Em tempos de promessas inflacionadas e diagnósticos ligeiros, a palavra “reforma” tornou-se um argumento em si mesma. Invocada por quem governa como símbolo diferenciador ou de determinação, tornou-se igualmente uma forma de retórica. Reformar o Estado é hoje, para muitos, o eufemismo que substitui aquilo que já não é politicamente vendável: a ideia de apenas emagrecer o Estado, de cortar na despesa social, de recentrar competências e de abrir portas à provisão privada.

O atual Governo, recém-saído das urnas, anunciou desde logo a ambição de reformar o Estado. No entanto, até agora, assim como nos últimos anos, o que se conhece são intenções vagas, encadeadas por um discurso de promessa fácil, sem um mapeamento claro dos problemas ou planos de médio prazo. O que se vai percebendo, porém, é o regresso da velha ideia de que é possível modernizar a esfera pública com menos recursos e sem reconfiguração estrutural. Ora, o Estado não é uma empresa. O seu propósito não é o lucro, mas o bem comum. Assim, o sucesso da sua conduta não se mede pela redução da despesa, mas pela ampliação da justiça social, da coesão territorial e da qualidade de vida.

Antes de qualquer proposta, impõe-se uma pergunta elementar: o que significa, afinal, reformar o Estado? É racionalizar as estruturas? É controlar os gastos públicos? É requalificar os serviços ou recentrar competências? É garantir igualdade no acesso ou facilitar a penetração de lógicas de mercado? Esta resposta, longe de ser técnica, é política e, muitas das vezes, cegamente ideológica. Reformar o Estado significa escolher onde fortalecer, onde adaptar e com que legitimidade democrática. A ausência ou omissão dessa escolha compromete qualquer reforma desde o primeiro momento.

O discurso reformista dominante vive de três ilusões:

i) A primeira é a da eficiência sem investimento. A ideia de que se pode fazer mais com menos não resiste à realidade, já que qualquer modernização exige meios, tempo, formação e estabilidade.

ii) A segunda é a da neutralidade técnica. Reformar é escolher com base em análises independentes e evidência sustentada, determinando previamente os impactos na distribuição de recursos, no acesso a direitos e na forma como se organiza o funcionamento das instituições.

iii) A terceira é a da despolitização, sendo necessário conhecer os centros de decisão reais e ter experiência de negociação com dirigentes.

Se o país quer realmente reformar o Estado, e não apenas cumprir o ritual discursivo de prometer reformas aparentes, é necessária a adoção de uma postura que reconheça o Estado como promotor da coesão e da justiça social, e não como um obstáculo à economia. Reformar o Estado exige diagnóstico, prudência institucional e ambição social. Nesse sentido, identifico eixos prioritários a considerar, nomeadamente:

· Recentrar o Estado nos seus objetivos públicos fundamentais: A primeira tarefa é política, não técnica. O Estado deve blindar áreas como a saúde, a educação, a proteção social, entre outras, contra gestões ineficientes, mas também face a estratégias de desresponsabilização ou de privatização infundadas. A reforma deve fortalecer as competências públicas nestes domínios, enquanto estado-providência, e não aliená-las.

· Planeamento plurianual e avaliação de políticas: Não se pode reformar o que não se conhece, nem se avalia. A criação de uma cultura de avaliação de políticas públicas, sustentada em dados, análises de impacto e ciclos de revisão periódica, permitiria corrigir desvios e selecionar as estratégias de implementação permanente no médio prazo. Tal requer uma reforma transversal do planeamento e das estratégias ministeriais, assim como a criação de um conselho externo independente de avaliação de políticas públicas.

· Integração funcional entre sistemas de informação, com interoperabilidade entre segurança social, saúde, finanças e emprego. A transformação digital do Estado não pode ser apenas tecnocrática, mas deverá facilitar efetivamente a vida dos cidadãos, garantindo maior transparência e reduzindo desigualdades no acesso. Tal implica tornar os serviços digitais verdadeiramente inclusivos e simplificar processos, garantindo a proteção de dados. Relembre-se o programa SIMPLEX, lançado em 2006, e que permitiu a implementação de medidas de simplificação administrativa como a existência de um cartão único (Cartão de Cidadão), a criação de lojas do cidadão, entre outras.

· Investimento qualificado nos recursos humanos do Estado: a reforma do Estado exige um novo modelo de gestão de pessoas, assente na transparência dos concursos; no reforço da atratividade das carreiras; e na progressão com base no mérito e no desempenho, e não apenas na antiguidade.

· Combate efetivo à opacidade institucional: nenhuma reforma será aceite socialmente se não tocar no nervo da confiança pública. A nomeação de dirigentes, a contratação de consultorias, a utilização de fundos públicos e os concursos públicos deverão ser totalmente transparentes e auditáveis. A criação de um portal nacional de transparência da administração pública é, por isso, urgente.

· Reformar não é somente “cortar”: Finalmente, é preciso abandonar de vez a ideia de que reformar é apenas cortar. Uma reforma séria não é uma medida de austeridade disfarçada, exigindo investimento de transição, negociação com os trabalhadores e tempo de adaptação.

Estas medidas, assim como outras, ainda que ambiciosas, exigem deixar de ver o Estado como um peso e começar a vê-lo como um garante da equidade, da eficiência e da capacidade transformadora da ação pública. A verdade é que Portugal não está perante um problema de excesso de Estado, mas sim de insuficiência de planeamento, de défice de transparência e de inércia nas estruturas que deviam estar ao serviço do país.

Os sucessivos governos, querendo, de facto, deixar um legado, terão de abandonar a tentação de reformar à pressa, à superfície e à margem do fundamento. É necessária coragem para fazer diferente, reconhecendo que nenhuma mudança estrutural se faz sem estabilidade orçamental, sem contrato político e sem legitimidade democrática alargada. A reforma do Estado exige capacidade de diálogo com os partidos, com os sindicatos, com a academia e com a sociedade civil. Não é uma operação de cosmética política, mas uma operação de responsabilidade histórica.

Deste modo, o que está em causa é muito mais do que um conjunto de medidas administrativas. É o modelo de sociedade que queremos. Um Estado que apenas assegura o mínimo, ou um Estado que garante igualdade de oportunidades? Um Estado que transfere para o mercado, ou que corrige os desequilíbrios que o mercado acentua? Um Estado que se retira do seu papel, ou um Estado que se transforma para ser mais eficiente, estando mais presente e colmatando necessidades?

É necessário, sim, reformar o Estado para o fortalecer, para o tornar mais justo, mais eficiente e eficaz, mais próximo dos cidadãos. Não se trata apenas de cortar gorduras, mas de redistribuir forças. Não se trata de prometer mais com menos, mas de fazer melhor com os meios certos e com os princípios corretos. É esse o desafio que este Governo tem nas suas mãos.