- Olá, sou o Tiago e sou um adicto em recuperação.

É assim que todas as semanas Tiago se apresenta nas reuniões de autoajuda no concelho de Cascais. Está limpo há quase 25 anos. É ali que homens e mulheres se reúnem para falar, ou só para ouvir. Foram anos de consumos. Ali trocam o álcool por um copo de chá e dão voz ao coração, em vez de o afundar no silêncio ou estrangular num garrote. “Eu tenho uma doença que se chama adicção e sei que é crónica, tê-la-ei para o resto da vida”, diz Tiago. Tem hoje 49 anos, começou a consumir haxixe aos 13. Estávamos no final dos anos 80, a droga entrava-lhe na vida cedo demais, mas em Portugal já era veterana.

A história do país com o consumo problemático de drogas começa nos anos 70. “Durante o regime fascista vivíamos numa redoma que nos protegia das drogas, mas depois por circunstâncias históricas, também relacionado com os soldados e colonos que regressaram da guerra, houve uma explosão de drogas, sobretudo de canábis”, explica João Goulão, presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD).

Não foi preciso muito tempo para organizações criminosas começarem a introduzir no mercado todas as outras drogas, destacando-se a heroína. Nessa altura, a sociedade e o Tiago tinham em comum o desconhecimento e ingenuidade de alguém que nunca tinha lidado com substâncias. “Enquanto noutras sociedades a introdução destas drogas foram acontecendo paulatinamente, e as sociedades foram-se adequando, aqui de repente tínhamos tudo como na botica e muito pouca informação”, reforça João Goulão, à época um jovem estudante de Medicina.

Nesta altura, o consumo de drogas estava legislado como crime pelo Decreto-Lei nº 420/7010 onde se pode ler que em caso de posse de droga para consumo pessoal “a pena será de prisão até dois anos e multa de 5000$ a 50 000$”, equivalentes a 25€ a 250€. No mesmo decreto estava ainda descrito que “quem, por efeito do uso habitual de estupefacientes, se torne perigoso para si ou para outros, ou provoque escândalo público, será punido com prisão de seis meses a dois anos e multa de 5000 $ a 50 000$”.

João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) créditos: © 2017 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Esta era uma temática sob tutela do Ministério da Justiça, mas com o aumento deste fenómeno, começa-se a refletir a política das drogas numa visão mais sociológica. Os toxicodependentes a ser entendidos como pessoas doentes, apesar de ainda ser criminalizado o consumo de drogas, procuraram-se respostas nas áreas sociais e da saúde.

Em 1987, é criado o “Projeto Vida – Programa Nacional de Combate à Droga” com um conjunto de medidas que visavam a prevenção, tratamento, reabilitação e inserção social dos toxicodependentes. Uma delas foi a criação da primeira unidade hospitalar exclusivamente vocacionada para este problema, “é criado o centro das Taipas: o primeiro grande centro na dependência do Ministério da Saúde” conta João Goulão. Os psiquiatras Nuno Miguel e Luís Patrício foram nomeados para chefiar o serviço pela então ministra da Saúde, Leonor Beleza. Mário Soares era o Presidente da República, Cavaco Silva o primeiro-ministro e João Goulão já era médico de clínica geral, em Faro, e foi nesta altura convidado para estagiar em Lisboa para, posteriormente, regressar ao Algarve e abrir um centro inspirado no modelo das Taipas. Assim foi. Era preciso fazer nascer Centros de Apoio ao Toxicodependente (CATs) pelo país. Mais do que um problema da polícia, este seria um problema de saúde.

Matéria sobre a droga foi introduzida nos planos escolares, moveram-se campanhas de sensibilização para os seus perigos; restruturaram-se os gabinetes existentes de apoio, intensificaram-me os meios de promoção ao tratamento, criaram-se centros de acolhimento: o combate à droga estava a iniciar-se. E Tiago iniciava-se nela.

“Não saber lidar comigo e saber gerir o que estava cá dentro foi o que me levou a consumir”

Por brincadeira e curiosidade, começa aos 13 anos a fumar haxixe, em 1987. Tinha acabado de chegar a Cascais para uma casa e escola nova. Talvez também tenha havido influência disto para o início do meu consumo. Eu já ia sozinho para a escola, não havia um controlo tão grande”, relembra.

Foi também neste ano que, curiosamente, a banda que sempre seguiu, os Guns N' Roses, lançava o seu primeiro álbum de estúdio: “Appetite for Destruction” (“Apetite para a Destruição”). Parecia uma premonição para os anos que se seguiram.

Tiago era um rapaz calmo, introvertido e, apesar de não querer dar nas vistas, não passava despercebido: era alto, cerca de um metro e oitenta e cinco, muito magro, muito pouco cuidado, com a barba por fazer e com muitas olheiras. “Tinha um casaco com uma caveira nas costas, queria parecer que era mau para não mostrar fragilidade. Acho que era isso que estava por trás”, relembra. E foi nas drogas que procurou a Paradise City.

“A nossa doença somos nós próprios, o não saber lidar comigo mesmo e saber gerir o que estava cá dentro foi o que me levou a consumir”, diz. A adicção é considerada uma doença do cérebro em que a pessoa repete o mesmo comportamento de forma compulsiva, sem controlo, e involuntariamente. Pode manifestar-se em comportamentos ou uso de substâncias, lícitas ou ilícitas. "A mim manifestou-se nas drogas, mas a adicção é igualmente terrível quando se manifesta nas compras, jogo ou trabalho", explica Tiago.

Quando não estava na escola, Tiago desafiava a autoridade acelerando de mota pelas ruas de Cascais sem capacete, ele e o seu vizinho e colega de turma com quem também fumava. Enquanto consumi haxixe tive uma vida funcional, não me tirou saúde, as notas não desceram, continuava a ir a casa jantar, só que foi um período muito curto”, conta.

Durou um ano, pois aos 14 experimenta a sua “droga de escolha”: a heroína. “Os meus amigos com quem fumava charros, apareceram com aquilo e disseram-me ‘tens de experimentar isto: é cavalo’. Se eu fosse mais maduro, talvez tivesse procurado saber o que era aquilo, mas era uma criança”, lamenta.

Ninguém tinha explicado ao pequeno Tiago que a heroína é uma das substâncias ilícitas com maior potencial aditivo. Extraída da papoila de ópio, surgiu na Alemanha, no laboratório Bayer, com o objetivo de substituir a morfina, usada em contexto médico na guerra civil americana para tratar os feridos. Primeiramente, acreditou-se que esta droga não criava dependência, mas depois percebeu-se o quão enganados estariam e que esta seria ainda mais viciante.

“Claro que eu prometi que ia parar, mas não parei”, a mentira e a manipulação começa a fazer parte do dia-a-dia

A heroína é uma droga depressora do sistema nervoso central, isto é, diminui o nível de atividade cerebral causando um efeito de adormecimento. “Usava-se antigamente o termo bezerrar que é estar a dormir em pé. A heroína deixa-nos muito sonolentos e lembro-me de estar à mesa e estar sempre a cabecear e o meu pai chamava-me a atenção, mas ele devia achar que era falta de descanso”, relembra Tiago.

A principal forma de consumir heroína é através de injeção intravenosa, mas também pode ser inalada ou fumada. O consumo injetável foi um dos grandes problemas de saúde devido às infeções por VIH, causadas pela partilha de seringas. Tiago nunca se injetou, o seu consumo de heroína era fumado. Num bocado de prata colocava o pó da heroína, aquecia até ficar líquida e depois fumava. “No início, usava uma nota e rapidamente passei para um tubo de prata porque também acumulava resíduos que podiam ser fumados novamente”, explica.

Mais tarde, apresentaram-lhe a cocaína que misturava com heroína, o chamado speedball. “Naquela altura era muito tradicional consumir-se na seringa juntas, mas eu fumava as duas juntas”, explica.

Nos anos 80 era fácil encontrar estas drogas nas ruas, principalmente nas grandes cidades, como Porto e Lisboa onde os bairros do Aleixo, São João de Deus, Camboja ou Casal Ventoso eram os mais conhecidos para o tráfico e consumo.

Apesar de estar em recuperação há quase 25 anos, a memória de Tiago ficou comprometida. Aquele tempo é uma grande nuvem com algumas abertas e há coisas que não esquece. “A mãe do amigo com quem consumia descobriu o que fazíamos e contou à minha mãe. Quando cheguei a casa ela já tinha revistado o quarto todo, encontrou objetos relacionados com a droga e confrontou-me com isso. Chorava compulsivamente. É uma das imagens que eu tenho, a minha mãe a chorar. Claro que eu prometi que ia parar, que parava quando quisesse – que é conversa de adicto –, mas não parei”, recorda.

O consumo de drogas escalava no ranking dos principais problemas sociais do país. Muitas famílias tinham alguém com um problema grave de droga. “Basta lembrar que quando se perguntava a um cidadão qual era a principal preocupação em relação ao futuro dos filhos, as pessoas respondiam imediatamente ‘a droga, a toxicodependência’. Hoje em dia respondem ‘desemprego, aumento de custo de vida, a guerra’”, realça João Goulão.

No Eurobarómetro de 1997, Portugal tinha 1 % da população consumidora de heroína. “Estima-se que cerca de 100 mil eram utilizadores problemáticos desta substância”, relembra o diretor do SICAD. “E claro que estes fatores foram fazendo com que este problema fosse subindo no ranking das prioridades sociais em Portugal.”

Portugal era um dos países europeus com maior índice de consumo problemático de heroína e esta realidade trouxe outros problemas como o aumento de doenças como as infeções por VIH, tuberculose e hepatites; o aumento de problemas sociais como o desemprego e criminalidade e o aumento de mortes por overdoses.

Seringas
Seringas créditos: Unsplash

Começam assim a surgir outras necessidades como a expansão das Unidades de Atendimento, uma por cada distrito, o aparecimento de Unidades de Desabituação (locais de tratamento de curta duração) e das Comunidades Terapêuticas (instituições de tratamento, em ambiente não hospitalar, de longa duração). “Floresceram por todo o lado respostas privadas reclamando-se do estatuto de Comunidades Terapêuticas, sendo que muitas delas não seriam merecedoras dele e por isso o Estado assumiu também o papel de regulador e impôs regras”, explica João Goulão. Regras essas que foram indispensáveis para as licenças de funcionamento e a possibilidade de celebrarem contratos de prestação de serviço com o Estado. Hoje há 50 comunidades terapêuticas convencionadas pelos Estado.

 “Achava-me especial, mas eu era igual a eles

Em Lisboa, o bairro do Casal Ventoso era conhecido pelo “hipermercado da droga” e onde paravam diariamente milhares de toxicodependentes. Era urgente agir próximo desta população. Equipas de enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e médicos, entre eles também o jovem médico João Goulão, deslocavam-se ao bairro para prestar assistência, desde bens e serviços básicos como higiene, alimentação e roupa, a apoio médico e psicossocial.

A maioria da população que frequentava o Casal Ventoso era seropositiva e por isso também o “Programa de Troca de Seringas”, que teve início em 1993, era muito importante nesta zona. O programa consistia na disponibilização gratuita de kits com seringas, toalhetes e preservativos.

Também Tiago frequentava o bairro, para comprar e muitas vezes consumir. E aos olhos de todos ele era também um daqueles drogados que se acumulavam em esquinas, becos, dentro de tendas ou ruínas. “Achava-me especial, mas eu era igual a eles”, recorda. “A diferença é que não dormia lá e não andava mal vestido, mas também não tomava banho, porque tomar banho era tirar a pedrada. Acho que a única coisa que não fiz foi prostituir-me porque de resto fiz tudo o que os outros fizeram”, relembra referindo-se também ao tráfico de droga e ao roubo a familiares, em lojas e até mesmo por esticão a pessoas na rua.

Nesta altura, já era um estudante universitário. Estudava fora de Lisboa, no curso de Gestão de Empresas, mas isso não o impedia de fazer mais de cinquenta quilómetros para ir consumir. “Lembro-me de nos juntarmos todos em Torres Vedras numa festa e eu fui de boleia com uma amiga. A meio da noite sei que pedi o carro a um deles e vim até ao bairro. Comprei, consumi e voltei para lá”, conta. Enquanto conversamos, os olhos estão pousados na mesa, o corpo na cadeira, mas o pensamento muito longe num tempo em que hoje não o reconheceríamos. “Eu era pele e osso, não conseguia comer nada. Houve uma altura em que a única coisa que comia era Pensal de chocolate com Corn Flakes, mas até isso vomitava porque não se aguentava no estômago”, conta. Hoje, olhamos para Tiago e não lhe identificamos esta imagem, uma vez que é praticante de desporto há uns anos e tem uma estrutura musculada e uma figura imponente.

“A primeira fase é uma lua-de-mel, em que dinheiro e consumo não é um problema, que sempre que se vai consumir é uma maravilha, até que um determinado dia, por alguma razão, não vou consumir, e chega a primeira ressaca. E a primeira ressaca é um grande desconforto e aí de facto é um choque”, relembra. E aí Tiago começou a perceber que o problema que tinha era maior do que podia pensar, porque começavam os pensamentos de que conseguia parar, mas sem sucesso.

A privação de drogas como a heroína causa uma ressaca bastante dolorosa, que no fundo não é mais do que o corpo a manifestar a falta daquela substância à qual já se habituou. Dores, espasmos musculares, tremores e suores são alguns dos sintomas. “A ressaca de heroína é muito física, mas também muito psicológica. Aconteceu no meu percurso ficar dias sem consumir e a ressaca física acabou por desaparecer, mas na minha cabeça não desaparece a vontade e o pensamento de ir consumir”, diz Tiago.

Administração de metadona: um programa de substituição controverso

Também a pensar nesta comunidade de heroinómanos surgem respostas que abordam o problema dos consumos numa visão de Redução de Danos e Minimização de Danos. O “Programa de Substituição em Baixo Limiar de Emergência” - (PSBLE), que consiste na administração de metadona, foi um deles. “A heroína tem uma semivida muito curta e impõe, por isso, a utilização de várias doses ao longo do dia para que a pessoa não chegue a sofrer. E é maioritariamente utilizada por via endovenosa”, explica João Goulão, e por isso urgia uma resposta que não se focasse tanto na abstinência e no tratamento tradicional, mas sim na aproximação desta comunidade ao sistema e a uma vida mais funcional. “Se nós transferíssemos a dependência do opiáceo de rua para um produto farmacologicamente puro, seguro, administrado por via oral e que é compatível com uma vida de relação, de trabalho, familiar perfeitamente normal, era um ganho”, explica João Goulão.

A Associação Aires do Pinhal, constituída originariamente por membros que integravam o grupo de trabalho no Casal Ventoso nos finais dos anos 90, é uma das instituições que hoje dão esta resposta na cidade de Lisboa. Têm duas carrinhas (Unidades Móveis de Proximidade) com paragem em cinco pontos da cidade (Avenida de Ceuta, Praça de Espanha, Santa Apolónia, Lumiar e Olaias) ao final da manhã e ao final da tarde. “Ao longo dos anos, este programa tem servido muita gente e tem ajudado a diminuir o ruído social: diminuíram os roubos, as infeções de VIH ou tuberculose que é altamente infeciosa”, conta-nos Hugo Faria, psicólogo e coordenador do PSBLE da associação.

O nosso encontro foi junto a uma destas carrinhas, descaracterizadas, debaixo do viaduto da Praça de Espanha. Não é exigida abstinência e, por isso, percebemos por breves minutos que ali vão várias pessoas: as que ainda consomem e as que já não consomem. Não é de estranhar ver pessoas a parar o carro, numa pausa do almoço ou após saírem dos trabalhos, a parar para tomar a sua dose diária e seguirem a sua vida. “As pessoas têm de se inscrever, tem de haver um registo, e há um critério que é essencial, fazemos um teste à urina, de opiáceos, e tem de ser positivo, se for um consumo de cocaína, ou outros, não entra”, explica João, enfermeiro neste serviço há muitos anos.

"É a única resposta para pessoas que não cabem em mais lado nenhum"

É ele que dá a metadona aos utentes após lhe ser comunicado um número e de aceder a uma ficha médica no computador. Enche um copo de plástico daquele líquido espesso e passa-o através de um postigo. A maioria das pessoas optam por diluí-lo em água, disponibilizada pela equipa da carrinha, e bebem de um trago. “Bom dia, Sr. João. 19032”, diz uma senhora enquanto fala ao telefone com a Segurança Social, anda à procura de trabalho. “A toma com que começam chama-se a dose de segurança, são só 30 mg e depois é que vão subindo, podem subir cinco por dia até estabilizar, mas a partir de 50 mg já não podem subir e portanto não haverá problema de overdose”, explica quando questionado sobre o perigo de sobredosagem daqueles que ainda poderão eventualmente estar a consumir.

Enquanto regista uma toma surge no ecrã um menu com uma série de análises. “Olha, este tem aqui análises para fazer”, diz-nos enquanto aponta para o monitor. “Além de administrarmos a metadona, fazemos análises ao VIH, hepatite B, hepatite C e doenças VDRL e TPHA que é a sífilis. Por exemplo, amanhã [quinta-feira] vêm cá os médicos e fazemos colheitas e avisamos as pessoas”, explica.

Além da metadona, é administrada outra medicação como antirretrovirais (para o VIH), fármacos para o tratamento da tuberculose, antibióticos ou antipsicóticos, uma vez que também grande parte da população tem problemas de saúde mental associados.

Enfermeiro João administra metadona
Enfermeiro João administra metadona créditos: A.Palma

O programa foi, e ainda é, controverso com muitas vozes a insurgirem-se com o argumento que se “substitui uma droga, por outra”, mas Hugo defende que esta é uma excelente ferramenta com um grau de humanismo muito grande. “É muitas vezes a única forma de acompanhar uma população que não é acompanhada e é marginalizada. E muitas vezes é a única resposta para pessoas que não cabem em mais lado nenhum (em mais nenhum programa)”, explica.

Hugo relembra que estas são pessoas que precisam, mais do que tudo, de ajuda e de serem acompanhadas, em vez de serem abandonadas e tratadas como marginais.

A descriminalização do consumo de drogas e as Comissões Dissuasoras

Portugal foi fazendo um longo caminho com uma série de avanços e recuos nas diversas fórmulas de combater o problema da droga, até que em 1999 é apresentada a proposta de lei que veio descriminalizar o consumo de drogas em 2000. “Nós já tínhamos uma rede bastante sólida de respostas de saúde e isto é que é diferenciador e suscita enorme curiosidade internacional pelo Modelo Português”, explica João Goulão que no dia anterior à nossa entrevista tinha recebido um grupo de decisores políticos de Boston que atravessam problemas graves na cidade.

Contudo, descriminalizar não significou tornar legal o consumo de substâncias. Continua a ser ilegal e punível, mas já não é considerado crime e sim uma contraordenação. “Há uma tabela que quantifica para todas as substâncias aquilo que é considerado para dez dias e se a pessoa é abordada com menos dessa quantidade, o processo é remetido para a Comissão Dissuasora da Toxicodependência, quando anteriormente ia para tribunal. Se for apanhada com mais é considerado crime, porque aí pode ser para tráfico ou crime de consumo”, explica Nuno Capaz, técnico da Comissão Dissuasora para a Toxicodependência (CDT).

Estas comissões são instituições administrativas tuteladas pelo Ministério da Saúde e são originais do Modelo Português, não havendo noutros países, e surgiram com a lei da descriminalização. “Somos uma espécie de DGV (Direção Geral dos Serviços de Viação), mas em vez de tratarmos de contraordenações de trânsito, tratamos de contraordenações de posse para consumo de estupefacientes”, explica Nuno Capaz a trabalhar nesta área desde que as comissões foram criadas, há 23 anos.

Nuno Capaz
Nuno Capaz,Técnico Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência créditos: A.Palma

O foco não está na punição, como era antigamente papel dos tribunais, mas sim avaliar o nível de risco daquela pessoa apanhada a consumir, ou na posse de substâncias, e referenciá-la, se for caso disso. Tal como numa multa rodoviária, a pessoa recebe uma carta na morada a convocá-la para se apresentar na CDT da sua área de residência. Cada comissão tem uma equipa técnica com psicólogos e assistentes sociais que fazem o primeiro contacto.

“Fazemos uma avaliação do nível de risco relativamente ao consumo e à substância. Nós usamos um teste de nove perguntas fechadas e o resultado é revelado em formato numérico, sendo que abaixo de 9 é considerado risco reduzido; de 9 a 19 risco médio e de 19 a 29 risco elevado. Depois, cruzamos isso com algumas perguntas abertas baseadas no modelo de entrevista motivacional que é normalmente aplicada em tratamentos”, explica Nuno.

O técnico reforça ainda que a adicção é independente das substâncias e que, no ponto de vista médico, não existem drogas “leves” e “pesadas”. O que deve ser analisado é a interação que as pessoas têm com as substâncias. “As pessoas têm muita tendência para achar que a cocaína e heroína é que são um problema, mas depende muito da motivação e da maneira como se consome” e exemplifica com casos práticos. “Se eu apanhar aqui um miúdo que me diz que fuma uma ganza todos os dias de manhã antes da aula, porque o professor é um chato; ou apanhar uma pessoa com 45 anos a trabalhar que me diz que consome cocaína inalada uma vez por mês com o Chico e o Manel, num dia de festa. Qual é que é a droga mais pesada aqui? Tem que ver com motivação, frequência, idade, forma como a droga é consumida.”

“As Comissões não são tribunais, não prendemos nem proibimos nada”

Existem dois tipos de perfil de consumidores para as Comissões: consumidores toxicodependentes e consumidores não toxicodependentes.

No caso de um consumidor não toxicodependente o primeiro processo é suspenso por três meses e se a pessoa não for referenciada novamente dentro desse trimestre o processo arquiva. “Basicamente o objetivo é funcionar como um aviso. Guardamos o registo da pessoa durante cinco anos e se a pessoa for abordada novamente dentro desse período já será considerada reincidente e já tem a aplicação de uma sanção”, adianta Nuno.

A lista de sanções é exatamente a mesma dos processos de trânsito, a pessoa pode ter de pagar uma multa (entre 25 euros e o salário mínimo nacional), fazer trabalho comunitário e/ou apresentar-se periodicamente na Comissão. “A nossa relação funciona um bocadinho como os médicos, nós não vemos os médicos a correr atrás de um diabético a ver se o apanha a comer um bolo de chocolate. O médico pode explicar a um diabético que lhe faz mal comer um bolo de chocolate, mas não vai multá-lo, não vai prendê-lo ou proibi-lo de nada. Nós também não. As comissões não são tribunais, não prendemos nem proibimos nada”, realça.

As CDT tentam estabelecer uma relação com as pessoas para, tal como noutros programas, passar informação e conectá-las a estruturas que possam ser benéficas para elas. E novamente a comparação com o trânsito. “É um bocado como as pessoas que são apanhadas em excesso de velocidade, se calhar até vão continuar a andar em excesso, mas um bocadinho menos. Ou apanhadas com álcool, se calhar vão estar mais atentas na próxima vez.

Seguindo os dados portugueses, e ao contrário dos anos críticos, hoje em dia 90% das pessoas que consomem drogas não têm problema com as drogas que consomem. “Normalmente são consumidores recreativos e não problemáticos e relativamente controlados. E 10% são os consumidores mais problemáticos. A maior parte dos casos são de canábis – haxixe ou canábis erva – também é a substância mais consumida”, conclui.

Hoje, passados vinte e três anos, voltamos a ouvir fações políticas a defender a criminalização do uso de drogas, como é o caso de Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, no âmbito da situação complicada de consumo e tráfico de droga que se vive no bairro da Pasteleira. João Goulão considera que esta tomada de posição pode complicar a resolução do problema.  “Os consumidores problemáticos de drogas são pessoas doentes com direito a tratamento e é nesta linha que trabalhamos há mais de 20 anos com bons resultados. Caso uma medida como a criminalização do consumo fosse considerada, muitos dos consumidores perderiam o acesso a medidas de redução de riscos e minimização de danos ou a outros serviços e encaminhamentos realizados pelas equipas no terreno. No fundo, o consumo seria clandestino e com muito mais perigos, quer para a saúde do consumidor como para a Saúde Pública”.

Os relatos no Bairro da Pasteleira faziam o leitor recuar ao bairro do Casal Ventoso, ou do Aleixo, ambos demolidos, onde as pratas e seringas deixadas no chão e as vidas arrastadas pelos passeios mostram-nos que a situação melhorou, mas está longe de acabar. A droga pode não ser o problema social número um na prioridade da agenda política, mas ainda é um problema de saúde. As respostas não chegam, ou pelo menos não chegam a todos.

“Neste momento faltam meios. Nós temos sido vítimas do próprio sucesso que estas políticas tiveram na sociedade portuguesa. Aquilo que em meados dos anos 90 era a maior preocupação dos portugueses, no ranking das prioridades sociais e políticas, caiu vertiginosamente”, acrescenta.

"Há uma perda muito grande de dignidade"

Quando o consumo de droga foi descriminalizado, já Tiago estava em recuperação. Mas este foi um caminho muito tortuoso com várias tentativas nem sempre bem-sucedidas: procurou junto de um médico da família medicação – antidepressivos –, fez terapia, foi a sessões da Igreja Evangélica e esteve internado numa Comunidade Terapêutica. “Eu não estava cooperante, naquela altura e achava-me uma vítima. Diziam-me ‘faz a tua cama todos os dias’ e eu o que fazia era dormir em cima dela para não ter trabalho. Continuava a não respeitar regras. Só me estava a boicotar”, conta. Contudo, foi ali que percebeu que tinha uma doença. “Trouxe-me um bocadinho de alívio, porque até ali achava que era incapacidade minha. E percebi que eu não era mau-caráter, tinha era uma doença que me fazia obcecar e pôr o consumo à frente de todas as outras pessoas”, relembra.

Depois do internamento, os pais, cansados e impotentes por nada resultar, expulsaram-no de casa. Tiago sentia-se mais perdido do que nunca, já tinha acabado o curso, e deixara de ter um objetivo na vida. Não conseguia viver a consumir, mas o desconforto de não consumir também era grande. “Senti-me muito sozinho, deprimido. Há uma perda muito grande de dignidade e havia alturas que aquilo me batia e eu pensava que merecia mais”, desabafa.

Os tios recebem Tiago em casa deles a poucos quilómetros de Lisboa, numa localidade remota, sem transportes, de onde não era fácil sair sozinho. “Houve uma noite que andei louco, completamente transtornado à procura de uma chave de carro para ir ao bairro consumir”, conta. Mas felizmente não conseguiu. Durante um mês esteve sob efeito de medicação, ansiolíticos e analgésicos, para impedir os picos de ansiedade de consumo e acalmar as dores. A tia deu-lhe banho, deu-lhe de comer, tratou dele com todo o amor e dedicação. “A minha tia cuidou de mim durante um mês e eu não me lembro de um único dia”, diz, mas é até hoje “eternamente grato”.

Já com mais energia e com a medicação reduzida, começa a trabalhar com o tio na sua loja nas Olaias, em Lisboa. Apesar de ocupado, o vazio continuava instalado e Tiago pensava “se estar sem consumir é isto, eu não quero”. Deixar de consumir não bastava, era preciso preencher a alma de alguma forma. É então que no dia 3 de agosto de 1998 o tio leva-o a uma reunião de um grupo de ajuda.

Comunidade terapêutica Associação Ares do Pinhal - IPSS em Sintra
Utentes conversam no pátio da Associação Ares do Pinhal - IPSS, em Sintra créditos: © 2016 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

“Saíamos das Olaias até ao Príncipe Real. Eu fazia a reunião durante 1h30 e ele ficava no carro à minha espera. De segunda a quinta-feira ele fazia isto, sem nunca conversarmos sobre aquilo”, relembra com a gratidão envolta na garganta. “E a partir dali, eu comecei a identificar-me com algo”.

Saiba onde procurar ajuda:

Se está a passar por algum problema,  pode deslocar-se ao Centro de Saúde/Unidade de Saúde Familiar da sua residência ou a um Centro de Respostas Integradas (CRI) da sua região. Veja aqui a lista.

Além destas respostas, existe uma Linha Vida SOS Droga (1414) a funcionar todos os dias das 10 às 18 horas. Também pode contactar uma destas sociedades sem fins lucrativos com grupos de apoio como os Alcoólicos Anónimos, Narcóticos Anónimos ou Instituto de Apoio ao Jogador.

Nestas reuniões, reencontrou pessoas com quem tinha consumido muito jovem, como se aquele fosse um sinal a dizer-lhe que a vida reiniciaria ali. “Convivíamos depois das reuniões e eu fazia de tudo para estar ocupado e ir para casa o mais tarde possível para estar menos tempo com os meus pensamentos. E à medida que os dias foram passando, a obsessão por drogas foi desaparecendo. Fui procurar saber quem eu era, conhecer-me melhor”, conta.

“Sou muito melhor pessoa agora”

Tiago tem agora 49 anos, três filhos e trabalha na área financeira numa multinacional. Já foi casado duas vezes, hoje partilha vida com Maria, também adicta em recuperação. Conheceu-a numa das reuniões.

Tem muito orgulho no percurso percorrido, mas entre os colegas o seu passado ainda é tabu. “Eu sou o contabilista do grupo, passam milhões de euros por mim, as pessoas confiam em mim, mas será que se eu disser que sou um toxicodependente em recuperação, não olharão para mim de outra forma?”, questiona. O preconceito provavelmente responderia que sim.

Convive bem com isso, só nos jantares de empresa é que tem de ser mais ardiloso e fugir aos brindes. “Já ouvi algumas piadas ‘não o vamos convidar mais que ele não bebe’, porque existe muita essa cultura da bebida, mas como eu pratico desporto, eles acham que é por eu ser saudável”, ri.

Tiago sabe que para ele, um adicto em recuperação, beber uma gota de álcool seria um passo para o desconhecido, além de parar a contagem dos dias em que está limpo. “Tenho alguns exemplos de amigos [adictos em recuperação] que decidiram começar a beber e a vida não mudou por aí além; tenho outros que ficaram completamente destruídos. Como eu não sei qual deles serei: não quero arriscar”, remata.

A história de Tiago andou quase sempre de mãos dadas com a história das drogas no nosso país, uma história que, de certa forma é de sucesso, apesar de – e não nos iludamos – jamais finita. Há muito a percorrer e João Goulão mostra-se preocupado com esse percurso. “Hoje em dia não é uma área atrativa para os profissionais, como era há vinte anos, e não há mecanismos de recrutamento e dinheiro suficiente para fazer crescer o sistema”, diz. Esta área da saúde passa pela mesma problemática de todo o Sistema Nacional de Saúde: falta de pessoas. “Quando comecei a trabalhar, no início dos anos 80, entrou um contingente importante de profissionais que asseguraram ao longo destes anos muitas das tarefas relacionadas com a área dos comportamentos aditivos e dependências. Mas nós estamos à beira da reforma e, no entretanto, não temos capacidade de recrutar novos profissionais e menos ainda de os formar, porque a formação nesta área é muito no ombro-a-ombro com o outro e o ver/fazer”, lamenta.

Contudo, olhando para trás, o presidente do SICAD orgulha-se do modelo integrado e da complementaridade das respostas dadas. “As pessoas circulam por uma ou outra destas respostas de redução de danos, de acordo com a fase de ciclo de vida em que estão e da sua relação com as substâncias. Não temos compartimentos estanques. É possível fazer o caminho de acordo com as características e circunstâncias de cada um das pessoas”, realça.

Também para Tiago o caminho valeu a pena. “Hoje consigo ser um bom pai para os meus filhos, bom marido, bom filho e sei que sou assim porque consegui trabalhar uma série de valores espirituais: o altruísmo, o amor firme, a honestidade. Sou muito melhor pessoa agora”. As reuniões ainda fazem parte da sua vida e provavelmente farão para sempre. É aqui que, para além de conviver com amigos, sente que pode ser parte da mudança e ajudar um recente chegado, tal como fizeram com ele quando aos 24 anos decidiu entrar numa sala com desconhecidos na Igreja de Santa Isabel e disse pela primeira vez:

- Olá, eu sou o Tiago e sou um adicto.

*O nome "Tiago" é fictício para proteger a sua identidade.

Saiba onde procurar ajuda:

Se está a passar por algum problema,  pode deslocar-se ao Centro de Saúde/Unidade de Saúde Familiar da sua residência ou a um Centro de Respostas Integradas (CRI) da sua região. Veja aqui a lista.

Além destas respostas, existe uma Linha Vida SOS Droga (1414) a funcionar todos os dias das 10 às 18 horas. Também pode contactar uma destas sociedades sem fins lucrativos com grupos de apoio como os Alcoólicos Anónimos, Narcóticos Anónimos ou Instituto de Apoio ao Jogador.

Avalie também se o seu comportamento pode ser considerado adicção através dos critérios especificados pelo SICAD