expressivo, têm o seu peso. Posso concordar. Apontarão que para certos espíritos mais simples, uma fraca obra de arte servirá o tão pouco exigente apetite e, inclusivamente, também serão possíveis semelhantes epifenómenos. Nada direi em contrário. Seria, em princípio, o que Stuart Mill denominou prazeres inferiores. Acredito, porém, que caberá ao crítico – se este tiver alguma função útil – apreciar caso a caso e proferir o seu veredito. Outros críticos, os criadores e, porque não, os leitores, se conformarão ou revogarão a sentença. O juízo é uma arma e o gosto um projétil. Estou em crer que alguns acertarão no alvo.
Professor e formador nas áreas de Filosofia, Psicologia, Sociologia, Turismo, História e Política