Entrevista originalmente publicada a 29 de julho de 2017

Conta a sua história e as histórias do país que documenta desde os 12 anos, quando tomou de empréstimo uma máquina de plástico do irmão. Quis ser fotojornalista para mudar o mundo e denunciar as injustiças sociais. Numa época em que ser fotógrafo de jornais era tantas vezes ser um mero ‘bate-chapas’ do sistema, arriscou ir além e revelar bem mais do que o regime de Salazar queria. Aquele que já foi considerado o fotógrafo do povo e da revolução faz agora contas à vida, à doença e à solidão.

O que o leva, aos 82 anos, a sair todos os dias de casa com a máquina fotográfica ao ombro?
Um fotojornalista deve estar todos os dias atento ao mundo que o rodeia. Ando sempre com uma máquina, porque há sempre qualquer coisa que me sensibiliza, justa ou injusta, e eu disparo.

Começou a fotografar aos 12 anos com uma máquina fotográfica de plástico do seu irmão. Mas o seu pai tinha outros sonhos para si.
Nessa altura tinha parado os estudos na quarta classe, o meu pai não me deixou ir para o liceu. Eu queria saber mais. Mas ele disse-me “tu vais para a fábrica de loiça porque aí é que está o teu futuro”. Então eu fui muito triste trabalhar para a fábrica de loiça de Sacavém. Comecei como paquete. Andava de secção em secção, o que foi ótimo, porque convivi intensamente com os operários e com grandes artistas, pintores e escultores, que gostaram de mim e deixavam-me lá estar a vê-los a desenhar.

Na verdade estava lá contrariado...
Sim, mas passado pouco tempo comecei a sentir-me como peixe na água. Até porque andava sempre acompanhado da tal máquina de plástico do meu irmão, uma Kodak Baby, que ainda tenho comigo.

Essa máquina era mais do que um brinquedo. O que o atraía tanto nela?
Pensava que poderia virar o mundo do avesso com as minhas fotografias. E desde aí nunca mais parei de querer denunciar as injustiças.

Com a famosa fotografia da velha mulher da Nazaré a puxar uma rede. Esta fotografia valeu-lhe inúmeros prémios e dois meses na prisão de Caxias
Com a famosa fotografia da velha mulher da Nazaré a puxar uma rede. Esta fotografia valeu-lhe inúmeros prémios e dois meses na prisão de Caxias Expresso

Começou por fotografar o quê?

A saída dos operários da fábrica de loiça, por aí. Recordo-me de ficar muito chocado por alguns operários andarem descalços. Viviam-se os anos 50. Havia muita pobreza.

O seu pai era dono de uma casa de pasto.
Sim, a Casa do Bacalhau, onde se servia bom bacalhau, o que atraía pessoas de longe. De manhã vinham os operários entregar uma marmita para a minha mãe aquecer. A minha mãe cozinhava e o meu pai aviava. Trabalhavam muito e como tinham mais dois filhos, não tinham muito tempo para mim. Eu era uma criança que andava ao colo dos operários.

Fotografava-os nas horas livres?
Não só. Na fábrica havia um homem que gostava de mim, o escultor Armando Mesquita. Às tantas disse-me: “Tu tens jeito, mas não percebes nada de composição. Vem ter ao meu ateliê e vamos conversar.” E assim fiz. Ele deu-me aulas de arte e de composição. Desenhou um retângulo cheio de quadradinhos e disse-me: “Isto é a regra de ouro. Portanto deves pôr o motivo principal aqui, à direita, olha que os olhos fogem sempre para a direita.”

E ele nem era fotógrafo...

Mas era um homem de grande cultura. Tinha andado em Belas Artes e sabia muito sobre arte. Deu-me as instruções certas para que, além de conteúdo, as minhas fotografias passassem a ter forma. E disse-me ainda: “Com essa máquina não vais a lado nenhum.”

É quando passa a usar máquinas emprestadas?
Sim, andava sempre a tentar saber quem é que em Sacavém tinha máquinas boas e pedia-as emprestadas. Mais tarde o Armando Mesquita voltou a dizer-me que era uma vergonha andar com máquinas emprestadas e que ia falar com o meu pai. Como a fábrica onde eu trabalhava era mesmo em frente do estabelecimento do meu pai, ele aparece um dia à hora do almoço e disse à frente dos operários todos que lá estavam: “Ó senhor Gageiro preciso de falar consigo. Não tem vergonha de o rapaz andar por aí a fotografar com máquinas emprestadas. Veja lá se lhe compra uma máquina.” O meu pai ficou envergonhado.

E chegou a comprar-lhe uma máquina?
Primeiro fui ver os preços ao JC Alvarez, que era o sítio onde costumava comprar os rolos fotográficos. Mostraram-me duas: Uma Rolleyflex e uma Rolleycord. O senhor Amadeu Ferrari, um dos donos, disse-me que a Rolleycord era metade do preço da outra. A diferença é que uma tinha uma objetiva um bocadinho melhor e célula fotoelétrica. Mas ele disse-me que não precisava daquilo. E desenhou-me uma escala em papel com a fórmula das velocidades e das aberturas de acordo com a luz e o rolo. E assim pude prescindir da célula fotoelétrica. E ainda me disse: “Levas a máquina e pergunta ao teu pai como é que quer pagar isto.” E eu espantado: “Mas eu posso levar já a máquina?” Ainda agora me comovo com a atitude dele. Tinha 15 anos na altura e eles já tinham confiança em mim e deram-me a máquina antes de a ter pago.

Era o tempo em que se dava valor à palavra...
É isso. E fui pagando aos poucos com o dinheiro do meu ordenado, que era miserável. Por uma questão de agradecimento estreei a máquina com o senhor Armando Mesquita (escultor), fiz-lhe vários retratos. Ele fumava cachimbo e eu já sabia que o fumo é muito fotogénico. Retratei também uns tios meus que vinham de África, de dois em dois anos e que me levavam a passear por Portugal. Recordo-me de uma fotografia que lhes fiz no Convento de Cristo, vejo uma luz muito bonita que entrava lá por uma janela e encenei a foto (é o termo). Então ponho a minha prima no raio de luz. É uma fotografia pirosa, digo-lhe já. E com essas imagens inscrevo-me no concurso dos empregados de escritório do distrito de Lisboa. Foi o primeiro concurso a que concorri na minha vida. Acontece que ganhei logo três primeiros prémios e dois segundos.

Foi difícil chegar aos jornais?
Dificílimo. Havia só quatro ou cinco fotógrafos que dominavam os jornais e trocavam fotografias entre si: “Ó fulano não foste fazer aquela conferência de imprensa. Manda-me aquele ‘boneco’ do sítio onde eu não estive que eu troco por aquela onde tu não estiveste”... Havia um lóbi fortíssimo.

Quer dizer que não se dava qualquer valor à assinatura da fotografia...
Só muitos anos mais tarde, em “O Século Ilustrado”, é que eu impus isso. Mas tudo acontece porque um dia participei num jantar com os craques redatores dos vários jornais. Na época eu já colaborava para a publicação “Vida Ribatejana”. Nessa noite manifestei interesse em colaborar num jornal nacional. O Jorge Tavares Rodrigues, diretor do “Diário Ilustrado” simpaticamente disse: “Apareça lá e leve umas fotografias para eu ver.” Eu fui lá com umas fotografias, ele gostou e disse-me: “Se quiser pode vir amanhã.” Então, de repente, lá estava eu sentado numa secretária. Às tantas apareceu um tipo chamado João que me pergunta: “Quem és tu?” Fiquei assustado. Ele apresentou-se e disse que quem mandava na fotografia era ele e que tinha que ir para o laboratório revelar as fotografias dos outros fotógrafos. E lá fui eu muito triste para o laboratório relevar as fotografias deles, que eram sempre a mesma coisa.

Podemos dizer que na época os fotógrafos dos jornais eram meros bate-chapas alinhados com o sistema?
Sim. Eram maus fotógrafos. A malta do laboratório apoiava-me. Era gente a sério. Diziam-me para ter calma, que aqueles malandros eram uma máfia. E que ia chegar a minha hora.

Como consegue furar o sistema?
Um dia ligam para o laboratório e mandam chamar-me: “Ouve lá, vem à redação e traz a máquina.” Estranhei. O que teria acontecido? Levei a máquina e estava lá um dos colaboradores do suplemento literário. Naquele dia tinham falhado todos os fotógrafos. Estavam em serviço. Era necessário fotografar o [escritor e pintor] Mário Dionísio e não havia quem o retratasse. E lá vou eu muito nervoso por ser o meu primeiro trabalho. Nessa altura as entrevistas eram feitas de forma básica só com o entrevistado a gesticular enquanto falava. Eu fiz umas fotografias interessantes com ele a fumar cachimbo. Esmerei-me, claro. E fui chamado imediatamente ao diretor. Fui elogiado e ficou decidido que a partir daquele momento ficaria responsável pelas fotografias do “Suplemento Literário”.

Tinha valido a pena o investimento na máquina fotográfica...
Tive que fugir de casa porque o meu pai queria-me bater, pois achava que tinha destruído a minha vida ao decidir ser fotógrafo. Recordo uma frase da minha mãe que me comove: “Ó filho, mas tu não tens necessidade de ser fotógrafo.” Como quem diz “tens aqui um escritório, tens de comer e beber e vais para fotógrafo?”

Quais eram a suas referências fotográficas nessa época?
Fundamentalmente, Henri Cartier-Bresson. Atraía-me nele o conteúdo e a forma. O saber olhar. Ah! E a revista “Life”, onde ia beber muitos dos grandes trabalhos de fotografia que se faziam no mundo. Mandava vir uma revista da Argentina onde havia grandes fotógrafos.

Entretanto, as suas fotografias começam a ser notadas nos jornais e publica vários livros como o emblemático “Gente”, em 68, com textos de José Cardoso Pires.
Quando fiz o “Gente”, falei com o Zé [Cardoso Pires], meu velho amigo que me ajudou muito e comecei a preparar-me para ser preso porque aquilo era muito violento. As fotografias foram escolhidas pelos dois. Ele ensinou-me como se devia fazer um livro, que não devia ser apenas fotografias contínuas. Que devia ter um texto para as pessoas pararem de vez em quando. Todos os meus livros têm princípio, meio e fim. E acabam em força. E assim continuei a concorrer a concursos e a ganhar prémios. A dado momento, um certo grupo de fotógrafos dos jornais começou a dizer sobre mim: “Esse gajo ganha prémios com imagens de miúdos ranhosos.”

Essa crítica que lhe faziam era porque retratava o Portugal nos tempos de Salazar?
Nunca fotografei miúdos ranhosos. Houve de facto fotografias marcantes de que eles não gostavam. Como o rosto de uma menina que eu fotografei à beira da estrada em Trás-os-Montes, num dia de neblina. Esta miúda, a Elsa, tinha uns olhos tristes e vestia pobremente. Eu estava a passar de carro, um Volkswagen carocha, e parei imediatamente. Foquei-lhe os olhos e fotografei. A fotografia dessa menina foi publicada em “O Século Ilustrado”. Entretanto, recebemos a carta de uma senhora de apelido Mendia que vivia em Luanda, Angola. Tinha ficado impressionada com a menina e queria ajudá-la. Nós não sabíamos o seu contacto, mas o jornalista com quem eu tinha feito a reportagem escreveu para os padres da região. Eles descobriram o paradeiro da menina. Ela vivia com muitas dificuldades numa casa de pedra, tinha uma série de irmãos e depois de chegarem a acordo com a família, a dita senhora levou-a para Luanda para a ajudar, colocou-a num liceu e ela estudou. Mas o que é giro é que ela acabou por casar com o filho dessa senhora.

Uma das suas fotografias levou inclusive a que fosse preso...
É verdade. Fotografei uma velha mulher da Nazaré a puxar as redes do mar. Fiquei chocado, revoltado com aquela imagem. Que país é este que permite que uma senhora com 80 anos ainda continue a ter necessidade de continuar a puxar a rede para que lhe deem os peixes para se alimentar? Então fotografei-a, mandei essa fotografia para vários países e ganhava sempre medalha de ouro.

Essa fotografia representa bem um certo tempo, um certo Portugal.
Quando estava em “O Século Ilustrado” corri Portugal em reportagem, fui do Alentejo a Trás-os-Montes — foi quando conheci a Elsa — e fiquei doente com o que fui vendo, como era possível haver pessoas ainda assim [tão pobres]?

Foi com essa imagem da senhora da Nazaré que ganhou mais prémios, mais de 300. Mas a PIDE não apreciou que retratasse o país dessa maneira.
Já tinha ganho com ela mais de 10 medalhas de ouro quando fui preso. Estávamos já nos anos 70, no poder estava Marcello Caetano, eu tinha uma filha pequena e um dia chegam pelas seis da manhã a minha casa dois pides. Perguntei-lhes: “O que é que se passa?” Responderam-me laconicamente: “Venha connosco.” E então fui para a rua António Maria Cardoso [sede da PIDE] e levaram-me para o estúdio para ser fotografado. Eles tinham um truque, ovo de Colombo, que era pôr uma luz debaixo das pessoas que as fazia parecer uns fantasmas. Ficam todas com cara de assassinos. Eu disse ao fotógrafo que lá estava: “É pá, tira-me esta luz daqui debaixo porque eu não sou nenhum assassino.” E até fiquei bem na fotografia.

Mas estava com medo, imagino.
Naquela época a PIDE torturava e as temporadas na prisão podiam durar indefinidamente... Aparentemente estava calmo, mas cá por dentro estava cheio de medo. Sabia que iria estar ali o tempo que lhes apetecesse. E lá fui eu para Caxias onde fiquei numa cela com grades em duplicado. Aquilo é chocante porque uma pessoa começa a olhar para as grades e vê ao longe os guardas. Entretanto deixei de olhar para as grades, comecei a olhar para a parede porque não as conseguia encarar. Passado um tempo um tipo está quase doido.

Tinham-no levado para a prisão sob que acusação?
Nessa altura não sabia. Aquilo era para estar lá até lhes apetecer. Julgo que lá fiquei dois meses.

Durante essa temporada não foi torturado?
Não. A tortura psicológica era por exemplo acenderem as luzes todas da cela à cinco da manhã, um tipo acordava sobressaltado, pergunta o que se passa e eles respondiam: “É só para ver se você está bem de saúde.” Tudo isto não mata, mas mói...

Foram os seus colegas, os fotógrafos correspondentes de outros países, que o ajudaram a sair da prisão, não foi?
Exatamente. Eu colaborava com a Associated Press (AP). As imagens de todas das manifestações de estudantes e cargas policiais eram feitas por mim. A minha sorte é que o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, fazia de vez em quando um almoço com os correspondentes da imprensa estrangeira para mostrar que já não vivíamos num Portugal salazarista. E então o responsável pela AP combinou com os colegas das várias agências para perguntarem o que acontecera ao Gageiro que estava preso pela PIDE. E ele não sabia o que dizer, obviamente.

Da mesma maneira que foi preso foi libertado. Sem grandes explicações?
Um dia fui chamado para a PIDE. E fui interrogado pelo Mortágua que era um tipo sinistro, fazem-me milhentas perguntas, insistem que sou eu que envio as fotografias lá para fora, eu digo que é falso. E que envio fotografias para concursos de países de Leste, o que é verdade, mas também envio para outros locais. Chegaram a perguntar-me: “Porque é que você só fotografa pessoas humildes e não fotografa paisagens? Nós temos paisagens tão bonitas.” E eu respondi-lhes: “Mas eu não gosto de fotografar paisagens. Eu gosto de fotografar pessoas. Os rostos das pessoas.”

Deu-lhes a volta?
A verdade é que eu tinha ido para lá de manhã e ao fim da tarde apareceu um tipo com uma máquina de barbear porque eu tinha a barba desleixada. “Para que é isso?”, perguntei. “É para você se barbear porque nós não queremos que você saia de cá com mau aspeto.” Perguntei-lhes se ia sair. E eles: “Vai. Você é um homem cheio de sorte. Mas qualquer dia vamos encontrá-lo outra vez.” Fiquei traumatizado. Durante anos não mandei fotografias para lado nenhum.

A PIDE tinha-o debaixo de olho. Nunca o apanhou em flagrante?
A PIDE desconfiava, mas eu enganava-os. Fazia três fotografias, tirava o rolo e punha um rolo novo. Quando era apanhado a fotografar numa manifestação dava-lhes o rolo virgem. Era um truque que funcionava sempre.

Nas suas fotografias parece que é bafejado pela sorte e por um apurado sentido de previsão. As célebres fotografias de Maria, a governanta de Salazar, a dar-lhe o último beijo de despedida são exemplo disso...
Os meus colegas redatores que gostavam de mim diziam: “Tu tens um sexto sentido.” Eu concentrava-me a 100% naquilo que estava a fazer e tentava perceber o que ia acontecer a seguir. As fotografias que fiz da Maria a despedir-se do Salazar partiram de uma reflexão. Eles têm que fechar a urna, a Maria está aqui, e vamos lá a ver o que vai acontecer... Havia um cordão de tipos da PIDE, não me podia aproximar da urna. Sempre atento pergunto a que horas iam fechá-la. Fiquei a saber que era perto da uma da manhã. Mas nunca arredei pé. Só fui comprar uma sandes e regressei logo. Acontece que perto da urna começa a haver um certo movimento. Eu mantinha-me a cinco metros, senão corriam logo comigo. Estava muito atento à Maria e quando pressinto que vão fechar o caixão e ela se levanta, dou cinco ou seis passos, aproximo-me e pás! pás! pás! Ela levanta o lenço de cima do rosto [de Salazar] e dá-lhe um beijo.

Essas fotografias ficaram na história.
Essas fotografias não chegaram a ser publicadas na imprensa. Foram cortadas claro [pela censura]. Mas eu guardei os negativos e foram publicadas mais tarde num livro meu, “Olhares”. Aquele beijo da Maria tem muito simbolismo. É o fim de um homem que acabou de uma maneira muito triste e degradante.

Uma das suas glórias enquanto fotojornalista foi ter sido o único fotógrafo do mundo a fotografar os terroristas que sequestraram os atletas israelitas da aldeia olímpica nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Como é que conseguiu?
Nessa manhã estavam centenas de jornalistas à porta da aldeia olímpica que não podiam entrar. Eles foram desistindo, mas eu permaneci à porta. Sou muito teimoso.

Foi essa teimosia que o ajudou?
Sim. Nesse dia, fiquei desde manhã até às dez da noite cheio de fome, porque não sabia o que ia acontecer. Os meus colegas já tinham desistido. E, às tantas, vejo um grupo de atletas a entrar com um blusão azul, semelhante ao meu, e um saco do género que eu levava. Mas o grande truque foi ter reparado que o meu crachá tinha uma letra a mais do que o deles. Então tapo a letra com um dedo e entro com esse grupo de atletas. E de repente vejo-me no meio de polícias, uns com carabinas com miras telescópicas, parecia um filme americano. Correram comigo dali. A minha sorte é que a delegação portuguesa estava num 16º andar. No meio daquilo tudo subi as escadas até o 16º andar — o elevador estava avariado — e quando chego lá acima pus a mão à frente e pedi para apagarem as luzes todas pois queria ir para a varanda. Fui para a varanda e entretanto chegam os autocarros com os reféns e os chamados terroristas. Eu apoio os cotovelos em cima da varanda e, com uma objetiva de 85mm, fotografo com uma velocidade muito lenta, sem flash, em plena noite cerrada. Só tinha a luz dos autocarros e dos helicópteros. Faço várias fotografias e entreguei o rolo ao atleta da luta greco-romana que vinha nessa noite para Portugal. E falei lá para a delegação: “Não sei o que é que tenho, mas puxem muito pelo rolo porque isto foi feito quase às escuras.”

Não teve medo?
Não estou aqui armado em herói mas nessas alturas o medo desaparece. É como no 25 de Abril.

Foi à custa de muito jogo de cintura que conseguiu chegar à linha da frente no dia da Revolução...
No 25 de Abril acordaram-me por volta das seis da manhã para me dizer: “Vai para o Terreiro do Paço porque hoje é que é. Traz os rolos todos.” Fui para lá e todas as entradas para o Terreiro do Paço estavam bloqueadas por soldados. E assim como uma grande lata, disse ao soldado: “Olhe, se faz favor, leve-me ao comandante porque sou amigo dele.”

O comandante era Salgueiro Maia.
Eu não sabia quem era. Nem era amigo dele. O soldado, muito simpático, disse ao colega para me levar ao comandante. Levaram-me e eu apresentei-me: “Eduardo Gageiro, de ‘O Século Ilustrado’.” E o Salgueiro Maia respondeu: “Eu sei quem você é. Conheço muito bem o seu trabalho. Eu compro ‘O Século Ilustrado’. Pode andar comigo.” Nesse dia andei sempre com ele. Os meus colegas estavam todos na rua do Arsenal e só de vez em quando desciam ao Terreiro do Paço. Quando houve as negociações do lado da Ribeira das Naus, havia ordens para disparar e tudo. E a malta estava toda a cortar-se. Mas eu dou a minha palavra de honra que não estava com medo.

Nesse dia assistiu a quê?
A todas as negociações do Pato Anselmo. Do lado de cá era o Salgueiro Maia, do lado de lá era o Pato Anselmo. Antes estive atrás dos chaimites e ouvi por três vezes “fogo”. Mas eles não dispararam. Mas deixei-me ficar ali. Foi dito ao Pato Anselmo: “O senhor coronel ou se rende ou adere ao movimento.” E o tipo responde: “Não me rendo, nem adiro ao movimento. Se quiserem prendam-me.” E eu tenho essa cena toda. E sob a minha palavra de honra que o Pato Anselmo me diz o seguinte: “Gageiro, se me tiras uma foto, eu mato-te.” Ele não estava armado, sequer. Mas eu fotografei, claro. Acompanho esse movimento e faço aquela célebre fotografia do Salgueiro Maia...

E o Eduardo Gageiro emocionou-se nesse dia ou estava demasiado ocupado a fotografar?
Senti-me comovido, mas não chorei. Estava feliz. Com a expectativa de que tudo ia mudar. Depois de a Cavalaria 7 aderir ao movimento vieram-me as lágrimas aos olhos.

Isso é avassalador, não é?
Nem calcula...

Ainda sobre esse dia, as fotos que tirou foram recentemente notícia porque houve um desentendimento com o fotógrafo Alfredo Cunha. O que é que se passou?
Esse episódio está em segredo de justiça. A única coisa que posso dizer é que esse fotógrafo foi-me pedir para entrar em “O Século Ilustrado”, e eu arranjei maneira de ele começar lá a colaborar. Vi-o sempre como um filho.

José Caria

Consta que foram os únicos fotógrafos que estiveram mais perto das ações militares no dia da revolução.
Não só. Houve mais. Há situações em que eu acho que ele não estava lá. É apenas isso. O que é certo é que há coisas (negativos meus) que desapareceram. Durante anos pedi-lhe para trazer as cópias de contacto do 25 de Abril para nós conferirmos. A última carta escrevia-a na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) para nos juntarmos para uma conferência...

Para compararem os negativos. Tinha a dúvida de ter havido uma troca de negativos...
Pois. E a resposta dele foi um processo. Eu tinha ido à SPA para resolver tudo pacificamente. Não quero mais falar nisso. Ele fez um processo e eu fiz outro.

Ficou uma mágoa depois deste episódio?
Profunda. Eu era amigo [dele]. E é como cuspir no prato da sopa que lhe dão. Não houve muita lisura no comportamento, para não usar outros termos mais violentos. Nunca imaginei que existissem pessoas capazes de fazer certas coisas. Não quero alongar-me.

O caso ainda não foi resolvido em tribunal.
Ainda não. Ainda está a ser resolvido. E vamos ver quem é que tem razão.

Há quem diga que tem um certo mau feitio. Revê-se nesse retrato?
Revejo. Tenho mau feitio para as pessoas que são injustas, que são más, que são capazes de pisar toda a gente.

De todo o seu percurso qual foi a fotografia ou o momento que mais lhe custou não ter feito?
Sem presunção nenhuma, não me lembro. Coisas que gostava de ter fotografado? Olha, o Salazar a cair da cadeira por exemplo (risos). Mas tenho uma fotografia do Salazar que me parece boa que é ele de costas no Forte de São Julião da Barra. É um homem só.

Essa fotografia faz parte do seu livro “Silêncios”, um livro que decidiu fazer há nove anos como uma despedida, não foi?
Eu tenho um linfoma, nessa altura estava muito mal e achava que ia morrer. Andava no IPO. Lembrei-me de fazer um livro a sépia, uma espécie de despedida. E então andei a procurar fotografias que dessem solidão, que dessem tristeza.

Que era como se sentia...
Sim. O meu estado de espírito conduzia-me a fazer aquele livro. Senti que ia morrer, que não ia poder fazer mais nada.

É nessas alturas que se fazem contas à vida...
Senti-me só. E então acontece que comecei a fazer um livro, como me ensinou o Cardoso Pires, a contar uma história. Aquilo ia num crescendo e acabava na morte. A penúltima fotografia foi feita num cemitério no Alentejo com a terra lavrada. A última foto era uma senhora vestida de preto num muro branco com uma armação em ferro. Era o fim.

Porque é que no seu livro de despedida decidiu incluir uma imagem de Salazar?
Porque ele era um homem só. E eu também era um homem só nessa altura.

E aí tinha um ponto de encontro com ele.
Sim. Entretanto faço um tratamento de choque, quase não podia andar, caía. O livro estava quase na impressão. E faço uma TAC, começando a pensar que vou morrer. Telefonou-me a minha filha, que é diretora técnica de um laboratório farmacêutico e tem muitas amigas no IPO, e diz-me muito alegre: “Parabéns, a TAC não acusou nada e tu já te escapaste. Não vais morrer já.” Nessa altura decidi mudar o fim do livro. Passei a incluir uma nova fotografia, que é um caminho, no Alentejo, e outra ilustra um muro com umas escadas para o céu.

Agarrou-se a quê nesta altura, à fé, à religião, à família?
Eu acredito na ciência. Pensei na morte como uma coisa natural. Não pedi a ninguém transcendente para me salvar. Aceitei a morte.

A sua eternidade está nos seus retratos?
Modéstia à parte, as minhas fotografias contribuíram para que as pessoas conhecessem o verdadeiro Portugal. Nesse aspeto sinto-me feliz, pois ajudei a denunciar aquilo que me parecia errado. E continuarei até morrer.

Célebres ficaram também os seus retratos às figuras ilustres de uma época. Amália, Eusébio, José Régio, Sophia de Mello Breyner, Maria João Pires, marechal Spínola, Ramalho Eanes, Gina Lollobrigida, Orson Welles, entre tantos outros. Dentre todas, qual a figura que mais o surpreendeu pela negativa?
O antigo Presidente da República, Cavaco Silva. Na altura, ele era primeiro-ministro. É uma pessoa fria. Foi preciso retratá-lo para uma capa que ilustrasse uma entrevista feita por Joaquim Letria. Eu falo com os assessores, escolho uma carpete que estava pendurada. Ele sai da entrevista, muito tenso. Eu começo a falar com ele, a contar-lhe histórias para ver se ele se descontraía. E digo-lhe: “Não sei se o senhor primeiro-ministro conhece a história detrás da melhor fotografia do Churchill, feita por um grande fotógrafo, o Yousuf Karsh. Churchill estava a posar com um charuto sempre com a pose igual. E ele chegou ao pé dele, disse ‘com licença’ tirou-lhe subitamente o charuto da mão e fotografa-o de seguida. E capta-lhe uma expressão fantástica. E é a grande fotografia do Churchill, para mim a melhor de todas. Contei isto a Cavaco Silva, que me respondeu: ‘Eu não sou o Churchill, não fumo charuto e quero ir almoçar’.” Acabou a sessão!

Foi o primeiro fotógrafo português a vencer um dos prémios do World Press Photo, em 1975, com um retrato do marechal Spínola. Esse foi o seu prémio mais importante?
Sim. Porque a partir dessa altura aqueles amigos, entre aspas, que diziam que eu só fotografava meninos ranhosos, não tiveram mais argumentos para dizer mais coisas.

Uma coisa são as insígnias e os prémios outra é o pão, o dinheiro. Foi sempre reconhecido e remunerado pelo seu trabalho como esperava?
Não. Nunca. A minha sorte é que na altura de “O Século Ilustrado” colaborava com [a brasileira] “Manchete”, com a Associated Press, com uma revista italiana chamada “Época”, cheguei a publicar fotografias na “Paris Match” e estive na revista “Sábado”. Pela primeira vez na vida ganhei dinheiro que se via. Ganhava 300 contos em 1980, era o editor fotográfico. Foi graças a esse dinheiro que consegui fazer uma casa aqui nos arredores. Mas depois desses anos e de me reformar fui à caixa de reforma dos jornalistas e vi que ninguém tinha pago nada à Caixa [em meu nome]. E hoje tenho uma reforma de 420 euros.

Como é que vive?
Vivo vendendo fotografias e livros. Edito os meus próprios livros para ter o máximo de qualidade que os outros não têm. Vivo razoavelmente. A casa onde vivo é minha e tenho um carro com 13 anos. Nunca fui um tipo de grandes luxos.

Um dos seus últimos trabalhos de fotojornalismo foi com Fidel.
Sim. Uma grande ambição minha era fotografar o Fidel. E proporcionou-se uma passagem dele por Lisboa quando ia para Cuba, ele foi à Embaixada e eu dirigi-me também lá para tentar falar com ele para combinar ir a Cuba retratá-lo. Ele foi muito simpático e disse: “Até me vais tirar fotografias para o bilhete de identidade.” Já lhe vou mostrar as fotografias que tenho aqui no bolso, porque há pessoas que não acreditam.

Anda com essas fotografias no bolso?
Ando. Porque uma vez quando contava esta história, uma pessoa quase que me chamou aldrabão. E eu como não admito isso passei a andar com as fotografias no bolso [abre a carteira e mostra uma fotografia a preto e branco em que abraça Fidel Castro].

Este momento foi como que outra medalha para si?
Sim. Mas então lá fui eu entusiasmadíssimo para Cuba. Credenciei-me e entrei em contacto com o gabinete dele. Iam-me dizendo que nunca era oportuno, mas iam-me convidando para todos os acontecimentos. Logo no primeiro, consegui chegar à fala com ele, que me disse que sim senhor que iríamos combinar esse retrato. Num desses acontecimentos consegui pôr-me nas costas dele, que é proibido, e tenho uma boa fotografia em que ele está de perfil e que foi publicada a duas páginas na “Visão”. Em cada ocasião lá o abordava: “Comandante, então quando vamos fazer a fotografia?” Mas ele foi adiando, adiando e nunca fiz o dito retrato.

Ou seja, o comandante Fidel deu-lhe baile...
Aldrabou-me, (risos) fiquei fulo. Escrevi no meu diário dessa última noite em Cuba: “Fidel Castro também mente.”

Quem é para si o maior fotógrafo de todos os tempos?
O Cartier-Bresson teve uma influência profunda em milhões de fotógrafos. Há fotógrafos fantásticos. Sebastião Salgado é um deles e um grande amigo.

Como vê a nova geração de fotojornalistas?
É uma geração fora de série. Não é por acaso que são premiados internacionalmente. Revejo-me neles porque nada têm que ver com os velhos fotógrafos do regime. Tenho pena que não existam mais revistas onde possam mostrar o seu talento.

Como são hoje passados os seus dias?
São passados aqui em Sacavém, a terra onde nasci, e na Maçã, onde tenho o meu arquivo e laboratório. Agora ando a pensar na Casa da Imagem...

Será um museu com as suas fotografias, as suas máquinas, os seus objetos?
Eu não quero que se chame museu. Acho uma coisa antiga. Chamo-lhe Casa da Imagem. Não sei ainda onde será porque aqui na zona fizeram promessas que duram há três anos. Tenho várias ofertas noutros sítios. Tenho pena se não for em Sacavém.

Continua com esperança no amanhã?
Não sou um homem derrotista. Mas depende do tipo de esperança. Não tenho esperança de durar muito mais tempo. Duro se calhar mais dois anitos e queria ver até essa altura a Casa da Imagem já construída. Com galeria de exposições, um laboratório fotográfico a preto e branco, um estúdio à moda antiga.

A vida tem sido boa para si?
Nunca pensei ser rico, nunca pensei ter carros descapotáveis. Pensei no razoável. Desde que as coisas sejam geridas pacificamente ainda duro dois anos. Vamos lá ver.

De que é que se arrepende?
Se calhar de nunca ter dado uma assistência mais intensa aos meus filhos.

Foi um pai ausente?
Um pouco. Embora tenha estado presente nas alturas importantes, eles apontam-me isso. A ausência... O que devia ter feito? Abdicar da minha profissão?

Não teria sido tão bom fotógrafo se tivesse sido melhor pai?
Não era. De certeza absoluta. Era impossível conjugar as duas coisas. E foi uma opção. Se me tivesse dedicado mais à família não teria ido a tantos países fotografar, não tinha feito as fotografias que fiz. Não foi uma questão de egoísmo. Foi uma questão de amor. De amor à minha profissão. (pausa) É egoísmo, talvez.

Como é que gostaria de ser recordado?
Um rapaz de Sacavém que procurou sempre denunciar as injustiças sociais e que vai morrer vertical.

Quer acabar o seus dias a fotografar?
Só não vou com a máquina para o caixão.

Porquê?
Porque o coveiro é bem capaz de abrir o caixão e ficar com a máquina (risos).