Esta é a principal preocupação expressa pelos refugiados ouvidos pela Lusa no assentamento do Lóvua, criado em 2017 para receber os deslocados da província do Kassai.

O campo funciona até hoje sob gestão do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), em parceria com o Governo angolano e organizações não-governamentais, mas aquela agência está prestes a encerrar os seus escritórios em Angola e alguns dos seus parceiros também estão de saída, suscitando dúvidas quanto ao apoio aos refugiados.

Sem documentos válidos, muitos ficam num limbo que os impede de aceder a serviços básicos e de garantir o sustento. Não podem abrir uma conta bancária, ter um pequeno negócio ou sequer circular livremente fora do Dundo, capital da província da Lunda Norte, onde as autoridades apenas reconhecem o "comprovativo de registo".

É esse retângulo de papel que permite a Ange Kanku, à sua mulher e aos sete filhos (incluindo uma criança órfã que adotaram) receberem a "ração" e outros benefícios destinados aos refugiados do Lóvua --- assim chamados, mas sem um estatuto legal reconhecido.

"Para aceder a muitos serviços no país, este documento não é aceite. Por exemplo, os bancos não o aceitam. O comércio formal também não. Muitos refugiados perguntam-se o que vai acontecer se o nosso documento não nos permitir aceder a todos os serviços do país", desabafa este antigo professor.

Ange diz que sente a responsabilidade de assegurar o sustento dos filhos e pela família, mas ter apenas este documento é, nas suas palavras, "como ter as mãos e os pés amarrados". Mesmo os seus filhos só conseguem frequentar as escolas dentro do campo, por falta de documentos. 

As preocupações são partilhadas por "Mamã Anto", outra líder comunitária que chegou a Angola fugindo da guerra e das milícias que "cortavam cabeças".

"Tudo o que tinha lá perdi. Tenho filhos, tenho netos. Vou recomeçar do zero no meu país? É melhor continuar aqui a trabalhar com o pouco que tenho. Vou ficar", diz, insistindo que "o que preocupa é o documento".

O chefe tradicional Gangueng Gandundu prefere não recordar o que se passou na Repúblcia Democrática do Congo (RDCongo): "Se eu lembrar, vou começar a chorar", emociona-se, apelando ao Governo angolano que conceda os documentos que lhes permitam ter liberdade.

O campo do Lóvua fica a cerca de 110 quilómetros de Dundo, capital da Lunda Norte --- uma província rica em diamantes --- e acolhe atualmente cerca de seis mil pessoas, a maioria refugiados do Kassai, que chegaram após o conflito de 2017.

Atualmente, assemelha-se em tudo a qualquer outra aldeia angolana, com pequenas casas de adobe e tetos de chapa, abundância de crianças e um quotidiano de ritmos lentos.

Junto a um ponto de água, várias mulheres fazem a recolha e mostram descontentamento com a escassez de comida, agravada desde que o Programa Alimentar Mundial (PAM) alterou as regras de distribuição de alimentos.

Por todo o campo são visíveis pequenos negócios, desde "cantinas" (mercearias improvisadas) que vendem de tudo um pouco, a bancas de roupa, sinal da resiliência e da vontade de muitos refugiados em garantir meios de subsistência.

As organizações não-governamentais parceiras do ACNUR apoiam formações em várias áreas: há escolas de agricultores, carpintarias, pequenas serrações, padarias com fornos solares, campos de cultivo de arroz em terrenos cedidos pelo Governo angolano, bem como escolas e centros de saúde que também beneficiam as comunidades locais.

Cerca de 30% dos atendimentos na clínica local, gerida pela Igreja Evangélica dos Irmãos em Angola (IEIA), são para a população angolana, conta à Mariano Cafelo, responsável da unidade, que presta cuidados de saúde primários, maternidade e até serviços funerários, atendendo quase mil pessoas por mês, sobretudo com queixas de malária.

Devido aos cortes no financiamento, a clínica já perdeu parte do seu pessoal médico e de enfermagem, passando de 62 para 31 colaboradores e "com a saída do ACNUR, tudo vai piorar", admite Cafelo, sublinhando que procuram alternativas para minimizar o impacto.

A educação é outro pilar: alguns refugiados, agora nas vestes de professores, dão aulas em salas geridas pela organização Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo (ADPP), frequentadas por cerca de 1.700 alunos. 

Michel Kalombo é um deles: fugiu da guerra em 2017 e vive no Lóvua desde então. Perdeu a mulher em Angola e diz que não pode voltar: "Tenho uma ferida no coração. Não posso regressar sem a minha esposa".

Sem documentos pessoais até agora, encara o futuro com serenidade: "Tudo tem um começo e um fim. O ACNUR ajudou. Agora, olhamos para o Estado".

É dia de exame final. Os alunos, com folhas brancas à frente, dividem-se entre a curiosidade tímida e os sorrisos traquinas para os repórteres antes de mergulharem na prova que marca o fecho do ano letivo.

Ninguém quer regressar à RDCongo --- dizem sentir-se em casa em Angola, onde querem permanecer.

A voz dissonante é a de Lukula Michel, o miúdo mais atrevido, que se aproxima dos jornalistas para revelar a sua ambição: não voltar ao Congo, mas ir para a Europa, onde "os países são mais organizados" e antevê a possibilidade de seguir as passadas de Lamine Yamal, a estrela do futebol espanhol que faz sonhar este jovem africano.

RCR // VM

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