Quando Mario Draghi acabou de apresentar o relatório mais esperado em Bruxelas, uma jornalista perguntou-lhe se a alternativa é a Europa fazer o que ali está, naquelas mais de 400 páginas, ou morrer. “Não”, disse Draghi, “é fazer isto ou continuar em lenta agonia” até lá.

Conhecendo Bruxelas, a lenta agonia é uma possibilidade, mas não se fazer nada do que ali está não é. Se há uma coisa de que a política europeia gosta é de fazer coisas. De legislar, de planear, de investir. E o relatório Draghi dá-lhe isso tudo. Em especial à Comissão Europeia e a Úrsula Von der Leyen, que o encomendou. E ao Parlamento Europeu, que tem ali muito material com que bulhar com os governos nacionais (um dos desportos preferidos dos Deputados europeus), que terão de suportar a maior fatia da conta apresentada pelo ex-presidente do Banco Central Europeu.

Nem um dia depois da apresentaçaõ do relatório, poucos terão lido todo o seu conteúdo, e menos ainda digerido o que para ali vai de diagnóstico, conceitos e recomendações. Mas há muita coisa que já se percebeu. E muita mais que terá de ser lida, discutida e tratada politicamente com tempo e ponderação. O diabo, ou não, está mesmo nos detalhes, que são muitos. Mas comecemos pelas grandes linhas.

A China é o nosso adversário, mas os Estados Unidos da América são o nosso concorrente. Precisamos de dinheiro, de muito mais dinheiro do que alguma vez investimos, para nos aproximarmos do nível de desenvolvimento tecnológico da economia americana e para tornar a transição verde numa oportunidade e não num custo apenas insuportável. Precisamos de realismo nas relações com o resto do mundo, para fazer comércio com quem tem o que queremos, deixarmos investir na Europa quem tem dinheiro e faz bem e barato o que queremos consumir (a China), e para fechar as portas, pela regulação, pelas tarifas ou pelo nosso investimento, a quem compete onde queremos ser autónomos ou vir a ser líderes. No interior da União Europeia, o mercado interno é muito importante, mas é ainda mais importante haver empresas com escala europeia, mesmo que à custa de outras com apenas escala nacional. Os governos têm de baixar o custo da energia e entregar mais dinheiro à União Europeia, seja através dos seus contributos, de novos recursos próprios da União (ou de dívida comum, mas não se vai dizer isso já).

É difícil resumir o relatório Draghi e é, além do mais, pouco avisado fazê-lo. Em muitas passagens, são muito mais importantes os detalhes do que apenas as grandes ideias. Essas nem são todas ou completamente originais. Mas as recomendações sector a sector, indústria a indústria, têm de ser lidas com atenção por quem tem responsabilidades em todos os que são ali referidos. E nos que ficam de fora (como o mar, ou a agricultura que mal se vê). Na banca e nos fundos de investimento; nas indústrias intensivas de energia, na produção, armazenamento e distribuição de energia e na construção de redes energéticas; nas telecomunicações e nas tecnológicas; nas indústrias de defesa; nas start-ups; e até nos escritórios de advogados onde se fazem ou desfazem fusões, aquisições e defesa de auxílios de Estado em nome da concorrência.

Apesar da dificuldade do resumo, o próprio Draghi fá-lo, apontando três prioridades: aproximar o investimento europeu na inovação do americano; fazer da descarbonização uma oportunidade económica, que era a promessa do Green Deal, até ao dia em que os coletes amarelos sairam à rua, os agricultores bloquearam as estradas e a Volkswagen anunciou fecho de fábricas; e ter uma estratégia de menor dependência externa crítica, o que implica uma “política externa económica”, que quer dizer ser mais amigo de uns países, menos dependente de outros e mais concorrente do que temos sido dos nosso aliados americanos.

Para Úrsula Von der Leyen, que o encomendou, o relatório tem várias virtudes políticas. Protege a sua agenda política, dando-lhe um manto de credibilidade, não ideologia e urgência. Além disso, coloca as grandes decisões, as mais difíceis e custosas, nas mãos dos Estados membros. Que ou fazem o que o relatório recomenda, e transferem poder, dinheiro e capacidade de excução para a Comissão Europeia, ou serão responsáveis pela “lenta agonia”. Tem ainda outra virtude, que só interessa a quem acompanha a política de Bruxelas - alguns - e quem a devia acompanhar - quase todos: o Parlamento deverá ser o grande aliado do relatório e da Comissão na discussão com os Estados membros.

Seguir-se-á muita discussão do tipo norte vs sul; pró-mercado vs intervencionistas; países centrais com muitas fronteiras e ligações vs países periféricos; produtores de energias (e quais delas) vs importadores de energia; industrializados e industrializáveis vs desindustrializados; países da coesão vs países ricos que podem precisar de investimento europeu para não se desindustrializarem e terem hubs de inovação regionais em indústrias fundamentais (leia-se Alemanha e a indústria automóvel), e por aí fora. Pouco será pacífico ou consensual. Quase nada será irrelevante. Portugal…