
Não é qualquer jogador que conquista três troféus nacionais numa só época. Não é qualquer um que adiciona a esses três a mítica Liga dos Campeões. E ainda menos são aqueles que juntam a todo este sucesso um troféu pela sua seleção - no caso a Liga das Nações. E se a isto juntarmos o facto de estarmos a falar de um defesa com uma grande participação em golos, temos mesmo um caso sério.
Se ainda não adivinhou, sim, estamos a falar de Nuno Mendes. O lateral esquerdo luso teve - ou está a ter, visto que ainda pode conquistar o Mundial de Clubes - uma época absolutamente memorável. Não é por isso de estranhar que seja, provavelmente, o nome mais consensual quando se fala do melhor da sua posição na atualidade. A isto juntam-se ainda vozes que o colocam na corrida pelo famosa Bola de Ouro, apenas ao alcance dos imortais, por norma. Seria um feito notável para alguém da sua posição.
Despertou no Bairro, explodiu no Sporting
Descendente de cabo-verdianos, Nuno Mendes cresceu no Bairro da Boavista, em Benfica, Lisboa. Tinha apenas nove anos quando o seu professor de Educação Física, Bruno Botelho, o levou para o FC Despertar - clube de Casal de Cambra, também em Lisboa -, depois de ter gostado de o ver jogar nas suas aulas.
Era um rapaz tímido, como adjetivam as pessoas que com ele conviviam na altura, mas 'falava pelos cotovelos' com a bola nos pés. De resto, os seus treinadores da altura não tiveram dúvidas em dar-lhe a camisola 10 - a pedido do próprio -, a única que envergou naquele clube. Como a maioria dos jovens talentos, não tardou em chamar à atenção dos chamados «grandes», mas foi o Sporting quem ganhou a corrida, embora com uma história curiosa pelo meio.

Certo dia, Nuno saiu da escola com a sua prima e ambos repararam que um homem os seguia. Apercebendo-se da situação, aceleraram o passo e Nuno correu até sua casa. Pouco depois de chegar, esse mesmo homem tocou à campainha. Com apenas nove anos, Nuno agarrou numa faca que tinha na cozinha e foi abrir. O homem em questão disse-lhe "Calma, calma, sou olheiro do Sporting". O resto, como se costuma dizer, é história.
Franzino, mas talentoso, não demorou a chamar à atenção na Academia.
«Era um miúdo do bairro e vinha todos os dias de transportes, com 12 anos, para o treino. Revela um pouco a aprendizagem que teve ao longo da vida, as dificuldades que tem de ter um miúdo daquela idade. Provavelmente, boa parte dos dias também ia para casa de transportes. Lembro-me de um dia, por força do metro ter parado, ele ter chegado atrasado ao treino. Eu sabia que vinha de transportes, mas, na altura, não quis aceitar a justificação dele de chegar atrasado por causa dos transportes. A culpa, na realidade, não foi dele. Dei-lhe uma reprimenda, falámos. A culpa não era dele, mas não lhe quis dizer isso», começa por contar ao zerozero Pedro Coelho, antigo treinador da formação leonina, que explica o que pretendeu com esse raspanete:
«Quis passar-lhe a responsabilidade e disciplina de chegar sempre a horas aos nossos compromissos. A verdade é que senti, desde essa altura, que ele tinha muita pressão e disciplina de chegar a horas a todos os momentos. Isto é uma pequena aprendizagem que nada tem a ver com o futebol, mas sim com a vivência.»
As memórias em relação ao jovem Nuno, essas, estão ainda bem presentes.
«Era um miúdo tranquilo, dava-se bem com os colegas. Era extrovertido, mas equilibrado. Educado. Nunca me deu problemas, em termos de educação, liderança ou escola. Portava-se bem dentro e fora no treino. Nas palestras, nos sub-19, ele estava mesmo muito atento, a querer absorver todas as informações que lhe dávamos. Acabou por facilitar a entrada no futebol profissional e o ato de se impor como um jogador chave no Sporting e ser vendido por aqueles valores para o PSG. Sempre desenvolveu o seu profissionalismo. Nos juniores, já era alguém que trabalhava muito o ginásio, estava forte fisicamente, preparado para o choque», acrescenta.

Pedro foi treinador nas camadas jovens do Sporting desde 2014 até este ano, passando por todos os escalões- equipa B e sub-23 incluídos. Logo na sua primeira época na Academia coincidiu com o pequeno Nuno. Este seria o primeiro de três encontros, em épocas distintas - em 2014/15 nos sub-15, em 2016/17 nos sub-17 e em 2019/20 nos sub-19 - entre os dois.
Hoje, Nuno Mendes é visto como um lateral de elite, mas a verdade é que o jovem nem sempre jogou nesta posição. De resto, Pedro Coelho ajudou na transição: «Era extremo. Apanhei-o na transição do futebol de 7 para 11. Ele era extremo porque era rápido, tinha um bom cruzamento e era forte na condução, como hoje. É giro ver que as características mais fortes dele na altura são as mais fortes dele hoje. Era bom no cruzamento. Nós, na estrutura, vimos que tinha mais características de lateral», vinca, recordando uma fase em específico do processo formativo do agora camisola 25 do PSG:
«O escalão de sub-13 é muito caracterizado pelos torneios. Ele fez o torneio da Pontinha, de Frielas, que vencemos, e já estava num nível muito bom como defesa esquerdo. Sempre foi rápido, ágil, bom cruzamento, bom remate e ação técnica. Era agressivo nos duelos, destemido e tinha esse envolvimento, de forma intrínseca, de vir do bairro da Boavista. Acabámos por encostá-lo a defesa esquerdo, onde achámos que tinha potencial. Era impossível dizer que seria um dos melhores defesas esquerdos do mundo.»
Academia como casa
A mudança para a Academia, no entanto, demorou. Só se deu aos 14 anos - e por lá Nuno ficou até por volta da altura da pandemia, quando deu o salto para a equipa principal -, fruto da insistência de Luís Dias, coordenador técnico do Sporting na altura. Além disso, o Sr. Adérito, um sócio de velha guarda do Sporting, teve um papel fundamental.

13 títulos oficiais
Numa altura em que o clube passava por maiores dificuldades, este adepto fez um donativo à Fundação Sporting - que havia acabado com as bolsas sociais que permitiam a jogadores como Nuno Mendes ficarem na Academia em definitivo - e apoiou o jovem Nuno durante dois anos.
Pedro Coelho, que o reencontrou nos sub-15 nessa altura (2016/17), considera que essa mudança foi fundamental e fala das diferenças vistas em Nuno.
«Vi muitas diferenças. Existe uma diferença maturacional dos jogadores quando começam a fazer 14 anos. Nessa altura o crescimento é muito variável. O Nuno cresceu mais tarde. Quando ele começou a residir na Academia por não ter a facilidade de transportes, nos sub-14, passou a ser atleta-residente. Nos escalões de sub-14/sub-15, como os outros cresceram primeiro, ele teve alguma dificuldade em ter sucesso nas suas ações. Era um miúdo no qual acreditávamos, mas tinha de crescer no ponto de vista físico e mental. Isso aconteceu nos sub-16», começa por explicar.
«Ele vai à seleção pela primeira vez nos sub-17, numa altura em que já estava a aprender as bases para ser profissional, mas nessa época acabou por fraturar a perna. Quando volto a apanhá-lo, nos sub-19, a época em que se dá a pandemia, ele já estava num nível muito alto- meses depois estreia-se na equipa principal. Já víamos uma grande capacidade do ponto de vista mental quando ele tinha 13 anos, depois o crescimento físico não foi tão rápido. Quando equilibrou o crescimento do os da sua idade, o desempenho desportivo foi muito progressivo», acrescenta.
«Está a ter oportunidade de ser falado para a Bola de Ouro»
Nos últimos tempos, fruto da grande temporada, pessoal e coletiva, que está a ter, Nuno Mendes surgiu entre os favoritos a vencer a Bola de Ouro. Não será fácil, não só porque tem concorrência de peso - incluindo o compatriota Vitinha, o colega Ousmane Dembélé, Mohamed Salah, Raphinha ou Lamine Yamal, por exemplo -, mas também porque, historicamente, os defesas têm dificuldade nessa corrida - apenas três a conquistaram.

Apesar disso, Pedro Coelho elogia o nível altíssimo a que o antigo pupilo chegou e fala do orgulho de o ver nessa corrida.
«Muito orgulhoso de ter estado com ele. Acompanhei a evolução desde os 12 anos até chegar a este nível. É uma oportunidade que temos nestes clubes grandes de acompanhar estes miúdos. Tem a oportunidade de ser o Melhor do Mundo na sua posição, provavelmente foi o melhor do mundo na sua posição esta época. Está a ter a oportunidade de ser falado para Bola de Ouro e isso é muito bom», conclui.
Conseguirá Nuno Mendes fazer (ainda mais) história?