"Enquanto vítima e sobrevivente do reinado de terror no final do domínio indonésio da minha pequena ilha, estou chocada e enojada pela sua decisão de honrar essa pessoa nos anos finais da sua Presidência, que deu muitas esperanças de mudança", escreve Cris Carrascalão, filha do histórico dirigente da resistência Manuel Carrascalão, numa carta aberta ao Presidente da Indonésia.

Em causa está o anúncio feito pelo Palácio Presidencial indonésio relativo à atribuição da Bintang Jasa Utama, a Medalha de Serviço e uma das principais honras conferidas pelo Estado indonésio a Eurico Guterres, ex-comandante da milícia Aitarak, uma das responsáveis por mortes e violência nos meses antes do referendo da independência de Timor-Leste.

A medalha foi conferida a Eurico Guterres numa cerimónia no Palácio Presidencial, que pretende "reconhecer e homenagear" o líder mais conhecido das milícias pró-indonésias em Timor-Leste.

"Não consigo acreditar que o seu gabinete não estava ciente dos vários massacres levados a cabo na minha pequena nação", escreve Cris Carrascalão, depois de relatar em detalhe os ataques e massacres e os homicídios, incluindo o do seu irmão de 16 anos, de forma brutal.

"Durante a sua Presidência, trouxe esperança de mudança, mas isso foi no passado; estou profundamente entristecida e envergonhada da sua decisão de honrar esse homem com a estrela da bravura e coragem", lê-se na carta, que avisa: O Presidente "manchou todos os indonésios que ganharam a medalha com atos corajosos, respeitosos e bravos relativos à Indonésia".

Em 2002 Eurico Guterres foi condenado a 10 anos de prisão por um tribunal ad-hoc por abusos em Timor-Leste, com a decisão a ser confirmada pelo Supremo Tribunal.

Porém Guterres acabou por ser absolvido numa Revisão Judicial em 2008.

Guterres, de 51 anos, foi colaborador das forças indonésias e integrou a milícia Gadapaksi, grupo que se transformou em Aitarak no final de 1998 e do qual se tornou comandante.

A milícia Aitarak, que tinha a sua sede num espaço em Díli que é hoje um hotel, foi responsável, entre outros crimes, pelo ataque à casa de Manuel Carrascalão, em abril de 1999, que causou dezenas de mortos, entre eles o filho do político timorense, Manelito.

Guterres identifica-se como "chefe da milícia dos ativistas pró-integração de Timor-Leste", na sua página no Facebook, na qual nos últimos dias se multiplicaram publicações de timorenses a questioná-lo sobre a entrevista.

A milícia Aitarak foi uma de várias milícias criadas pela Indonésia e que atuaram nos meses antes do referendo de 30 de agosto de 1999 em que os timorenses escolheram a independência e que foram responsáveis por uma ampla campanha de terror responsável por milhares de mortes.

O referendo pôs fim a 24 anos de ocupação ilegal de Timor-Leste pela Indonésia, abrindo a porta para a restauração da independência no país em maio de 2002.

Guterres já tinha recebido a 15 de dezembro de 2020 a Medalha Patriótica, entregue pelo ministro da Defesa, Prabowo Subianto, ele próprio acusado de abusos de direitos humanos em Timor-Leste, quando comandava as forças especiais Kopassus.

Subianto recrutou Guterres em 1994 para integrar a Gardapaksi.

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