A inteligência artificial (IA) está a redefinir os paradigmas do diagnóstico endoscópico, oferecendo uma nova fronteira na precisão e eficiência do rastreio de pólipos colorretais. No entanto, a substituição do fator humano por sistemas totalmente autónomos levanta questões fundamentais sobre a fiabilidade, a segurança e a aplicabilidade clínica.

Um ensaio clínico randomizado recente1 comparou a performance de um sistema de IA totalmente autónomo com um modelo híbrido, no qual a decisão final cabia ao endoscopista assistido por IA, trazendo insights cruciais para a adoção futura destas tecnologias. O diagnóstico óptico assistido por IA surge como uma ferramenta fundamental na coloproctologia moderna. A capacidade de classificar pólipos em tempo real e com elevado grau de precisão pode redefinir práticas estabelecidas, como as estratégias “resect-and-discard” e “diagnose-and-leave”, que visam eliminar a necessidade de avaliação histológica de pólipos diminutos. Contudo, enquanto a IA tem sido amplamente estudada como suporte à decisão médica, a viabilidade de um sistema totalmente autónomo ainda era uma incógnita.

Este estudo inovador avaliou essa possibilidade, comparando diretamente a IA autónoma e a decisão assistida por humanos. O ensaio clínico envolveu 467 pacientes submetidos a colonoscopia eletiva, divididos aleatoriamente entre dois grupos: um em que a IA realizava a classificação óptica dos pólipos sem interferência humana e outro em que os endoscopistas consultavam a IA antes de emitir o diagnóstico final. O desfecho primário foi a precisão diagnóstica em comparação com o padrão ouro (histopatologia), enquanto os desfechos secundários incluíram a concordância com os intervalos de vigilância baseados na patologia.

Os resultados foram reveladores, com a precisão do diagnóstico óptico a atingir 77,2% no grupo Autonomous AI e 72,1% no grupo AI-H, sem diferença estatisticamente significativa. Quando consideradas apenas as classificações de alta confiança, os valores foram 77,2% para IA autónoma e 75,5% para AI-H. A concordância com os intervalos de vigilância baseados na histopatologia foi significativamente maior no grupo Autonomous AI, atingindo 91,5%, em comparação com os 82,1% observados no grupo AI-H.

Estas observações desafiam a noção de que a presença do especialista melhora os resultados diagnósticos. Paradoxalmente, o envolvimento humano na decisão final reduziu a concordância com os intervalos de vigilância, o que sugere que a interferência subjetiva dos endoscopistas pode comprometer a padronização e a fiabilidade do diagnóstico óptico baseado em IA. A discrepância observada na concordância dos intervalos de vigilância levanta uma questão central: os endoscopistas confiam verdadeiramente na IA? No estudo, os médicos discordaram do diagnóstico proposto pela IA em 25% dos casos, com 58,5% dessas discordâncias resultando em erros de classificação. Em particular, a sobrevalorização de pólipos hiperplásicos como adenomas e a subestimação de lesões serrilhadas foram problemas recorrentes.

Este comportamento pode ser explicado por um misto de desconfiança na tecnologia e viés cognitivo, onde o médico acredita que sua experiência supera a precisão algorítmica. Esta relutância pode atrasar a adoção de sistemas autónomos, mesmo quando demonstram desempenho superior. Os dados deste estudo trazem implicações clínicas profundas. A adoção de um modelo autónomo para diagnóstico óptico poderia permitir a redução da necessidade de análise histológica para pólipos diminutos, gerando economia substancial e otimizando os recursos em programas de rastreio do cancro colorretal.

Em acréscimo, poderia proporcionar uma maior padronização na atribuição de intervalos de vigilância, minimizando erros induzidos pela subjetividade médica e eliminando a variabilidade interobservador, garantindo que a interpretação das imagens endoscópicas se baseie em critérios homogêneos. Contudo, desafios éticos e legais permanecem. A substituição do endoscopista na decisão diagnóstica pode enfrentar resistência institucional, especialmente em sistemas onde a responsabilização jurídica ainda é um entrave à adoção de modelos puramente algorítmicos. Ainda, a atual incapacidade dos modelos de IA para diagnosticar lesões serrilhadas demonstra que, pelo menos por enquanto, a supervisão humana ainda é um componente essencial.

As conclusões deste ensaio clínico randomizado sugerem que a IA autónoma é uma ferramenta poderosa para o diagnóstico óptico de pólipos colorretais, atingindo níveis de precisão comparáveis ou superiores à abordagem híbrida. No entanto, a resistência dos médicos à adoção de diagnósticos exclusivamente algorítmicos pode exigir um modelo híbrido de transição, no qual a IA e o especialista atuem em conjunto, mas com diretrizes mais rígidas para minimizar interferências que possam comprometer a eficácia do diagnóstico. O futuro da endoscopia reside, provavelmente, num equilíbrio entre autonomia algorítmica e supervisão médica seletiva.

1 Djinbachian, J., et al. (2024). Autonomous Artificial Intelligence vs Artificial Intelligence-Assisted Human Optical Diagnosis of Colorectal Polyps: A Randomized Controlled Trial. Gastroenterology, 167, 392.

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