Foi na Aldeia de Eiras, em Mação, entre pinheiros e rodeada pelo verde acinzentado do orvalho matinal, que encontrámos a casa da primeira fase da Comunidade Terapêutica de Ares do Pinhal. “Nós estamos divididos em três fases: é um modelo que permite que as pessoas estejam em momentos diferentes, ou seja, uma pessoa que está numa fase adiantada no tratamento tem outro trabalho dentro de si e outras expetativas e objetivos”, esclarece Hugo Oliveira, coordenador da comunidade terapêutica.

Esta comunidade foi fundada em 1986 por uma equipa de psiquiatras que trabalhava o tema das drogas de muito perto. “Perceberam que havia necessidade das pessoas terem um período fora do meio em que viviam, um período para fazer uma pausa e reorganizar a vida”, conta.

Na primeira fase, as pessoas têm o seu primeiro corte com o exterior e param com os consumos. O acesso ao telemóvel é-lhes vedado e a comunicação com a família só acontece uma vez por semana. “Só a partir do primeiro mês é que podem usar o telefone, excetuando quem tem filhos pequeninos”, esclarece Hugo.

Nesta comunidade só vivem homens, de várias idades, muito diferentes entre si, mas em comum uma doença que os juntou ali. “Eles costumam dizer que é uma doença muito democrática, afeta pessoas tanto de extratos sociais elevados como mais baixos, com mais ou menos escolaridade”, explica o terapeuta.

Hugo Oliveira
Hugo Oliveira, Diretor Técnico da Comunidade Terapêutica créditos: A.Palma

Chegámos de manhã, já os utentes estavam distribuídos pelas suas tarefas matinais. O dia começa cedo, pelas 08h00, e às 08h15 já todos têm de estar prontos para tomar o pequeno-almoço na longa mesa que atravessa o corredor central da casa.

Em cada dia há alguém responsável pela cozinha e refeições. Hoje, foi a vez de José e Nuno, um veterano e um caloiro, respetivamente. “Aqui na cozinha é diferente, entramos ao serviço no dia anterior para hoje ter tudo pronto. São várias as refeições: pequeno-almoço, bucha da manhã, almoço, bucha da tarde, jantar e ceia”, explica José, a quem a cozinha não assusta, “lá fora” foi cozinheiro e cortador de carnes. Olhos verdes claros, barba meio ruiva e pele de quem fuma há muitos anos, já é a segunda vez em tratamento. “Nas tropas comecei a beber, porque era ‘de homem beber’, pelo menos há trinta anos havia muito essa cultura, e depois veio o haxixe”, conta. É no âmbito do serviço militar que é destacado para uma missão no Médio Oriente, onde experimentou pela primeira vez heroína. “Tive um pequeno acidente, fui assistido no hospital dos alemães, e andavam para lá os libaneses a vender heroína pura, muito barata, e eu para aguentar as dores consumia aquilo. Quando voltei para Portugal, já vinha completamente agarrado. Era muito novo, tinha 23 anos”, conta com os olhos muito brilhantes prestes a deixar a vida escorrer-lhe pela face.

Da primeira vez que esteve em tratamento, desistiu ao fim de dois meses. Depois, conseguiu através da metadona fazer o desmame das drogas ilícitas, contudo o grande problema de José era outro. E com esse não cortou. “O álcool em mim tem um efeito dez vezes pior do que as drogas, até porque me torno mais violento e agressivo. E a degradação que acontece é maior ou igual à da heroína. Quem consegue beber naturalmente com os amigos é uma coisa, quem tem problemas com adicções, mais vale nem lhe tocar.”

Segundo o Relatório Anual 2021 do SICAD – um documento que analisa a situação do país em matéria de drogas, álcool e toxicodependências –, os internamentos com diagnóstico principal associados ao consumo de álcool alcançaram os valores mais altos dos últimos cinco anos. “O álcool na nossa sociedade está completamente enraizado e temos uma atitude muito complacente”, lembra João Goulão, presidente do SICAD.

“Tive de abandonar a droga por causa dos surtos psicóticos. Foram muitos sustos”

Esta realidade também se deve aos preços mais baixos desta substância. “As pessoas muitas vezes quando não têm dinheiro recorrem ao álcool, porque é uma droga muito acessível, mas em termos de desorganização mental e em termos de estragos negativos no organismo, o álcool é muito severo”, destaca Hugo Oliveira.

Voltando ao José, a sua história é igual a tantas outras da Associação Ares do Pinhal, uma história marcada por diversas lutas, umas ganhas outras perdidas.

plano semanal comunidade Ares do Pinhal
Ter rotinas e horários é muito importante para os utentes créditos: A.Palma

O tratamento assenta em três eixos: reuniões terapêuticas, reuniões diárias, em grupo para as pessoas falarem de si e reuniões comunitárias, onde se gerem eventuais conflitos dentro da comunidade. “Também temos reuniões de discussão do lazer, que são as atividades da casa”, acrescenta Hugo e explica-nos a importância destes momentos. “Esta é uma ferramenta muito importante, porque é o reaprender a viver sem consumos. É um lazer maioritariamente à moda antiga, evitar a televisão”, diz.

E também há momentos que existem reuniões individuais com o terapeuta nas quais “olham para dentro de si” e aprendem a “conhecer-se um bocadinho melhor”, mas o grande trabalho e de destaque de estar numa Comunidade Terapêutica é o grupo, “onde há feedback e identificação”, realça Hugo.

No dia da nossa visita preparava-se a festa de despedida de Ricky (diminutivo) prestes a passar para a segunda fase, numa casa em Chão de Lopes, a cerca de quatro quilómetros de distância.

Ambas as casas são isoladas do mundo, apenas a natureza faz companhia aos seus moradores. A localização não é inocente. “Quando eu comecei a trabalhar aqui, a primeira fase era na casa da Rinchoa (onde é agora a terceira). Era perto da linha do comboio e as pessoas iam-se deitar e começavam a ouvir o comboio e o craving aumentava, o impulso a necessidade de consumir aumentavam”, conta Hugo. O corpo estava ali, mas o cérebro fugia-lhes para outro lugar e rapidamente levava consigo o resto. “Esta provavelmente é a fase em que a taxa de abandono pode ser maior”, explica. Ainda que a primeira fase seja a que tem mais desistências, há vinte anos era maior. “Aqui nós temos a proteção dos pinheiros e desta paz. Também tem a vantagem de ter terreno para as pessoas poderem trabalhar na horta e na agricultura. A ideia é sermos o máximo autossustentáveis e também ensinar-lhes algumas coisas: plantar coisas e vê-las crescer, a mensagem implícita é que temos de investir na nossa formação e família para vir a recolher frutos”, esclarece.

Exterior da casa da 1ª fase
Exterior da casa da 1ª fase créditos: A.Palma

À medida que vamos avançando nas assoalhadas, vamos ouvindo novas vozes acompanhadas de “bom dia” e um aperto de mão educado. Alguns, os olhos não escondem a medicação, associada também a doenças mentais diagnosticadas, como a esquizofrenia ou bipolaridade. Não é fácil assumir se foram as drogas a deixá-los assim, mas Hugo acredita que podem contribuir. “Tenho a sensação de que as substâncias podem potenciar uma psicose tóxica, mas há quadros que são reversíveis e as pessoas depois melhoram e há outros quadros em que a pessoas não melhoram. O consumo de canábis em jovens adolescentes é muito severo e pode potenciar psicoses”, diz.

É o caso de Fernando, um dos elementos mais novos da Comunidade de Ares do Pinhal, está internado há sete meses. “Eu deixei as drogas e a canábis em 2018, ultimamente era só álcool. Tive de abandonar a droga por causa dos surtos psicóticos. Foram muitos sustos”. Elogia a comunidade e as pessoas, “este grupo é muito acolhedor, receberam-me muito bem. Eu gostei disso e sinto-me grato”, diz. Hugo apressa-se a acrescentar que Fernando também foi uma boa aquisição e que logo de início trouxe uma caixinha de chocolates para o grupo. “Eu gosto de dar também, não sou só pessoa de receber”, remata, antes de abrir a porta para ir para o exterior fazer as suas tarefas.

Na sala, um grupo decora as paredes e pinta painéis para aquela que será a “TV Ares do Pinhal”, onde o noticiário será “ a grande contratação de Ricky para Chão de Lopes”. Ricky é o vaidoso do grupo e preparam-se piadas à volta disso. “A única exigência será a presença de cinquenta mil espelhos no quarto”, riem.

“Aquilo causava-me alegria, satisfação. Talvez anulasse uma série de sentimentos que eu sentia na altura, como a falta de afeto”

A taxa de sucesso do tratamento, ou seja de uma pessoa que vai até ao fim, “ronda os 20/30%.” “Temos aqui pessoas que interromperam o tratamento, porque criaram a expetativa que já estava tudo bem e que agora é que é, mas não. Daí termos muitas reincidências”, diz Hugo. É o caso de Pedro, deitado no chão da sala a pintar as letras de “Ares do Pinhal”, que interrompe para falar connosco.

Pedro, utente comunidade terapêutica Ares do Pinhal
Pedro, utente da Comunidade Terapêutica Ares do Pinhal, numa das atividades de lazer créditos: A.Palma

Pedro tem 52 anos e está na comunidade há três meses e meio. Sem abrigo, foram as equipas de rua que o encaminharam para a comunidade. “Já cá estive em 2013 e fiz um tratamento, mas sem chegar ao fim”, conta. A vida pregou-lhe outra partida, mesmo na reta final. A filha tinha quinze anos e ligou-lhe a dizer que a mãe tinha sido presa por tráfico de droga. “Tive de abandonar o tratamento, saí e arranjei trabalho. Quando saí consegui parar o consumo de heroína, mas continuei a fumar haxixe e a beber. Estava capaz de tomar conta da minha filha e assim o fiz durante sete anos. Cheguei a passar fome para a minha mulher ter dinheiro na prisão”, conta com mágoa.

A vida de Pedro não foi fácil. Nasceu num bairro problemático nos Olivais, em Lisboa, sem o acompanhamento dos pais que trabalhavam de manhã à noite. “Apesar das boas notas, era muito rebelde. Fui crescendo sem regras e limites”, confessa. Não havia muito dinheiro em casa e ele e as irmãs, com quem hoje não tem relação, cresceram sem as mesmas oportunidades dos outros miúdos.

Pedro não se sentia identificado com nada e começou a aproximar-se dos “mais velhos.” “Debaixo do meu prédio, jogava-se à batota e eu comecei a sair de casa à noite, depois dos meus pais adormecerem, e comecei a jogar à batota com eles. Havia um rapaz que por causa da droga andava meio adormecido e pedia-me a mim para lhe segurar e guardar o dinheiro. Foi assim durante várias noites e ganhei confiança dele”, conta.

Tal como no jogo da batota, em que o objetivo era enganar os restantes jogadores, também Pedro tentou enganar o coração dando-lhe algo que adormecia aquilo que não queria, ou sabia, sentir. “Houve um dia que ajudei esse rapaz com o garrote, segurei-lhe o elástico para apertar o braço, e ele ao fim de várias insistências minhas lá me deixou experimentar também”, relembra. Começou por consumir o speedball, uma junção de heroína e cocaína injetada.

“Aquilo causava-me alegria, satisfação. Talvez anulasse uma série de sentimentos que eu sentia na altura, como a falta de afeto. Os meus pais nunca estavam. E portanto queria estar sempre com aquelas pessoas e a consumir”, conclui.

Pedro, utente pousa de costas
créditos: A.Palma

Aos poucos e poucos, Pedro sentia que “ia estragando cada vez mais a vida”. Trocou as salas de aula pelas tascas e cafés, o recreio pelos cantos mais recônditos do bairro e as noites de sono pelas discotecas. Como o dinheiro não chegava para os impulsos de consumir, começou a traficar primeiramente – e com os pais ausentes e sendo fácil enganar a avó – no quarto, mais tarde no Bairro do Camboja. “As pessoas paravam o carro nas avenidas, davam-nos dinheiro e nós íamos às casas buscar droga”, relembra.

Entre o tráfico, fugas à polícia, amores, desamores, desemprego, desilusões, tentativas de suicídio e agressões, Pedro tentou parar os consumos, mas a compulsão foi mais forte e os acontecimentos da vida demasiado pesados e difíceis de suportar. Está agora sozinho. “ A minha ex-mulher e a minha filha moveram uma ação contra mim e conseguiram pôr-me fora de casa”, lamenta. “Bati no fundo e estou muito cansado. Há três anos que estou na rua, numa tenda em Santa Apolónia, foi o mais baixo a que consegui chegar. As drogas têm mesmo que parar, todas. Rebentou-me a vida toda”, diz de cabeça baixa enquanto coça as crostas do braço. Crostas de feridas que ficaram de cada picada, talvez um dia desapareçam, afinal não são tão profundas como as da alma.

“ A heroína faz-nos ficar no limbo entre o céu e a terra”

O diretor técnico da Comunidade Terapêutica afirma que a dependência física é mais fácil de se trabalhar, o maior desafio está na parte psicológica. “É muito importante conhecer as pessoas e saber a história de vida delas porque há fatores que podem ajudar a perceber o que as pessoas precisam de trabalhar dentro de si”, explica. Muitos casos de pessoas com adicção remetem a infâncias com pais ausentes. “Tiveram poucas referências, cresceram sozinhas no sentido de não ter adultos suficientemente capazes de as apoiar, pôr regras e limites. E está provado que crianças que crescem sem regras tornam-se adultos mais inseguros e com baixa autoestima”, diz.

Jaime está por perto, a arranjar o jardim, e aproxima-se. A teoria sobre a sua doença sabe-la toda, confessa que o pior é pôr em prática. “Enquanto eu não me lembro da substância ando à vontade, mas a partir de uma certa altura há qualquer coisa que bate na cabeça e a pessoa já começa a pensar ou a sentir o gosto, no meu caso da heroína, e ter as mesmas sensações”, diz enquanto cerra os olhos como se se afastasse do tempo em que estamos. Vai lá atrás, a um passado não tão distante. Está na comunidade há poucos meses, mas é reincidente. “A heroína deixa-nos ali no limbo entre o céu e a terra”.

Utente arranja roseiras
créditos: A.Palma

Começou a consumir heroína, porque como tantos, sabia bem nada sentir. “Houve um psiquiatra que me disse que éramos os homens da Sorte, porque tínhamos um remédio para a dor. Ele disse aquilo de forma irónica, claro. Porque nós sabemos que se fumarmos, a dor fica adormecida”, mas não desaparece.

“Os tempos mortos é que são piores. E nós não devemos ter tempo para estar a pensar, temos de nos manter ocupados”, e por isso entretém-se a fazer enxertias nas roseiras e pensar em formas de colorir o jardim, já que durante muitos anos a vida foi sempre uma névoa cinzenta. “Mas pronto. Sr. Doutor, o que eu queria quando aqui vim era perguntar se conhece alguém que tenha roseiras e se podia trazer um ramo para eu enxertar aqui, mas rosas amarelas, brancas ou daquela vermelha cor de sangue. Ficava bonito, em vez de ser tudo da mesma cor”. Hugo sorri e promete que vai tentar.

Não sabemos de que cor ficaram as roseiras, mas percebemos a intenção de Jaime. Afinal quem não quer um jardim mais colorido?

A segunda fase : um passo mais perto

A adicção tem sido abordada como uma doença do cérebro, muito ligada à gestão das emoções. “Estas pessoas encontraram uma forma para se abstraírem da realidade. E se por um lado isso lhes traz conforto, depois, por outro, também lhes traz muito desespero. As pessoas mesmo que já não queiram consumir, sentem-se compelidas a fazê-lo”, explica Hugo enquanto vamos a caminho da casa da segunda fase.

A poucos quilómetros, maior e com uma arquitetura diferente, mas igualmente isolada, encontramos a casa da segunda fase. “Esta casa foi inaugurada em 1986 e reconstruída com os próprios utentes”, lembra.

A passagem à segunda fase não tem um tempo determinado, ali as terapêuticas não são iguais para todos e respeita-se o tempo de cada um e as vivências. “Uma pessoa que esteve muitos anos na rua a viver como sem-abrigo, por vezes desaprende a comer com garfo e faca e isso, que parece simples, tem de ser reaprendido. Temos pessoas que entram mais fragilizadas e outras mais conservadas”, explica o psicólogo.

Enquanto na primeira fase, além da reaprendizagem de viver sem consumos, exige-se ao utente que seja capaz de voltar a relacionar-se com o outro; na segunda fase o trabalho é mais interno. “As pessoas aqui já estão numa fase em que estão a pensar mais dentro de si”, esclarece Hugo e começam a existir idas a casa, os chamados “projetos terapêuticos”.

Casa da 2ª fase, em Chão de Lopes
Exterior da casa da 2ª fase, em Chão de Lopes créditos: A.Palma

Mal entramos no pátio, logo a seguir ao almoço, alguns utentes estão no exterior a fumar um cigarro e a conviver. Tal como acontecera na casa da primeira fase, também conhecemos companheiros caninos, mimado por todos. Damos umas festinhas e estamos aptos a ser aceites na comunidade.

As idas a casa são componentes fortes desta etapa do tratamento e são pensadas ao pormenor. “Há uma folha de projeto onde temos de descrever tudo o que estamos a pensar fazer e discutir com os terapeutas aquele plano, pensar nos perigos e o que sentimos em relação a eles”, conta-nos Alexandre, utente da casa.

Normalmente, as idas a casa acontecem um mês e meio depois de chegarem àquela fase, se todos se sentirem preparados para tal, como foi o caso do Alexandre, apesar dos receios. “Nós, tanto aqui como na primeira fase, estamos num ambiente muito protegido, mas quando voltamos ao exterior estamos por nossa conta”, conta. Já tentou vários tratamentos, mas sem sucesso, contudo diz que “nunca tinha aguentado tanto tempo num” como agora.

"Eu já tentei várias coisas e recaí sempre, tenho medo hoje"

A primeira vez que foi a casa foi pela altura do Natal. A equipa da Comunidade deixou-o na estação de autocarros e a partir dali foi como saltar de para-quedas. “Chegar a Lisboa causou-me uma ansiedade enorme. Passar em alguns locais traz ansiedade e relembra-me comportamentos que tive”, partilha.

Além dos desafios que já esperava, o jovem viu-se confrontado com uma realidade que não tinha escrito, nem pensado, no papel: greve dos comboios. “Não consegui apanhar o comboio em Sete Rios, que por si só já era uma zona complicada porque era naquela zona que consumia, como ainda tive de ficar quatro horas à espera no Cais do Sodré. Confesso que tive muito medo, quase tive náuseas de ansiedade”, relembra Alexandre que sabia que as zonas ferroviárias são lugares muito propícios para a venda e consumo de drogas.

Com um sorriso no olhar, confidencia-nos que não tinha relação com o pai há mais de vinte anos e que nessa altura conseguiu juntá-lo à mesa de Natal. “Correu tudo bem”, remata.

A atitude vigilante é importante em todas as fases, mesmo já em recuperação, e, apesar de ainda não ter lá chegado, Alexandre sabe disso. “A adicção é uma doença terrível. Ao fim de três/quatro meses de aqui estarmos se calhar já nos sentimos preparados e queremos ir lá para fora, trabalhar e fazer tudo o que não tínhamos feito. Mas quando se chega lá fora, já não é bem assim. Eu já tentei várias coisas e recaí sempre, tenho medo hoje e também é bom sentir-me assim”, conta.

As visitas a casa são também fundamentais para a reinserção das pessoas no quotidiano, quando terminarem o tratamento. “Além de ajudá-los a abstraírem-se, porque estar aqui 24/24 horas também é difícil; é importante para a autonomia. Senão também corríamos o risco de a pessoa estar tão habituada aqui à comunidade que quando chegasse lá fora não se conseguia adaptar”, esclarece Hugo.

reuniao 2 fase b
Os terapeutas Filipe Falua e João Lopes reúnem com o grupo da casa da 2ª fase créditos: A. Palma

Quando entrámos dentro de casa já estava quase na hora da reunião de grupo. Os dois terapeutas, o Filipe e o João, fazem a abertura e explicam a presença do SAPO naquele que costuma ser um espaço íntimo e de partilha. Contudo, apenas ficámos para ouvir o planeamento das atividades de lazer. “Aqui tentamos trabalhar a questão do lazer para que eles saiam lá para fora com ferramentas e para que depois do trabalho se consigam preencher, criar rotinas e interesses”, explica Filipe.

O utente responsável naquela semana pelo lazer começou por apresentar as sugestões, entre as quais jogos de cartas, jogos de tabuleiro, noites de cinema ou discos pedidos. Hugo Oliveira interrompe e questiona os motivos para nunca mais terem planeado teatro. Esta atividade não é sugerida em vão. “Vocês estão aqui a trabalhar coisas. E trabalhar o ridículo e a exposição é importante”, diz. Todos ouviram e concordaram que voltariam a encenar alguma coisa.

O pano para nós fechou-se e voltámos ao carro. Aqui, neste lugar distante de casa, pessoas voltam a nascer e reaprendem a viver, com a grande diferença que desta vez não nascem leves e soltos: a bagagem é pesada, já há feridas e fragilidades, mas como todos, com adicções ou não, é preciso cuidar da mente e do coração.

Excetuando os terapeutas Hugo Oliveira, Filipe Falua e João Lopes, todos os entrevistados preferiram o anonimato e os nomes neste artigo são fictícios para proteger a sua identidade.