Pela primeira vez em mais de uma década, o Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo não se realiza pelo rio, nos emblemáticos barcos tradicionais, mas sim por terra. A decisão está a gerar consternação entre as comunidades ribeirinhas e a motivar fortes críticas, não apenas pela descaracterização da romaria, mas sobretudo pela alegada má gestão de fundos públicos e pela crescente ruptura com os princípios fundadores do evento.

Segundo apurou o nosso jornal, esta alteração resulta de uma opção estratégica da atual direção da Confraria Ibérica do Tejo (CIT), que decidiu canalizar parte significativa do apoio financeiro recebido de autarquias e entidades públicas para a participação num evento náutico na Galiza, promovido pela associação galega CULTURMAR. Tal decisão é apontada por vários interlocutores como um desvio claro ao propósito original da romaria: a celebração da fé, da identidade cultural e do património náutico do Tejo.

“O Cruzeiro era um momento sagrado, vivido com emoção e respeito, por entre embarcações cheias de história e devoção. Agora, temos procissões de estrada, e tudo perdeu sentido”, afirma um dos antigos organizadores locais, vinculado a uma paróquia do médio Tejo.

Análise ao relatório de contas: omissões, redirecionamentos e ausência de transparência

O nosso jornal teve acesso ao Relatório de Atividades e Contas da CIT referente ao ano de 2024, datado de 31 de março de 2025. Do documento, destaca-se um dado preocupante: não existe qualquer referência concreta à realização fluvial do Cruzeiro, nem rubricas específicas que confirmem despesas com embarcações, logística náutica, segurança marítima ou contratação de tripulações — elementos essenciais à execução de uma romaria pelo rio.

Entre os 28.039,85€ de receitas auferidas, cerca de 93% provêm de donativos e apoios públicos, com valores expressivos atribuídos pelas câmaras municipais de Vila Velha de Ródão, Santarém, Abrantes, Constância, entre outras. No entanto, os gastos detalhados no relatório revelam uma forte concentração em despesas de mobilidade terrestre e em atividades paralelas, como combustíveis (6.412€), consumíveis (5.456,96€), reparações mecânicas (2.692,99€), alojamento e refeições, bem como a produção do catálogo “Tejo Acima” (3.501,36€).

Apenas 12.954,72€ foram, segundo o próprio relatório, diretamente atribuídos ao Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo — sem discriminação técnica sobre o modo como este valor foi utilizado. Acresce que a atividade prevista para 2025 já inclui oficialmente a participação no Encontro de Embarcações Tradicionais da Galiza, com um orçamento reservado de 2.000€, o que reforça a perceção pública de desvio de prioridades.

Direção em causa: eleições contestadas e processos em tribunal

Fontes ligadas à própria estrutura da Confraria garantem que a atual direção foi eleita num processo altamente questionado, ocorrido em Assembleia Geral Extraordinária a 18 de março de 2022, sem divulgação pública efetiva nem acesso aos documentos preparatórios. Esta alegada irregularidade está já a ser objeto de processos judiciais, nos quais se discutem violação de estatutos e ilegalidade do ato eleitoral.

Por outro lado, a CIT não apresenta prestação de contas individualizada aos seus associados nem às entidades que concederam apoios financeiros, violando, assim, o dever de transparência e de responsabilidade institucional. Os fundos atribuídos por Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia entre 2022 e 2024 não foram acompanhados de relatórios de execução pública, facto que está a levar várias autarquias a ponderar a suspensão de futuros apoios.

Comunidades e Igreja afastam-se do projeto

A deterioração das relações entre a Confraria e a Igreja Católica é outro sinal evidente da crise. Contactadas pelo nosso jornal, fontes eclesiásticas confirmaram o afastamento de várias dioceses e paróquias, que deixaram de colaborar por sentirem-se excluídas dos processos decisórios e por não confiarem na atual liderança.

“As comunidades não reconhecem esta direção como legítima. Muitos recusam-se mesmo a interagir com os seus elementos, exigindo a reposição da verdade e um escrutínio real sobre os gastos realizados com dinheiros públicos”, denunciou um responsável eclesiástico sob anonimato.

O fim anunciado de uma romaria de fé e identidade

Criado há pouco mais de 12 anos, o Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo granjeou reconhecimento como expressão viva da religiosidade popular, da cultura ribeirinha e da ligação ancestral ao rio. Mas a atual situação compromete seriamente a continuidade deste património imaterial.

Com comunidades indignadas, paróquias afastadas, autarquias desconfiadas e processos judiciais em curso, tudo indica que 2025 poderá ser o último ano desta romaria tal como a conhecemos.

A direção da CIT recusou prestar declarações ao nosso jornal até ao fecho desta edição, apesar de ter sido formalmente contactada e instada a responder no prazo de 48 horas.

Este é um caso em desenvolvimento. O nosso órgão de comunicação continuará a acompanhar e a informar os leitores sobre os desenvolvimentos futuros.