Expresso

A Procuradora Geral da República deu uma entrevista à RTP 1, a única de todo o seu longo mandato. Meio país estava expectante, mas eu já não esperava nada.

A Dra. Lucília Gago terá sido um zero à esquerda ao longo dos seus seis anos de mandato. O país percecionou que o Ministério Público estava sem rei nem roque e que o Estado de Direito poderia estar em causa. Ora, a minha análise contraria essas duas concepções que, por inação e falta de sageza da PGR, passaram para os portugueses e se consolidaram.

O Ministério Público foi, ao longo deste meio século que levamos de democracia, motivo de debate, ataque e contestação. Tal resulta da natureza da sua ação – ao investigar e acusar ganha um poder único na sociedade.

A pergunta que se pode fazer, observando outras democracias, é se, em Portugal, é diferente. Não! Em todos os países democráticos o Ministério Público, com este ou outro nome, sofre do mesmo ataque, é motivo de luta política e instrumento para a destruição de adversários.

Quem segue a vida partidária espanhola encontra, há quase duas décadas, um combate contra os “procuradores” que nunca se viu no nosso país, e quem acompanhou o julgamento de Sarkozy, com as suas implicações na política francesa, constatou campanhas de ataque muito mais amplas e duras do que aquelas que vivenciamos em Portugal. Do mesmo modo, os julgamentos de Trump e do filho de Biden são motivo, por ambas as partes, de ataques aos “procuradores” e às estruturas da Justiça.

E por que é que conjuntos de personalidades, que assumiram responsabilidades públicas relevantíssimas e tiveram nas suas mãos o poder de mudar as coisas, se mobilizaram agora para implicarem uma qualquer reforma da Justiça?

O que fizeram nas últimas duas décadas após o facto grave de um juiz ter ido ao Parlamento prender um deputado? E depois de assistirem aos insultos de polícias a deputados às portas do Parlamento? E ainda depois de terem assistido, impávidos e serenos, a pesadas condenações de agentes públicos, sem qualquer base legal e só por decorrência de inferições grosseiras e justiceiras, quanto a atos de gestão em vários serviços das administrações públicas?

Não há uma resposta para tais questões que não seja o facto de sermos a nação dos manifestos, de inúmeros protagonistas jubilados se revelarem vivos perante o país.

Para os portugueses, os manifestos estão ligados aos casos Influencer e Madeira. E esse é problema.

Nestes dois casos, o Ministério Público averbou significativos insucessos. Os pedidos relativos às medidas de coação foram rejeitados pelo “juiz dos direitos” e os detidos foram mandados para casa.

Durante anos, o Ministério Público viveu bem com a sua própria realidade. A escola maioritária, que vigorava no Tribunal Central de Instrução Criminal, fazia lei e quase se limitava a um carimbo autorizador do que lhes era proposto. Foi assim em muitos casos mediáticos, foi sempre a decisão de prender para investigar, mesmo sem estar em causa a possível fuga, a perturbação do inquérito ou da ordem pública. A prisão de um antigo primeiro ministro, na forma como aconteceu e independentemente dos juízos jurídicos e morais que cada português possa fazer, foi lamentável.

Não conheço, com o mínimo pormenor, o caso Madeira e, por isso, nada referirei. Mas tendo feito a minha vida profissional e pessoal a tomar decisões que implicaram a cousa pública, sempre direi que o caso Influencer parece ser uma inventona.

Quem percebe o mínimo de processo legislativo, de captação de investimento estrangeiro, de gestão de contratos de interesse nacional, de decisão urgente perante o ataque de outros países às iniciativas das grandes companhias multinacionais para localização de novas unidades produtivas, sabe que tudo o que foi conhecido, pelas diversas decisões já tomadas, não passa de uma ausência de agnição com realidade nacional e internacional e de uma total falta de atenção ao que é hoje a economia globalizada e hiper-conectada.

E quem vive numa sociedade de gente livre e decente também sabe que a partilha de uma comunidade é uma coisa bem mais normal e natural do que muitos investigadores poderão pensar. O que aconteceu com o Presidente da Câmara de Sines é aterrador.

A leitura atenta das peças processuais que já são públicas e relativas à operação Influencer, parece indicar que todos os detidos terão confirmado a conjugação do interesse privado com o interesse público. Porém, já têm, para o resto da vida, uma marca que nunca mais os abandonará.

É aqui que me parece estar a questão central de uma parte da estrutura do Ministério Público – a relação com a vida comum, com a vivência em sociedade, com a realidade.

Conheço muitos magistrados do Ministério Público. Diria até, que a esmagadora maioria dos magistrados que conheço são extraordinários profissionais, pessoas com elevados padrões éticos e assumindo o compromisso com o maior interesse que juraram defender – o Estado de Direito.

Mas também conheço magistrados do MP, ainda na estrutura ou já fora dela, que se jogam fora de pé, que só esperam o tempo para progredirem na carreira, que usam a caneta para acertar contas. E será para esses que importa a existência de uma hierarquia, que importa o dever de reporte, que interessa conjugar a visão jurídica com as visões económica, sociológica e até psicológica que qualquer processo encerra.

As magistraturas são estruturas do passado, ensimesmadas, arrogantes, arvoradas em poderes divinos. Não admira que os seus integrantes, logo à saída do Centro de Estudos Judiciários, se engajem nesta visão deslocada do nosso tempo. E é, por isso, que importa a escolha do próximo Procurador.

Mais do que se preocupar com os casos do dia, o que interessa para um novo tempo é mudar a forma de trabalhar, instituir níveis de compliance e accountability, que limitem, por exemplo, os excessos que nos estão a transformar num país onde toda a gente se sente escutada na sua vida íntima. Guardar escutas de governantes que não têm nada a ver com processos e só para implicar a política é uma ignomínia, manter um governante sob escuta, durante quatro anos, ou guardar escutas de um antigo primeiro ministro durante 11 anos, é uma insanidade completa.

Dizia que já não quero saber da Senhora Procuradora que não deixará saudades, mas tenho muito interesse, e o país também terá, em saber quem será o próximo. É sobre esse que os principais partidos do regime e o Presidente da República devem ponderar cuidadosamente.

Manifestos há muitos e não servem para mais nada que não seja revelar urbi et orbi que alguns dos manifestantes foram ímprobos enquanto governaram.