
O resultado das eleições do dia 18 de maio provocou uma mudança relevante no panorama político português. O PSD ganha, o Chega pode vir a ter mais um deputado do que o PS, mas o socialistas são o segundo partido em votos que é o que conta verdadeiramente.
Há, contudo, uma diferença muito grande quando comparamos as forças partidárias – o PS é um partido com gente em todos os cantos do país, com dezenas de municípios e quase dois milhares de freguesias. Seria importante que se fizesse uma análise mais fina dos resultados, que se constatasse que as grandes frases da noite eleitoral e a ideia televisionada das perdas podem não ser completamente verdadeiras. Seria, ainda, muito relevante saber porque é que muitos dirigentes socialistas se recusaram a votar em Pedro Nuno por esse Portugal fora.
Sobre o país real dou um exemplo: o Chega venceu nos círculos de Faro, Setúbal, Beja e Portalegre e eu afirmo, hoje, que em setembro próximo o PS ganhará, pelo menos, em 8 dos 16 municípios do Algarve; em 12 dos 14 concelhos do distrito de Beja; em 8 dos 13 municípios de Setúbal; e em 8 das 15 câmaras de Portalegre.
Dirão com um sorriso – temos um novo Zandinga! Não, de todo, só a experiência de quem conhece a realidade local, quem são os autarcas, quem vai a jogo. O PS é muito mais no terreno do que alguns diletantes que nos oram todos os dias na TV. As classes dominantes (uso Marx para provocar) que falam nas televisões, fazem a sua opinião através de discussões em circuito fechado, não conseguem sentar-se no café e perguntar ao comum o que se passou verdadeiramente no domingo. Foi isso que fiz com as amigas de meus pais, gente simples, no dia de ontem.
Vou ouvindo que o cenário político português é hoje muito complicado porque o Chega veio trazer o fim do mundo. Para quem anda na vida das campanhas eleitorais desde 1975; quem começou a organizar a JS num distrito onde só havia uma câmara socialista, em catorze, no ano de 1979; quem viu a desgraça dos resultados das legislativas de 1979 e 1980 e proclamou o regresso do fascismo; quem assistiu ao Bloco Central sem sentir que o PS também estava nesse Governo; quem viveu os dez anos de cavaquismo com forte penalização pessoal e proclamando, novamente, o regresso do fascismo; quem colocou, aos 29 anos, a sua própria cara em cartazes nas autárquicas de 1993, coisa que poucos quadros partidários aceitam fazer hoje, sempre direi que andam quase todos, políticos, jornalistas, comentadores e outros atrevidos, a falar do que pouco sabem. E fazem esses exercícios a partir de benchmarking com premissas falsas. Ao termendismo do comentariado deve, portanto, reagir-se com lucidez e não com medos e proclamações vazias.
Não há no mundo ocidental uma frente única de extrema-direita, há muitas realidades específicas de cada país e com respostas diferentes perante cada realidade. Será muito pertinente que se atue localmente e não se proclamem fantasmas globais. Fazer comparações entre Portugal e outros estados europeus só pode advir do pensamento de quem nunca leu Eça de Queiroz.
Até 1995, o PS tinha o PCP no seu lado esquerdo a tratá-lo, belicamente, como um partido de direita. Sobreviver no Alentejo e na Península de Setúbal era de heróis. Do outro lado, toda a extrema-direita ultramontana e salazarista, com vários tipos e feitios, estava dentro do CDS e do PPD. A Igreja, controladora das almas, e o caciquismo imperavam a norte do Tejo. Era bem mais dura e mais sentida a sua ação do que é hoje o comportamento do insuportável e inqualificável Chega.
Há quem diga que o cavaquismo foi o grande promotor da liberdade de imprensa. Só um sorriso posso esboçar perante tamanha alarvidade. O cavaquismo foi o grande usufruidor de uma televisão e uma rádio públicas controladas politicamente por Marques Mendes e quase sem concorrência. Só em 1993, a dois anos do seu fim, é que apareceram as televisões privadas e as rádios locais, em rede como a TSF, se afirmaram nacionalmente. O país era, na comunicação, completamente fechado e controlado pela direita. Os jornais locais eram da Igreja e de senhores feudais que apoiavam a direita salazarista. E tinham passado já duas décadas desde o 25 de Abril.
Só com as três décadas das governações socialistas é que o país se abriu, se fez livre no pensamento e na ação. Quase toda a tralha radical de direita passou à clandestinidade. Mas voltariam logo que possível, como voltaram.
Há quem diga que as redes sociais são o campo onde prospera a extrema-direita. Não nego a sua importância. Mas sempre quero lembrar que a penalização pelo exemplo e o boato foram sempre muito fortes e presentes em todas as campanhas até ao início deste século XXI. Há estudos sobre isso, essas práticas tinham efeitos muito mais penalizantes do que as redes sociais. Não devemos usar as redes para as fazermos propriedade dos extremos, devemos usá-las com vantagem como o provam muitos partidos democráticos moderados. As direções de Costa e Pedro Nuno nunca quiseram saber desta nova realidade, nunca adequaram a imagem e o discurso aos tempos de hoje.
Conto só uma história pessoal. Quando em 1993 eu fui candidato a presidente de uma câmara capital de distrito, o PPD/PSD, no poder, retirou a pensão de reforma de minha mãe só a devolvendo depois das eleições e, ao mesmo tempo, fazia, através do boato, caricaturas sobre a minha pessoa que perduram até hoje. Eram tipos de intimidação que aplicavam aos militantes do PS. Na noite do apuramento eleitoral, o PS, somados todos os resultados das mesas de voto, ganhou a câmara, mas não apareciam as atas de duas freguesias. Foi uma chapelada que fez virar o resultado. O mesmo aconteceu com António Costa em Loures, aí com a ação do PCP. Tudo isto era muito pior do que o que vivemos hoje.
Foi nesse caldo que o PS se refez dos resultados de 1985 e 1987. Com uma direita radical que intimidava e que batia, com uma esquerda comunista, profundamente ultraconservadora e tradicionalista, que amarfanhava os socialistas democráticos através das autarquias e dos sindicatos. Há, até, um dado muito curioso – em 1987, na primeira maioria de Cavaco, o PPD/PSD, o CDS e o PRD tiveram, juntos, 159 deputados; nas eleições do domingo passado, a AD, o Chega e a IL, somados, têm exatamente o mesmo número de deputados.
A campanha presidencial de 1985 foi a grande separação entre o socialismo democrático e os socialismos comandados pelos extremos. Soares, ao ganhar a Pintasilgo e a Zenha, abriu o caminho para o PS de governo dos últimos trinta anos. Antecipou-se, nessa altura, que haveria gente vinda do trotskismo a iniciar um processo de captura, por dentro, do PS. Era habitual dizer-se nas sedes que seria a transformação em Partido Berdadeiramente Xuxialista - PBX.
Em 1989 viu-se uma nova tentativa a partir de algumas bases do sampaísmo. Foi derrotada no congresso de 1992. A partir de 2002, voltariam a fazer uma outra investida e foi o próprio Jorge Sampaio, agora Presidente da República, a impedir que assim fosse, já em 2005.
Com a Geringonça a ameaça passou a ser muito maior. Porém, muitos socialistas convenceram-se que o tempo de radicalismo de Pedro Nuno Santos tinha passado com a idade e a experiência de Governo, mas foi um erro de análise que eu e muitos cometemos. Como se viu na campanha eleitoral, estava lá tudo e em doses maciças, somando as lutas identitárias e o elitismo urbano que nega o direito de existência do espaço rural, o país das tradições e as vidas anónimas das periferias e sempre o Estado avassalador. Pedro Nuno não é o principal responsável, mas não limitou o entorno. Neste ano que passou, o PS teve dentro do núcleo duro uma erva daninha comandada do exterior que produziu um dano incalculável. Esse personagem chama-se – Hugo Mendes.
Ao longo destes meses foram muitas as pessoas que perguntaram o que estava a acontecer com o líder do PS, com a sua descolagem da realidade. Só se pode dizer que não foi por falta de apoio, ajuda, propostas que ele não vingou. Rejeitou tudo o que vinha do país real e inventou um país imaginário.
A História do PS e da democracia foi muito martirizada pelo período posterior a 2015. A ideia de que tinha passado a existir uma só esquerda sempre foi contranatura, sempre foi antipatizada pela maioria dos portugueses, essa comunidade que há nove séculos resiste, como nenhuma outra, aos extremismos. As coisas chegam cá sempre muito tarde? Lamento dizer, mas quando chegam já são “café com leite”. Nós somos um país que nunca entrou numa guerra grande, que sempre se sentiu “protegido”. Mudar esta realidade demora muitas décadas, estou até muito ciente de que nem sequer mudará sobremaneira. Podemos mudar tudo, menos de povo. É exatamente aqui que tudo o que escrevem Daniel Oliveira e Paes Mamede, e que era seguido como cartilha pela direção socialista, se transforma em inconsequência.
Por tudo isto, olhando para os pouquíssimos que ainda estão no PS e que viveram todo este longo tempo, não aceitando o que muitos dos que se dizem históricos nos querem impingir, até porque vieram tarde dos partidos extremistas e lutaram contra o PS de Soares, sempre direi que os socialistas democráticos portugueses são bem mais agregados ao território do que muita gente pensa. O grande partido da esquerda democrática e moderna vai voltar em força.
Olho, apesar de tudo, com desassossego, para o que aconteceu nestas legislativas. Há muita gente que saiu do barco que comandou o partido até domingo e já está a “abanar a pevide” no novo paquete que se avista. São os sobreviventes. Só que o PS só precisa dos sobreviventes para agitarem bandeiras. Do que precisa mesmo é de gente que pense, que saiba agir sem pressas e tendo como objetivo, a médio prazo, regressar à liderança do governo. E pessoas que conheçam bem todo o país real, todo o país e não só a freguesia e o município…
No domingo houve transferência de votos do BE (que quase se extinguiu), para o PS (muitos) e para o Livre; do PCP para o Chega; do PS para o PSD (os que queriam estabilidade) e para o Chega (os que não queriam Pedro Nuno nem Montenegro); do PSD para o Chega (os que se fartaram de Montenegro e não viam no PS uma alternativa). Este foi o movimento. Ou seja, o Chega somou aos votos que já tinha tido há um ano os eleitores que detestam Pedro Nuno e Montenegro.
No novo parlamento, o PS tem de desistir de falar quase em exclusivo para o Chega, de se levantar da cadeira ao mínimo insulto, de passar a ignorar as seis dezenas de indivíduos que se sentam do lado direito do plenário. A única coisa que vale, nestes próximos quatro anos, é a oposição leal, com alternativas políticas e com capacidade de diálogo. Terminou o tempo da excitação, do histerismo e das palmas frentistas. O Livre não é nosso amigo e os discursos do “padre” Tavares não são mais do que fel para os socialistas.
Também não tem condições de exigir, por agora, o que quer que seja na eleição do Presidente da Assembleia da República, na validação do programa do Governo, na aprovação dos dois primeiros Orçamentos do Estado. E não pode voltar a usar a palavra “spinunviva”. Os socialistas, como aconselharia Jaime Gama, devem mergulhar fundo e deixar a onda passar.
Importa diplomacia e cuidado para que não se entreguem ao Chega os espaços de acompanhamento dos serviços de informações, da segurança e da justiça. Seria trágico.
Não estou com isto a desprezar o efeito Chega na política portuguesa. Estou só a pô-lo no seu devido lugar. Os votantes do interior que se sentem abandonados pelo Estado que os manda ir à internet para tratarem dos seus problemas, os eleitores da agricultura e das pescas de quem ninguém fala, os portugueses dos concelhos marginais das áreas metropolitanas que deixaram de sentir que contam para alguma coisa, todos estes são a base de transferência do PCP e do PS para Chega. Não podemos andar só lá por cima, importa descer.
Em Portugal, o PS não teve este resultado por ter feito políticas liberais, não saiu derrotado por não ter apresentado um “verdadeiro” projeto de esquerda, não passou a terceira força parlamentar por não ter obedecido aos grandes ideólogos neomarxistas. O PS fez o contrário e sucumbiu estrondosamente. Acabou, com este exemplo português, o argumentário que as franjas mais extremistas e libertárias dos partidos socialistas e sociais democratas europeus inventaram, no início deste século, para afirmarem o seu elitismo e incompetência.
Não continuem a dizer asneiras e a levantar os punhos ostensivamente. Até em Cuba já quase ninguém usa as boinas de Che Guevara e os democratas americanos são o pior dos exemplos. Ser moderado é o único caminho para o futuro.