
"Eles atacavam, mas nós nunca deixámos de fazer 'chapa' [termo usado em Moçambique para designar o transporte de passageiros em furgões]. Sempre que chegávamos às zonas de risco a tendência era de aumentar a velocidade", conta à Lusa Cassimo Issa, do interior da sua viatura estacionada no terminal de transporte de passageiros de Pemba, capital provincial de Cabo Delgado, norte de Moçambique.
Durante quase um ano, Cassimo Issa carregou centenas de passageiros no percurso de mais de 200 quilómetros que separam Pemba da sede do distrito de Macomia, passando por Meluco, ponto a partir do qual o medo tomava todos os que seguiam na viatura, tendo em conta que o troço foi palco de vários ataques dos grupos insurgentes que atuam Cabo Delgado há quase quatro anos.
Arriscando a vida diariamente para pôr comida na mesa e com responsabilidade sobre os 20 passageiros que em média seguem no seu Toyota Hiace, para Cassimo abandonar o trabalho nunca foi uma opção, mesmo com os constantes alertas das autoridades estacionadas em várias posições da Estrada Nacional Número 1, entre Pemba e Macomia.
"Eu tenho seis filhos e quando viajo para lá consigo carregar 'madjimbe' [um tipo de alimento similar a mandioca e que é comum na região] para garantir o mata-bicho da família", acrescenta Cassimo.
Embora seja um calvário para Cassimo e tantos outros motoristas que têm de acelerar durante os cerca de 90 quilómetros que separam Meluco de Macomia, a situação é mais complexa para quem tem de gerir a ansiedade dos passageiros: os cobradores.
"Não há maneira, estamos a trabalhar assim mesmo. Com o risco, mas temos de tentar [ganhar] o pão", conta à Lusa o cobrador Ussene Mário, sentado à porta do seu furgão.
Ussene conta agora dois anos nesta mesma rota e há memórias más quando se fala dos ataques armados em Cabo Delgado.
"Quando entraram em Macomia no primeiro ataque, eu estive lá. O meu colega, que era motorista, e o seu cobrador, perderam o carro e morreram baleados. Ele [o cobrador] era meu amigo", lamenta Ussene Mário.
Apesar de memórias más, hoje, no horizonte de quem viajou sempre com medo em estradas do norte de Cabo Delgado, a esperança volta, com a mobilização internacional militar, com o Ruanda e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), para travar a insurgência que devastou a província nos últimos anos.
"Nestes últimos dias já estamos a apanhar sono, há quase um mês que nós não ouvimos que eles [os grupos armados] entraram em outros sítios. Está tudo um pouco tranquilizado", declara Ernesto Carlos, outro transportador da rota entre Pemba e Macomia.
A luta contra os insurgentes em Cabo Delgado ganhou um novo impulso, quando há 10 dias forças conjuntas de Moçambique e do Ruanda reconquistaram a estratégica vila portuária de Mocímboa da Praia, que estava nas mãos dos rebeldes há mais de um ano e que era considerada "base" destes grupos armados.
Os ataques armados por insurgentes em distritos do norte de Cabo Delgado provocaram mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 817 mil deslocados, segundo as autoridades moçambicanas.
EYAC // JH
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