Quem são os atuais “homens hediondos”? Criaturas asquerosas, repugnantes, monstruosas, de mundos distantes dos nossos? Ou pessoas como nós? E com quem nos relacionamos diariamente, no trabalho, nos transportes, nos cafés, em casa?

Essa imensa maioria que perpetua os mesmos comportamentos e relações de poder, e cuja violência muitas vezes aceitamos em nome da “estabilidade” e do “nosso estilo de vida”, privilégios, cultura, sistema, hábito?

Matilde Fieschi

Nuno Cardoso dá corpo a um desses homens hediondos, que vivem entre nós, num solo escrito por Patrícia Portela a partir do livro “Breves Entrevistas com Homens Hediondos” (1999), do escritor norte-americano David Foster Wallace, para nos confrontar com aqueles momentos em que somos apanhados a tolerar um sistema desigual, misógino e machista que muitos de nós condenamos.

Nuno é o ator camaleão que confronta o público com vários monólogos de personagens masculinas que se vão transformando em “homens cada vez mais hediondos”. Banalmente hediondos. Familiarmente hediondos.

Matilde Fieschi

Com certos comportamentos horrendos, que tendem a ser normalizados e glorificados. E tantas vezes nos soam a alguém muito próximo.

Até que ponto seremos capazes de reconhecer nestas histórias e nesses homens, a nossa própria história e a dos nossos? Até que ponto temos coragem para nos olhar por dentro e do avesso e reconhecer o nosso machismo estrutural e profunda incapacidade para sermos seres humanos decentes em todos momentos das nossas vidas?

Seremos capazes de nos olharmos ao espelho de forma honesta e dolorosa — mas necessária? A pergunta é-lhe colocada.

Matilde Fieschi

O que parece certo é que esta peça pretende ser uma reflexão conjunta e não quer polarizar o mundo entre bons e maus. Não é um nós e os outros, mas sim um exercício de reflexão e confronto com certos comportamentos tóxicos, desiguais e violentos que tantas vezes por razões culturais e sociais se perpetuam.

A peça foi estreada no final do ano passado no Teatro Nacional São João, no Porto, e será agora apresentada de 2 a 4 de maio, no Teatro Variedades, em Lisboa. Se ainda não têm bilhete, e não a viram, não percam a oportunidade.


Matilde Fieschi

Esta conversa em podcast começa precisamente pelo tema desta peça que, de múltiplas maneiras, continua profundamente atual, violentamente atual e afeta tanta gente. Maioritariamente mulheres.

E sobre isso é perguntado ao ator e encenador Nuno Cardoso como foi o processo de trabalho deste monólogo e até que ponto o grupo de homens hediondos que representa o confrontaram com as suas próprias arestas, contrastes e monstros e reconheceu algumas características em si ou nos muitos homens que o rodeiam.

Pode o teatro, e uma peça como esta, desconfortar, questionar, virar-nos o espelho até e, ao mesmo tempo, ser construtivo e abrir mais espaço para o pensamento, para o diálogo e para relações mais saudáveis e iguais entre géneros, sem abrir mais trincheiras?

Nuno Cardoso foi nos últimos anos diretor artístico do Teatro Nacional São João, no Porto, entre 2019 e o final de 2024.

E é há muito considerado um dos encenadores mais interessantes e inspiradores portugueses da atualidade, com disponibilidade para o risco, atento à comunidade, com um trabalho eclético, seja nas suas encenações ou interpretações, a que se somam tanto textos clássicos como contemporâneos.

O que mudou na sua forma de olhar para o teatro e de fazer teatro depois de seis anos enquanto diretos do Teatro Nacional São João?

O que muda quando um encenador com alguma vocação para o risco, passa a estar frente a uma das instituições com mais talha dourada?

O facto de ter sido diretor de uma instituição canónica, e de se ter tornado cânone, mudou a maneira de pensar os espetáculos? A revolução faz-se por dentro? Ou a sua luta mudou? Nuno responde.

Na memória de muitos ficou a recente encenação de “Fado Alexandrino”, com texto de António Lobo Antunes sobre o 25 de Abril, num espetáculo que Nuno criou dedicado ao pai, para dar voz aos 50 anos de silêncio do país com as feridas que ficaram por sarar da Guerra Colonial em África, como as mortes, a violência e o racismo em português, ou a experiência de se ser retornado das ex-colónias, com uma mão à frente e outra atrás, como aconteceu consigo e com os seus pais, que voltaram ao país retornados de Moçambique.

O que ficou por contar na história dos colonos retornados e que revolução está por fazer ou cumprir?

No currículo de Nuno Cardoso, destaca-se o prémio que recebeu em março de 2016 da Sociedade Portuguesa de Autores para Melhor Espetáculo do Ano, com “Demónios”, de Lars Norén. E a sua ligação a trabalhos experimentais e com comunidades locais.

Matilde Fieschi

Matilde Fieschi

No início de tudo, na sua história, está Canas de Senhorim, vila onde nasceu, no concelho de Nelas, distrito de Viseu. Foi com a professora ‘Dona Nelas’ que percebeu aos 8 anos a importância do voto, quando ela desafiou a sua turma da 3ª classe a escrever uma composição e a votar na melhor.

Nuno foi o segundo aluno mais votado da turma, mas acabou por ser o escolhido da professora para representar a nível nacional a sua escola e ganhou.

E logo aí deu-se conta do que era racismo, porque o seu colega mais votado pelos colegas, o ‘Rogério’, não fora o escolhido pela professora, visto que era o escurinho da turma.

Como disse Nuno no monólogo do espetáculo biográfico “Achadiço” (termo regional das beiras para quem não encaixa), o seu colega Rogério, um menino moçambicano, ‘acantonado’ numa pensão com mais 150 pessoas, nunca teve hipótese, “porque as folhas em branco não têm possibilidades infinitas.”

E Nuno conta que também ele, apesar de branco, também sentiu na pele por várias circunstâncias que era um “achadiço”, alguém que não cabia nos lugares onde foi crescendo.

Já que começou por tirar Direito, em Coimbra, enquanto sonhava secretamente ser bailarino. Mas como ele diz, se assumisse tal vontade no final dos anos 80 à família ou o levavam a falar com um padre, a um bruxo ou a uma reunião sobre os valores da família. Neste episódio, o ator volta a esse lugar.

Nuno começou a fazer teatro em 1994 na universidade, no CITAC, e decidiu mandar o curso de direito às urtigas, na mesma altura em que soube que Ayrton Senna morreu.

No mesmo ano, começa a trabalhar no Porto e ajuda a fundar o “Visões Úteis”, um dos grupos independentes mais marcantes das últimas décadas.

Em 2001, aparece como um dos fundadores do “Ao Cabo Teatro”, onde assume o cargo de diretor artístico. Ali leva ao palco alguns grandes clássicos, como Sófocles, Ésquilo, Racine, Molière, Tchékhov, mas também Ibsen, O’Neill, Tennessee Williams, Dürrenmatt, Sarah Kane, Lars Nóren e Marius von Mayenburg. Nesse caminho, foi também diretor artístico do TECA, Teatro Carlos Alberto - a menina dos seus olhos.

Qual é a importância do teatro, do ator e da representação nos tempos que vivemos em que os palcos com mais público andam nos aparelhos que levamos no bolso e no plasma que ligamos em casa?

A aposta na Cultura em Portugal continua sob um grande apagão?

E neste ano cheio de eleições, corremos o risco de eleger ou fazer aumentar no país certos homens hediondos? O que espera Nuno Cardoso destas próximas eleições? O teatro é para si uma arma política e social? O ator e encenador responde a tudo isto.

E, no final da primeira parte, Nuno Cardoso é surpreendido com um áudio surpresa da encenadora, escritora e dramaturga Patrícia Portela.

Matilde Fieschi

Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Matilde Fieschi. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.