Em entrevista à Lusa, Cristina Amaral, de 50 anos, assume que o trabalho desenvolvido pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja permitiu a muitas pessoas falarem pela primeira vez dos abusos sofridos, mas a forma como os bispos receberam a informação e estão a lidar com a situação alimentou um sentimento de revolta e uma vontade de dar resposta às necessidades das vítimas.

"Sentíamos que tínhamos voz, sentíamo-nos apoiados e depositámos esperança numa mudança. Face a estes acontecimentos e estas declarações vergonhosas e inacreditáveis de altos responsáveis da Igreja, a nossa indignação é total e absoluta. Estamos incrédulos, sem palavras. [A Associação] surgiu mesmo da indignação", afirmou, sublinhando: "Queremos que a Igreja assuma as suas responsabilidades. Queremos dar voz a quem não tem voz".

Cristina Amaral juntou-se a outras vítimas de abusos sexuais na Igreja após uma reportagem da RTP, na expectativa de que a sociedade dê também atenção aos sobreviventes destes crimes e não apenas aos alegados abusadores. O ponto de partida é um 'site' que já tinha sido criado por outra vítima e ao qual já chegaram mais denúncias. Um dos objetivos é ligarem-se a organizações de vítimas de abusos na Igreja de outros países, como Espanha ou França.

"Está na altura de nos unirmos enquanto seres humanos que partilharam uma experiência que nunca devíamos ter partilhado", referiu, sem esquecer o passado: "É uma associação de vítimas e de sobreviventes, porque não é fácil, de todo, sobreviver a uma coisa destas. Era só uma criança com 6 anos, estava longe de imaginar o que estava a acontecer comigo".

E continuou: "Queremos reivindicar os nossos direitos, focarmo-nos no apoio a outras vítimas e fazer uma série de exigências à Igreja. Já pedimos uma audiência ao Presidente da República e pretendemos estar mais organizados para, quando vier o Papa [para a Jornada Mundial da Juventude, em agosto], pedirmos uma audiência. É uma comissão de vítimas para vítimas, com o apoio de pessoas que já provaram à sociedade que estão do lado da vítima".

Nesse sentido, esta fundadora da Associação de Vítimas de Abuso na Igreja Católica Portuguesa -- que está ainda a ultimar os aspetos burocráticos da sua formalização -- destacou como prioridades a possibilidade de as pessoas poderem voltar a denunciar casos de abusos sexuais por membros do clero, assegurar apoio emocional e jurídico e procurar que estas vítimas sejam indemnizadas pelo seu sofrimento.

"Uma vida não tem preço, mas pelo amor de Deus... Não estamos a falar em valores, mas é óbvio que nos têm de indemnizar. É o mínimo. Num crime qualquer do Estado, tudo envolve dinheiro em qualquer pena. Porque é que não haveria neste caso, em que somos sobreviventes? Estamos a sobreviver à custa de medicação. Sobrevivemos para contar a história", disse.

Para Cristina Amaral, as diferenças entre dioceses relativamente ao afastamento imediato de padres identificados pela lista fornecida pela Comissão Independente, bem como a exigência de mais informações, equivale a "roubar novamente a dignidade" das vítimas.

"Alguém no mundo gostaria de aparecer em qualquer meio de comunicação social por ter sido violentada por um suposto homem da Igreja? Acho inacreditável... para a Igreja foi mais fácil acreditar em pastorinhos que viram uma senhora em cima de uma azinheira e fazer disso um negócio de milhões do que acreditar numa criança que foi violada às mãos de um padre", declarou, sem deixar de notar que se considera católica e que ainda acredita em Deus.

A associação pode ser encontrada através do 'site' "Coração Silenciado" (www.coracaosilenciado.pt), que disponibiliza os seguintes contactos: geral@coracaosilenciado.pt e 926180463.

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica validou 512 testemunhos, apontando, por extrapolação, para pelo menos 4.815 vítimas. Vinte e cinco casos foram enviados ao Ministério Público, que abriu 15 inquéritos, dos quais nove foram arquivados.

Os testemunhos referem-se a casos ocorridos entre 1950 e 2022, o espaço temporal abrangido pelo trabalho da comissão, que entregou aos bispos diocesanos listas de alegados abusadores, alguns ainda no ativo.

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