
No seguimento da morte trágica de Diogo Jota e André Silva, a Dra. Patrícia Câmara, psicanalista, explica à VIP o processo de luto de progenitores.
Os pais, mães, cuidadores viverão o luto de forma única e individual. Cada um de nós expressa e vive a dor da perda de maneiras diferentes, muitas vezes diferentes até da maneira que teríamos imaginado viver caso algumas destas coisas nos acontecesse. O nosso corpo (psicossomático) tem respostas psicofisiológicas que não temos como antecipar.
O processo de luto é sempre um processo e o seu fim, não é a ausência de dor. Contudo, preconceitos sociais e atribuições de género podem dificultar alguns movimentos internos e externos que podiam amparar ou criar condições para elaborá-lo na medida do possível o melhor possível. Continua a ser mais aceitável que as mulheres expressem a sua dor de forma mais evidente e que os homens a silenciem e racionalizem, dificultando a procura de apoio, por exemplo, psicológico e farmacológico no caso dos homens e criando momentos de ajuizamento sobre as mulheres que não expressem de forma evidente a sua dor. O mesmo acontece para o que é expectável que uma mãe sinta ou que um pai sinta. Assim, para responder à sua pergunta, o ser-se mãe ou pai não confere per si um tipo específico de resposta emocional à perda dos filhos. Mas os preconceitos e as atribuições de condutas e sentires às mães e aos pais já poderão constituir-se como um entrave à vivência do próprio processo de dor e luto.
A dor da perda é sempre singular e o seu impacto incomensurável. Pô-lo por palavras seria reduzi-lo. Podemos calcular que a inscrição traumática seja impensável, assim como impensável é pensar que se pode saber a dimensão do impacto que tem.
A perda de um filho é das experiências humanas mais devastadoras que se pode ter, como pode imaginar. A morte repentina de um filho acresce a esta devastação a dor da brutalidade do desaparecimento sem qualquer hipótese de preparação interna ou despedida. Se o impensável se apresenta diante dos nossos olhos, a curvatura da vida perde sentido e se esse impensável se apresenta sem que houvesse qualquer hipótese de ver falada ou agida alguma continuidade de sentido para depois da perda, pior ainda. O espaço que medeia a presença da ausência não se pode constituir quando a perda é repentina e contraintuitiva, sendo, pelo menos numa primeira instância, enlouquecedora. Assim, claro, a perda repentina de dois filhos é cumulativa e duplamente impossível de ser elaborada e, uma vez mais, apesar de passível de ser compreendida na sua universalidade é devastadora de forma singular.
A complexidade da perda, a especificidade da relação entre as pessoas envolvidas e a bagagem psicossomática de resposta aos acontecimentos de vida torna impossível uma resposta fechada. O que podemos saber é que as consequências serão múltiplas e terão expressões físicas e psicológicas diversas, sendo expectável que, dada a espessura destes acontecimentos, corpo e mente vão fazendo movimentos de desintegração e integração extremos para lidar com a própria dor. A luta interna entre a dor da perda e dor de se estar vivo na ausência do outro, a dimensão traumática que inscreve um corte na temporalidade e na continuidade da vida, poderá trazer, com certeza, alterações do sono, apetite, baixas imunitárias variadas, bem como, pânico, angústia, sentimentos de culpa, alterações da memória e comprometimento na capacidade de pensar e, claro, poderá, no limite, conduzir a depressões profundas.
A dor intensa da perda e da perda abrupta amplia e gera risco de luto patológico, isto é, de uma impossibilidade de encontrar sentido que não na ideia da reunião com quem se perdeu, pelo que o acompanhamento psicoterapêutico é, muitas vezes, imperativo.
Não é possível superar a dor de perder um filho, mas é possível aprender a viver com essa dor. Com o tempo pode vir a deixar de ser incapacitante. Pode-se aprender a viver com essa dor, mas é fundamental o acompanhamento psicológico. O luto, claro, será sempre longo, mas não tem de ser solitário. Por mais que no momento da perda e nos que lhe sucedem pareça impossível, é possível viver com dor sem que ela destrua e ocupe completamente a nossa vida.
É importante que os pais e mães possam criar e possibilitar novos vínculos de sentido, que, claramente não substituirão os filhos, mas que podem conferir vida, como ações sociais, envolvimento em ativismo associados às circunstâncias das perdas, atividades de continuidade da memória afetiva dos filhos, atividades outras nunca experimentadas e por aí fora.