A investigação da organização não-governamental (ONG) Lighthouse Reporters, com sede nos Países Baixos, e dos jornais El Pais (espanhol), Le Monde (francês), Der Spiegel (alemão) e Enass (marroquino), levou cinco meses a ser concluída e incluiu visionamento e acesso a 145 vídeos registados naquele dia na fronteira da cidade espanhola de Melilla com Marrocos.

Além disso, foram ouvidos cerca de 40 testemunhos, incluindo 35 de sobreviventes da tentativa de salto da vedação fronteiriça e "altos chefes" da força policial espanhola Guarda Civil.

Os jornalistas que participaram nesta investigação reconstruíram os acontecimentos de 24 de junho, quando perto de 2.000 pessoas que queriam entrar em Espanha avançaram para uma zona da fronteira (que está integralmente vedada, em todo o seu perímetro), tentando aceder a um posto fronteiriço encerrado há mais de dois anos.

Neste local, para lá da primeira vedação, existe um portão sobre a linha de fronteira entre Espanha e Marrocos.

Segundo a investigação hoje conhecida, centenas de pessoas conseguiram aceder, no lado marroquino, a este recinto onde está o portão e foram cercadas pela polícia de Marrocos sem conseguirem retroceder nem avançar.

A polícia marroquina lançou pelo menos 20 granadas de gás lacrimogéneo para dentro deste recinto fechado durante um período de oito minutos, segundo a investigação, que garante que também agentes espanhóis da Guarda Civil fizeram o mesmo.

O gás lançou o pânico entre as pessoas que estavam no recinto, que se aglomeraram em redor do portão fronteiriço que, entretanto, conseguiram abrir usando rebarbadoras.

Foi nesse momento que centenas de pessoas se precipitaram para a abertura e tentaram cruzar para o lado espanhol, levando a que muitos caíssem e fossem pisados e esmagados.

Só a polícia marroquina entrou neste recinto e os testemunhos relatam como agrediram as pessoas que ali se encontravam, algumas delas já inconscientes e desorientadas por causa do gás lacrimogéneo e por terem sido empurradas e pisadas.

As imagens mostram pessoas amontoadas, sem conseguirem mover-se, algumas inconscientes, e como os polícias marroquinos recolheram corpos, mesmo para lá da linha de fronteira, ou seja, arrastando-os desde o lado espanhol.

Segundo os testemunhos recolhidos para esta investigação, pelo menos um desses corpos arrastados era de um homem morto, e ouve-se uma conversa entre os polícias marroquinos dizendo que uma daquelas pessoas está morta.

Algumas das imagens dentro do recinto fechado foram filmadas por um 'drone' (aparelho aéreo não tripulado) e um helicóptero da Guarda Civil, confirmando-se assim, segundo esta investigação, que as autoridades espanholas sabiam o que se estava a passar do outro lado da fronteira.

A Guarda Civil nunca entrou naquele recinto e centrou-se em controlar perto de 500 pessoas que cruzaram o portão, conseguindo acantoná-las, com imagens a confirmarem relatos de que também elementos da polícia espanhola agrediram algumas destes homens.

Os relatos contam como lhes ataram as mãos e os passaram, "um a um, para o lado marroquino", em 470 entregas sumárias que o Governo espanhol diz serem legais.

O Governo de Espanha tem negado que tenha havido mortes em território espanhol.

Além de 23 mortos reconhecidos oficialmente por Marrocos, a investigação hoje divulgada diz que 77 pessoas que tentaram saltar a fronteira de Melilla em 24 de junho estão desaparecidas, segundo as famílias.

Apesar de as imagens mostrarem ambulâncias nos dois lados da fronteira, nenhuma assistência parece ter sido dada a feridos.

As centenas de pessoas detidas e entregues a Marrocos ficaram amontoadas e imobilizadas, no chão, durante horas, sob o sol e violência da polícia, antes de serem levadas em autocarros para diversas cidades marroquinas, segundo as imagens e os testemunhos.

Numa resposta a esta investigação, o Governo espanhol reiterou não ter havido mortos no lado de Espanha e negou que a Guarda Civil tenha agredido migrantes.

O Governo de Madrid voltou a dizer que a resposta policial, em Espanha, foi "proporcional e moderada" perante um ataque muito violento e organizado de milhares de pessoas e garantiu que as autoridades espanholas prestaram auxílio a todos os que estavam "ao seu alcance" e não impediu a prestação de socorro a ninguém.

O Governo de Marrocos não respondeu às questões desta investigação.

Esta investigação jornalística é conhecida um dia antes do ministro da Administração Interna espanhol, Fernando Grande-Marlaska, ir ao parlamento dar novas explicações aos deputados sobre este caso.

As cidades de Ceuta e Melilla são dois enclaves espanhóis em território de Marrocos e são as duas únicas fronteiras terrestres da UE com África.

Organizações não-governamentais (ONG) têm denunciado a repressão violenta dos migrantes naquele dia, assim como o tratamento dado aos detidos e feridos.

O Alto Comissariado dos Direitos Humanos das Nações Unidas pediu explicações e informações a Marrocos e a Espanha sobre os acontecimentos nesse dia e em Espanha foram abertas investigações pelo Ministério Público e pela Provedoria de Justiça, ainda não concluídas.

A Procuradoria de Justiça de Espanha e o Conselho da Europa já condenaram as entregas sumárias em 24 de junho em Melilla, sem "qualquer procedimento legal".

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