A “Reforma do Estado” é um tema que regressa ciclicamente à agenda política portuguesa, por vezes impulsionado por crises orçamentais, pressões externas ou pela necessidade de relançar narrativas de eficiência e modernidade. Apesar dessa intermitência de políticas, a modernização do Estado português tem avançado, ainda que lentamente.

A modernização do Estado português é uma história que remonta pelo menos ao final do século XIX, com a gradual institucionalização de estruturas administrativas modernas e a profissionalização do serviço público. No século XX, este processo intensificou-se, acompanhando as mudanças políticas, económicas e sociais que moldaram o país. Após o 25 de Abril de 1974, o Estado Democrático consolidou-se, e com ele a necessidade de responder a uma sociedade em transformação, mais exigente e participativa.

A partir dos anos 90, Portugal começou a dar passos mais firmes no sentido da modernização digital da Administração Pública, impulsionado pelo contexto europeu e pela globalização. O programa Simplex, lançado em 2006, representou um momento simbólico e prático desta mudança, introduzindo medidas concretas de simplificação administrativa e de utilização da tecnologia para aproximar o Estado dos cidadãos, como por exemplo o Cartão do Cidadão ou a Loja do Cidadão. Seguiram-se, mais recentemente, o IRS automático, a chave móvel digital ou a carteira de documentos digitais.

Este percurso revela avanços incontestáveis, mas também mostra uma realidade paradoxal: apesar dos progressos tecnológicos, a transformação estrutural do Estado permanece lenta e fragmentada. Muitas vezes, a digitalização limita-se a “colar” tecnologia em processos antigos, sem provocar a verdadeira revolução no funcionamento do Estado.

O país precisa, portanto, de um Estado capaz de se adaptar às complexidades e desafios do século XXI, mantendo a sua missão pública, mas abandonando os processos que impedem a eficácia e a proximidade com o cidadão. Isso significa redesenhar processos, eliminar redundâncias, promover transparência, antecipar necessidades, gerar confiança e simplificar o relacionamento dos cidadãos e empresas com os vários organismos públicos.

O desafio é claro: como passamos da estratégia à ação? Como conseguimos que a transformação digital deixe de ser uma ambição difusa e fragmentada a várias velocidades para se tornar num catalisador de mudança estrutural de todo o setor público?

Dois desafios estruturais impõem-se com nitidez e urgência. O primeiro é a integração do digital em todas as políticas públicas, como fator transversal de transformação e não como acessório técnico. O digital está na saúde, na educação, na justiça ou na mobilidade. Para que essa integração seja real e eficaz, é indispensável um modelo de governação digital com coordenação política ao mais alto nível — idealmente sob a tutela direta do Primeiro-Ministro e com presença regular no Conselho de Ministros. O segundo desafio é assegurar a sustentabilidade institucional da política digital, para que esta não dependa de ciclos políticos, agendas conjunturais ou lideranças individuais. Só com estruturas permanentes, capacitadas, com mandato claro e transversal, recursos estáveis e competência técnica será possível conduzir uma transformação digital coerente, ágil e duradoura.

No campo simbólico da política, a arquitetura governativa comunica tanto quanto os programas. O que é elevado a ministério, o que permanece como secretaria de Estado, o que é agrupado ou separado — tudo isso expressa prioridades e visões sobre o futuro. Não há verdadeira simplificação administrativa sem transformação digital. E não há transformação digital eficaz sem uma revisão crítica dos processos, das normas e dos procedimentos. São duas faces do mesmo desafio: modernizar o Estado por dentro, tornando-o mais ágil, transparente e centrado no cidadão. Tratá-las como domínios paralelos, sob tutelas distintas e sem liderança política clara e coesa, é, na melhor das hipóteses, desperdício de energia e recursos. Na pior, um erro de conceção que compromete a própria reforma do Estado. A transformação do Estado não pode ser um somatório de iniciativas técnicas — exige uma visão integrada, estruturada e duradoura, capaz de romper com a fragmentação institucional que tantas vezes bloqueia o essencial: a capacidade de execução.

Portugal não tem falta de planos, tem falta de execução

Essa necessidade de visão integrada e duradoura estende-se à própria execução das políticas públicas. Portugal não sofre de falta de planos, estratégias ou investimentos — o problema está na execução. Entre o Simplex, os sucessivos planos de ação, as estratégias para o digital e os investimentos previstos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), não faltam diagnósticos, metas ou intenções. Mas a verdadeira diferença entre países digitalmente avançados e os que permanecem presos a lógicas analógicas não está nas ideias — está na capacidade de as concretizar.

E é precisamente aí que reside o nosso maior défice. Ainda na semana passada, a Recuperar Portugal divulgou um relatório preocupante sobre os atrasos na execução do PRR. Em tempos de normalidade, este tipo de dados teria dominado o debate público. Hoje, reina um silêncio quase cúmplice. Como se a execução — essa dimensão concreta, árdua e determinante das políticas públicas — fosse secundária face ao ruído dos ciclos mediáticos e à teatralização da política. Estamos a falar de mais de 2,7 mil milhões de euros em projetos de transição digital para empresas, para o Estado e para a capacitação de competências digitais dos cidadãos. Iniciativas como as Agendas Mobilizadoras ou as Test Beds, pela sua ambição e potencial impacto, deveriam ocupar lugar central na agenda pública.

Aliás, a transformação digital no seu todo, apesar de ter sido uma prioridade política nos anos que antecederam, atravessaram e sucederam à pandemia de COVID-19, parece hoje ter perdido fulgor na agenda pública nacional e europeia. A resposta da Comissão Europeia à crise pandémica, marcada por um congelamento sem precedentes do comércio global, foi corajosa: ancorar a recuperação económica da Europa em duas transições estruturantes — a verde e a digital. Foi nesse contexto que lançou a Década Digital 2030.

Entretanto, a Europa voltou a ser assombrada pela guerra — e com ela, regressou a centralidade política da segurança. Como tantas vezes na história europeia, a pressão orçamental, diplomática e simbólica tem empurrado os grandes eixos transformadores para as margens. Esta oscilação estratégica — em que projetos de longo prazo são sistematicamente substituídos por urgências conjunturais importantes — fragiliza a capacidade da União Europeia de afirmar um rumo autónomo, coeso e sustentável. Sem consistência e sem uma especialização tecnológica clara, a Europa arrisca-se a permanecer numa posição periférica e dependente face a blocos externos — dos EUA à China — cujas prioridades nem sempre se alinham com os valores europeus nem com a estabilidade institucional dos seus membros.

Respeitando a diversidade económica e estrutural dos seus Estados-membros, a União precisa urgentemente de uma estratégia tecnológica comum, partilhada e duradoura, assente em investimento coordenado em áreas-chave do digital.

O futuro do Estado português e a transformação digital da economia não podem continuar reféns das oscilações políticas e dos ciclos de oportunidade. Portugal deve assumir, com coragem e clareza, a liderança da sua transformação — não só para acompanhar a Europa, mas para se afirmar como exemplo de Estado moderno, eficiente e próximo do cidadão. Num mundo de rápidas mudanças e incertezas globais, a transformação digital é, em última análise, uma questão de soberania, justiça social e futuro coletivo.