Istambul, manhã de 25 de maio de 2005. Nas ruas da vibrante e fascinante cidade turca o ambiente é de euforia, o sol brilha intensamente e a festa do futebol vai inundando de alegria as principais artérias, espalha-se contagiante desde imponente praça Taksim à zona da Mesquita Azul, passando pela ponte de Galata.

Há crianças a jogar à bola, umas com as camisolas do Liverpool, outras com as do Milan. Estão felizes, vão ver a final da UEFA Champions League entre os dois mais fortes emblemas da Europa à altura, no grande estádio Olímpico Ataturk. Terá surgido no sonho de algumas delas o que estava para acontecer horas mais tarde?

Veja as imagens mais marcantes da final da Champions em 2005:

Adeptos ingleses são cerca de 100 mil, italianos rondarão os 50 mil. Só metade tem bilhete para um dos 70 mil lugares reservados no palco da final, mas isso pouco importa. Para a outra metade, o que interessa é estar perto das emoções, estar ali, onde tudo vai acontecer.

Junto ao Bósforo, a hora é de almoço. Famílias enchem as esplanadas, de onde podem supervisionar as brincadeiras que, entretanto, com ou sem  bola e em diferentes línguas, vão misturando miúdos ingleses, italianos e turcos.

TRÂNSITO INFERNAL RUMO AO ESTÁDIO

Mais uma fotografia, mais uma caminhada pelo centro e, à medida que as horas vão passando e que o sol vai dando uma cor dourada aos tetos da cidade, começa a romaria na direção do estádio. Todos os caminhos vão dar ao Ataturk, uma viagem que não costuma demorar mais do que 40 minutos transforma-se em intermináveis três horas.

O trânsito torna-se infernal, mas ninguém parece preocupado com isso. O ambiente é de euforia, com cachecóis fora dos carros, milhares a cantar a uma só voz a esperança de ver o respetivo clube elevar aos céus a Taça dos Campeões Europeus como sucessor do FC Porto de José Mourinho, vencedor da edição anterior.

O Milan, campeão europeu em 2003, treinado por Carlo Ancelotti e com estrelas como Kaká, Rui Costa, Maldini, Pirlo, Gattuso, Nesta e Shevchenko, deixara pelo caminho Manchester United (1-0 e 1-0), Inter (2-0 e 3-0, este na secretaria, depois do final prematuro da 2.ª mão, com centenas de tochas no relvado de San Siro) e PSV Eindhoven (2-0 e 1-3).

O Liverpool, em busca da glória europeia há muito perdida (apesar da conquista da Taça UEFA em 2001), orientado por Rafa Benítez e com craques como Steven Gerrard, Xabi Alonso, Carragher, Hyypia ou Milan Baros, afastou Leverkusen (3-1 e 3-1), Juventus (2-1 e 0-0) e Chelsea, de José Mourinho (0-0 e 1-0), no caminho até à final.

MARADONA E RUI COSTA À CONVERSA

Na véspera da grande decisão, as duas equipas treinaram-se no Ataturk, perante o olhar de… Diego Armando Maradona, convidado pela UEFA para assistir à final.

Rui Costa, à altura o maestro e um dos melhores números 10 daquela era, foi um dos que estiveram largos minutos à conversa com o argentino… A final estava abençoada pelo maior. O Benfica acabara de ser campeão, ao fim de 11 anos – os mesmo 11 anos sem… Rui Costa – e sobre isso falara o hoje presidente do Benfica na véspera da final em conversa com A BOLA.

«Estava em Milão, mas foi como se estivesse em Lisboa, em Portugal, junto dos milhares que encheram as ruas do País. Que a festa do Benfica continue em Istambul», disse, em entrevista concedida ao nosso jornal.

A verdade é que a final da Champions tinha tudo para ser uma continuação da festa para Rui Costa – que começou no banco, numa altura em que Kaká reinava no papel que antes tivera o maestro português como protagonista.

Às 21.45 horas em Istambul, menos duas em Portugal, o conceituado árbitro espanhol Mejuto González apitava para o início do Milan-Liverpool, a 50.ª final da Liga/Taça dos Campeões Europeus.

AO INTERVALO, 3-0 PARA O MILAN

A diferença de forças nas bancadas era gritante: 55 mil adeptos do Liverpool, 15 mil do Milan. Nada, porém, que tenha influenciado a fantástica primeira parte dos rossoneri e, em particular, de Kaká e Hernán Crespo.

O Liverpool estava perdido, não conseguia entrar no jogo. Logo no primeiro minuto, o veterano Paolo Maldini, a disputar a sua sétima final da Champions (!), marcava o golo mais rápido da história das finais da Champions, o 1-0, na sequência de um livre marcado de forma soberba por Andrea Pirlo.

O Liverpool nem respirava e, aos 23’, perdia um dos eleitos: Harry Kewell lesionava-se, Smicer ia a jogo. Nada mudou e, à beira do intervalo, o Milan parecia dar a estocada final, por conta de dois golos de Crespo, ambos em contra-ataque, o primeiro aos 39’, com o argentino a ser servido por Shevchenko na sequência de jogada iniciada por Kaká; o segundo aos 44’, num lance em que Crespo a ser lançado em profundidade pelo mesmo Kaká. 3-0!

Veja os melhores momentos da final eterna entre Liverpool e Milan em 2005:

KAKÁ, O MELHOR DO MUNDO

Escrevia, então, A BOLA que «este Kaká da primeira parte de Istambul era, de longe, o melhor jogador do Mundo», tão geniais e encantadores foram aqueles 45 minutos do génio brasileiro.

E, entre os repórteres presentes na bancada de imprensa, havia uma ideia fixa: equipa italiana, cínica e especialista no catenaccio, a vencer por 3-0 ao intervalo, nem em Saturno perde um jogo…

O juiz espanhol apitava para intervalo e… quem estava no estádio naqueles 15 minutos de descanso jamais esquecerá o que ali se viveu. Apesar de abalados pelo furacão que os atingira na primeira metade, os 55 mil adeptos do Liverpool presentes no Ataturk começaram, de súbito, a entoar o mais mítico cântico da história do futebol: o You’ll Never Walk Alone [em português: vós nunca caminhareis sós].

E não mais se calaram. Depois de um intervalo de sonho e encantamento ao som da daquela música, a segunda parte começou com os adeptos dos reds ainda mais empolgados entoando a alta voz a música com que procuram elevar os jogadores.

E, em apenas seis minutos, os que decorreram entre os 54’ e os 60’, o impensável aconteceu, o milagre surgia em todo o seu esplendor à vista dos milhões que, no estádio ou via TV, assistiam ao encontro.

A INCRÍVEL REVIRAVOLTA RUMO AO 3-3

Era outro Liverpool em campo, inspirado pela fé e esperança dos 55 mil que por ele puxavam em Istambul. E, após jogada de insistência aos 54’, o norueguês Riise cruzou, viu a bola passar por cima de Cafú e viu Gerrard, o capitão, desviar de cabeça, com classe e precisão, para o fundo das redes defendidas por Dida.

Logo depois, aos 56’, novo arranque, agora com Dietmar Hamann a servir Smicer e este a disparar de longe para o 3-2. Renascia a esperança, mais ainda aos 58’, quando Gattuso derrubou Gerrard na grande-área e o Mejuto González apontou para a marca de grande penalidade.

GOLO DE XABI ALONSO E O ESTÁDIO VAI ABAIXO

O estádio quase vinha abaixo, estava ali a oportunidade para o impensável 3-3. Na marcação, Xabi Alonso… permitiu a defesa de Dida, mas, na recarga, o médio espanhol, hoje treinador do Leverkusen e futuro técnico do Real Madrid, atirava mesmo a contar: 3-3! Loucura total no Ataturk!

Mas não se pense que o Milan se ficou. Tremeu como varas verdes, sim, naquele primeiro quarto de hora da segunda parte, mas puxou dos galões e da experiência e reergueu-se. E a verdade é que até esteve muito mais perto da vitória do que o adversário, por conta de claras oportunidades (desperdiçadas) por Seedorf, Shevchenko, Crespo, Pirlo, Tomasson e, já à beira do fim, novamente Sheva, que viu Dudek defender de forma milagrosa a recarga do ucraniano.

PENÁLTIS JÁ DEPOIS DA MEIA-NOITE

O resultado não se alteraria mais, nem depois dos 30 minutos de prolongamento, no qual ainda entrou Rui Costa (112’). Só os penáltis desempatariam o duelo impróprio para cardíacos a que se assistira durante mais de duas horas. Em Istambul, já era meia-noite…

A ansiedade era visível nos rostos dos guerreiros dos emblemas inglês e italiano. Seguia-se a lotaria. Serginho falhou para o Milan, explosão de alegria entre os adeptos do Liverpool, que se intensificou quando Hamann converteu a sua. 0-1. Seguia-se Pirlo, um mestre da bola parada, e… Dudek defendeu! E, logo depois, Djibril Cissé marcou! 0-2.

Tomasson tinha nos pés todo o peso do mundo mas… não falhou. 1-2. Quem falhou, sim, foi Riise. Renascia a esperança rossonera! Que crescia com a conversão eficaz de Kaká! 2-2. Era a vez de Smicer e… 3-2 para o Liverpool! Shevchenko, o goleador, o Bola de Ouro 2004, avançava para a marca dos 11 metros. «Sheva não falha», pensou-se. Mas… falhou!

O que se seguiu foi absolutamente incrível, loucura total no relvado e nas bancadas: 21 anos depois do título europeu conquistado em Roma, o Liverpool conquistava a sua quinta Champions, depois de uma final inesquecível e que, após duas décadas, permanece como uma das melhores de sempre da história do futebol.

Maradona desiludido com derrota do Milan

No final, Maradona falava de justiça, embora com alguma desilusão à mistura. «Estou desiludido. Como todos os que jogaram no futebol italiano, estava convencido que com o 3- 0 o Milan tinha o jogo decidido. E acabou por acontecer o que aconteceu...», disse Maradona, presente no Ataturk a convite da UEFA e para comentar a partida para a televisão Sky italiana.

«O Milan jogou sempre bem», continuou, «e no prolongamento Shevchenko podia ter feito o golo da vitória naquela fantástica defesa de Dudek». Maradona considerou que na segunda parte os italianos não produziram tanto como na primeira, e isso foi fatal. «Sofreram três golos incríveis e não jogaram mais como antes. O Milan teve ocasiões, mas o campeão é o Liverpool e, assim, pode dizer-se que é a melhor equipa do mundo, mas a Taça estaria em Milão se na segunda parte tivessem jogado como na primeira», analisou. No fim, um reconhecimento que a desilusão não conseguiu toldar: «O Liverpool é um justo campeão.»

Rui Costa: «Aqueles 6 minutos serão para sempre um mistério»

Triste, incrédulo, abatido. Foi difícil para Rui Costa aceitar a dura realidade de uma final que o Milan parecia ter na mão. A derrota tocou fundo no espírito dos jogadores do Milan. «Obviamente, é grande a desolação no balneário», disse-nos o internacional português já na zona mista do Estádio Ataturk, palco de emoções cruzadas nos instantes que se seguiram à 50.ª final da mais importante competição da UEFA.

Enquanto Rui Costa falava à imprensa, Gerrard passava atrás dele com o mais precioso objecto da noite: o troféu da Champions. Não havia jogador do Liverpool que não trouxesse no rosto a expressão da mais pura felicidade. Os sorrisos dos reds contrastavam de forma crua com as lágrimas que alguns futebolistas do Milan tentavam, em vão, disfarçar.

O gigante Jaap Stam, com os olhos a latejar de lágrimas, parecia um menino. Era o treinador Carlo Ancelotti quem tentava confortá-lo. Ali ao lado, também Shevchenko — um dos mais azarados da noite, dono de algumas das melhores oportunidades de golo, sem pontaria na grande penalidade derradeira— trazia no rosto as marcas de lágrimas.

O semblante de Rui Costa não fugia, portanto, ao da maioria dos seus companheiros de equipa. Estava tristíssimo. Foi assim ainda em campo quando, cumprimentado por Gerrard, desviou o olhar; foi assim quando recebeu a medalha de finalista vencido; foi assim no momento de explicar a A BOLA o que lhe ia na alma. Havia um toque de revolta nas suas palavras.

«Aconteceu algo de inexplicável esta noite em Istambul. Assim, a quente, é de facto muito difícil de perceber o que realmente aconteceu. Ainda não assimilámos entre nós o que se passou, nem conseguimos conversar verdadeiramente sobre o jogo. É estranho demais para ser verdade», começou por dizer Rui Costa, combalido com a sequência de acontecimentos de uma noite marcada por momentos felizes — os três saltos com que celebrou a vantagem do Milan na primeira parte; aquela conversa com o inesquecível Diego Armando Maradona nos instantes que antecederam a partida; o momento em que entrou em campo para render Gattuso...— e concluída de forma tão triste.

«Passámos por sensações muito duras. É difícil digerir tudo isto, e mais difícil ainda analisar o que se passou. Olhando para os primeiros 45 minutos da partida, é quase impossível dizer por que razão não conseguimos vencer. O primeiro tempo foi quase perfeito. Depois, aconteceu o incrível. Aqueles seis minutos serão para sempre um mistério, sem análise possível», prosseguiu Rui Costa, ainda incrédulo com a segunda final perdida no espaço de um ano, depois do pesadelo da Luz, no Euro2004.

«Resta-nos apenas seguir em frente, com coragem», finalizou.