“O consenso científico é cristalino: ninguém nasce com o cérebro carregado de ódio e preconceitos. Nascemos é com um cérebro que revela a predisposição para distinguir entre «nós» e «eles», mas quem somos «nós» e quem são «eles» é algo que se aprende, não vem de origem. […] Todos nós somos capazes de odiar quando uma determinada conjugação de acontecimentos e circunstâncias é disposta sobre esta característica humana.”

A explicação, dada por Matthew Williams, surge escrita no seu mais recente livro, publicado em Portugal pela editora Contraponto. O autor, investigador e professor pela Universidade de Harvard, é um dos mais reputados criminologistas do mundo, sendo conselheiro do Ministério do Interior do Reino Unido e do Departamento de Justiça dos EUA. A sua especialidade são os crimes e discursos de ódio, o cibercrime e extremismo online.

Começando com o relato de uma experiência pessoal que o marcou para sempre, em que foi vítima de um crime de ódio, o investigador escreveu um livro sobre o que a biologia, a neurociência, a psicologia, a sociologia, a economia e as tecnologias da informação nos têm a dizer sobre a frágil linha que separa o preconceito do ódio e o que podemos fazer para contrabalançar e anular estes sentimentos.

No entanto, e em entrevista ao SAPO, Williams dá conta de como, nos últimos anos, os acontecimentos e narrativas que legitimam o preconceito ganharam maior protagonismo, apontando o dedo aos políticos que sabem manipular habilmente a forma como as estruturas mais primitivas do cérebro humano processam os sentimentos de ameaça e medo.

De acordo com os atuais conhecimentos científicos, que mecanismos psicossociológicos podem fazem despoletar o sentimento de ódio no ser humano?

No livro que escrevi descrevo uma das principais teorias que tenta explicar o ódio, a «teoria da ameaça integrada». Uma perceção de ameaça aos nossos recursos ou rendimentos, assim como uma perceção de ameaça simbólica à nossa identidade, culturas e valores que consideramos sagrados, podem levar a que nos comportemos de uma forma que favoreça as pessoas do grupo a que pertencemos: formado por pessoas que julgamos ser como nós. Isto pode suceder, por exemplo, tendo como base motivos raciais ou de género. Mas também pode brotar de outras coisas.

No Reino Unido tivemos uma separação entre os que eram a favor e contra o Brexit, mas foi um novo tipo de divisão que surgiu e em que pouco importou a cor da pele que se tinha, o género ou a orientação sexual. De repente, alguém passava a fazer parte do meu grupo se fosse a favor do Reino Unido continuar na União Europeia, e de um outro se fosse a favor da saída. Foi uma divisão que atravessou todo o tipo de categorias já existentes.

O que sucede, portanto, é toda uma criação de diferentes tipos de grupo, em que vem ao de cima a divisão entre o «nós» e os «outros», e a partir do qual o ódio pode nascer.

Em última análise, quando uma perceção de ameaça vem ao de cima, e isso é algo que atualmente podemos ver na Ucrânia – onde há uma extrema sensação de ameaça à vida –, e quando estão reunidas determinadas condições sociais, económicas e psicológicas, a capacidade para se ser uma pessoa decente e tolerante pode ser erodida. Em tempos de paz e tranquilidade, há mais espaço, tempo e inclinação para pensarmos de forma mais tolerante, para nos questionarmos com aquelas difíceis perguntas interiores sobre os nossos preconceitos. Mas isto requer muita energia e atenção da nossa parte, coisa que não temos quando estamos preocupados sobre o que nos vai acontecer no imediato. Em tempos de stress e de extrema preocupação sobre o nosso sustento (quando pensamos, por exemplo, se vamos receber o ordenado no final do mês), a nossa saúde e até a nossa vida (se estivermos num contexto de guerra), tudo isso é deixado para trás, infelizmente.

Existem dados capazes de corroborar o que agora explicou?

Há toda uma lógica que leva os humanos a ter estas ideias e podemos vê-la a manifestar-se. Por exemplo, quando há espirais económicas negativas e períodos de instabilidade o número de crimes de ódio aumenta.

Do início ao fim do dia somos ‘bombardeados’ com notícias dos jornais impressos, da Internet e da televisão, além de que passamos bastante tempo nas redes sociais. Nesta atmosfera mediática em que mergulhamos todos os dias, e olhando para os últimos anos, o sentimento de ódio tem vindo a ganhar cada vez mais espaço?

Quando me fazem essa pergunta começo sempre por questionar o que está a ser medido. A medição dos fenómenos de ódio – e tanto faz se estamos a falar de ódio nas ruas ou no online – é imperfeita. Na melhor das hipóteses essa medição é vaga ou imprecisa: ou seja, ela deixa de fora muita informação que deveria captar e, ao mesmo tempo, contabiliza coisas a mais e que não envolvem ódio, especialmente no online. Isso pode suceder, por exemplo, quando uma pessoa usa a sua liberdade de expressão e se considera que o que está a dizer é [um discurso de] ódio. Por ser tão difícil de medir os fenómenos de ódio, eu penso que é difícil afirmar [objetivamente] que a situação é pior agora do que alguma vez foi.

Contudo, e na minha perspetiva pessoal, tendo em conta o meu envolvimento nas redes sociais e o que leio nas notícias, parece existir uma tendência para o foco estar centrado no que é negativo. Não tenho a certeza absoluta se isso é provocado por estarmos a atravessar um período histórico nada usual – tivemos a pandemia e, logo de seguida, a guerra na Ucrânia.

O criminólogo Matthew Williams, autor do livro «A Ciência do ódio», é conselheiro do Ministério do Interior do Reino Unido e do Departamento de Justiça dos EUA. Albert Pamies

Antes disso ocorreram eventos que geraram enorme incerteza e ansiedade, que deixaram marca na vida das pessoas, como o referendo em 2016 que ditou o Brexit e, se recuarmos a 2007, a grave crise económica e financeira que afetou o Ocidente. Podemos dizer que estes últimos 15 anos têm sido turbulentos…

A isso temos de acrescentar a eleição do Donald Trump… Os últimos 15 a 20 anos não foram nada usuais, é verdade. Contudo, quando olho um pouco mais para trás, vejo que existiram outros períodos turbulentos: houve uma recessão mundial na década de 1970; e no Reino Unido, onde nasci e cresci, tivemos nos anos 80 o governo conservador de Margaret Tatcher que não foi nada bom e esteve na origem de grandes problemas sociais. Nos tempos mais recentes, o único período histórico em que senti que existia um clima de esperança e otimismo foi quando o Partido Trabalhista de Tony Blair foi eleito para formar governo, em 1997.

Tony Blair, enquanto primeiro-ministro britânico, defendia a chamada «terceira via», uma posição que prometia reconciliar ao centro as visões e políticas da esquerda (pautada por preocupações sociais) e da direita (que colocava a ênfase na economia). Bill Clinton, presidente dos EUA entre 1993 e 2001, também aderiu a essa alternativa, assim como outros líderes políticos mundiais. Todavia, e essa é uma das grandes críticas imputadas a estes líderes, na prática as suas políticas foram estabelecidas mais com base nas sondagens, para agradar ao eleitorado, do que em convicções e dados concretos sobre o que era o melhor ou o pior, coletivamente, para os cidadãos. No fim, parece que tudo isto deu lugar a uma sensação de desilusão em relação à política. Concorda?

Sim, e pelo meio tivemos a Guerra do Iraque, na sequência do 11 de setembro de 2001, e tudo o mais que veio depois. Se eu atentar somente na história da minha vida, desde as memórias de infância até ao que atualmente estamos a vivenciar, parece existir muita mais instabilidade e tempos sombrios do que acontecimentos positivos e períodos de otimismo. Não estou seguro sobre qual o motivo que nos leva a sentir isso, mas tenho poucas dúvidas de que é nos maus tempos, nos períodos de turbulência em que as pessoas estão mais pobres e sentem uma maior incerteza acerca das suas vidas e os seus futuros (incluindo a vida e o futuro dos seus filhos), que se reúnem os ingredientes para o ódio. É mais provável que o ódio floresça em tempos de incerteza do que em tempos de paz e tranquilidade.

Isso sucede, principalmente, devido a determinados mecanismos psicossociológicos – aqueles que expliquei no início desta entrevista – que ativam o ódio.

"Os preconceitos não são todos iguais e tampouco são um sinónimo de ódio, mas podem conduzir a um sentimento negativo em relação aos «outros», aos que fazem parte de um grupo com diferentes valores e formas de ver o mundo."

A noção do que é um crime de ódio pode ser interpretada de forma diferente, pois aquilo que lhe dá origem pode estar ligada a distintas causas. Como é que se pode estabelecer essas diferenças sem misturar tudo dentro do mesmo saco?

A melhor forma de o fazer é estabelecer uma diferença entre odiar uma pessoa por causa do grupo a que se pertence – o chamado «ódio intergrupal» – e o ódio a um indivíduo em particular por causa de algo que ele nos fez, independentemente do grupo a que pertença. Creio que essa é uma distinção muito importante. Por exemplo, uma pessoa pode odiar o seu pai por o ter abusado sexualmente em criança. Muitos psicólogos e criminólogos não estudam este tipo de ódio, com alguns a argumentar que ele, o ódio para com um indivíduo em específico por algo que ele nos fez, é qualitativamente muito diferente do ódio intergrupal, que é o tipo de ódio que mais frequentemente se estuda.

Eu não vou afirmar que o sentimento para com o pai que nos abusou não pode ser de ódio. Se algumas pessoas disserem que sentem ódio, eu vou defender ferverosamente que, de facto, o que sentem é ódio. Contudo, no meio académico damos a isto outro nome: o mais provável [para quem estuda estes fenómenos] é que seja desprezo, nojo, vergonha, etc., aquilo que se sente.

O ódio intergrupal, por sua vez, é algo diferente porque diz muito mais respeito à moralidade, à diferença de moralidade que existe entre uma pessoa e o grupo que ela, por determinado motivo, não gosta.

Usemos como exemplo o ódio para com os judeus. Se formos um neonazi ou fizermos parte de grupos neonazis, esse ódio vem de uma noção de “impureza”, mas também de “contaminação”, em conjunto com os habituais tropos antissemitas que costumamos ouvir: “eles controlam os média”, “eles só pensem em enriquecer”; ou seja, a propaganda mentirosa que vem do tempo da Segunda Guerra Mundial. Isto são juízos morais. Isto é uma noção de que aquele outro grupo está em direta oposição a mim e ao grupo a que pertenço, por causa de diferentes valores sagrados. É a ideia de que «eles» têm uma diferente apreciação do mundo ou uma forma diferente de o ver em relação a mim, e essa forma de os «outros» verem o mundo ofende-me.

Em suma, existe, por norma, uma profunda dimensão moral no ódio intergrupal e que não costumamos encontrar noutros tipos de preconceito.

Aliás, uma outra forma de definir o ódio é pensar no preconceito e tentar perceber de que forma ambos são diferentes e o porquê. Uma boa maneira para perceber a diferença passa por ver o que uma pessoa com um preconceito faz, tipicamente e ao nível do comportamento, quando encontra alguém do grupo pelo qual sente preconceito. É que o preconceito, seja ele mediano ou grande, normalmente envolve o «evitar o outro».

O que está a dizer remete-nos para Gordon Allport, um psicólogo social da Universidade de Harvard que publicou em 1954 um livro que acabaria por influenciar os estudos sobre este tema. Foi ele que criou a famosa «Pirâmide do Ódio», uma escala que Allport usou para mostrar que os preconceitos não são todos iguais. Na base está a «antilocução» (que inclui o discurso de ódio, piadas e insultos claros contra um exogrupo), seguidos do ato de «evitar o outro», a «discriminação», «a agressão física» e, no topo dessa pirâmide, o «extermínio».

Falo sobre essa pirâmide e os diferentes tipos de preconceito no meu livro. As pessoas com preconceito não procuram interagir com os grupos pelos quais sentem preconceito: elas evitam-nos, atravessam a rua quando os veem, não se mudam para uma determinada zona porque pensam que existem aí demasiadas pessoas desse grupo, não convidam para as suas festas um membro que faça parte dele. Elas afastam as pessoas desse grupo.

Quando se trata de ódio a situação é diferente. Uma pessoa que viva uma vida de ódio – como as que fazem parte de grupos de extrema-direita – tem uma maior probabilidade de puxar em sua direção [em vez de afastar] os alvos do seu ódio, com o intuito de as magoar. Isto envolve uma dimensão moral, porque na sua cabeça existe a necessidade de terem de corrigir a transgressão moral daquele grupo, porque essa transgressão é percebida como muito ofensiva, para mim e as minhas sensibilidades, pelo que tenho de fazer algo em relação a isso.

O resultado final passa por procurar pessoas desse grupo para as abusar verbalmente, atacar fisicamente e, já no extremo da escala, exterminá-las (o que implica genocídio).

Esta dinâmica de «afastar» e «puxar» é bastante discernível e real. Mas, na maior parte das vezes, quando analisamos os que cometem ofensas e tentamos entender os seus comportamentos, os que são genuinamente consumidos pelo ódio tendem a sair e procurar os elementos do grupo [que antagonizam], enquanto os que apenas têm um leve preconceito não estão numa missão para atacar ou erradicar, eles preferem evitar o outro grupo.

"Eu evitava os homossexuais na universidade devido ao medo de que eles me expusessem. Sentia ansiedade e medo, assim como uma sensação de ameaça bem real, uma ameaça capaz de minar a minha identidade e expor-me como um homossexual. Face a isto, os meus comportamentos manifestaram-se sob a forma de preconceito para com os homossexuais."

Em «A Ciência do Ódio» salienta que as pessoas que dizem, e até acreditam, não ter qualquer tipo de preconceito, como por exemplo em relação às pessoas negras, “podem ser desmentidas pelos seus indicadores cerebrais”, através de estudos neurocientíficos. Tal não significa que nascemos com um cérebro programado para sermos racistas ou xenófobos, pois não?

Ninguém nasce com preconceito e ódio, mas todos nós, a certo ponto da nossa vida, aprendemos isso. Todavia, à medida que o tempo passa, essa aprendizagem vai diminuindo em alguma medida.

Eu nasci em 1976, e as décadas 80 e 90, aquelas em que cresci no Reino Unido, não eram muito inclusivas em relação às outras culturas. Existia muito racismo e homofobia. Era um ambiente cultural bastante sexista. E o meu cérebro, à medida que ia crescendo, esteve sujeito a tudo isto e a todo o tipo de histórias que surgiam nos média: sobre o VIH e a Sida, sobre o quão assustador era este vírus e o modo como os homossexuais eram responsabilizados pela situação. Pelo meio houve as vagas de criminalidade na década de 80, com a população negra a ser acusada de toda a espécie de assaltos. A lista habitual de responsáveis [pelos males que sucediam no país] eram os homossexuais, os negros e por aí fora. Era a isto que o meu cérebro estava exposto.

Nessa época eu ainda não sabia que era homossexual – isso foi algo que fui percebendo ao longo do tempo –, mas quando estava exposto a todo este tipo de informação eu sentia-se como uma tela em branco, com o meu cérebro a absorver tudo. E é quase impossível parar esse processo, pois a informação vinha da televisão, dos jornais, dos livros que se lê na escola…

…Mas também vem do interior do nosso lar, por via da família.

Sem dúvida. Basicamente, aprendemos o preconceito através da cultura em que estamos emersos. Aprendemos através dos nossos pais, dos nossos amigos e tudo o mais que nos rodeia.

Quais as consequências de crescer num ambiente social, cultural e político que destila esse tipo de informação para o nosso cérebro?

Tal como referi, quem cresceu nas décadas de 80 e 90 no Reino Unido apanhou com uma cultura bastante racista e homofóbica. Daí que não seja surpresa que o produto disto seja uma grande seção da população, aqueles que estão na casa dos 40 anos, que neste momento estão a lidar com uma grande quantidade de preconceitos que existem no seu subconsciente. Tornou-se socialmente inaceitável expressar preconceitos, não obstante, esses preconceitos ainda estão nos nossos cérebros.

Há que perceber que temos muitos atalhos mentais que nos ajudam a perceber o mundo. Essencialmente, somos máquinas que estão constantemente a fazer categorizações e a criar estereótipos, pois o nosso cérebro não é capaz de absorver toda a informação sobre o mundo ao mesmo tempo.

No fim acabamos por construir estereótipos negativos em que os negros são desta forma, os homossexuais são assim, os judeus deste outro modo. Tudo isto [estes atalhos mentais] acaba por ser um manual de instruções sobre como navegar no mundo que nos cerca. Mas, é claro, todos estes estereótipos estão errados: qualquer resquício de verdade que neles possa existir é baseado no mais pequeno pedaço de informação, um pedaço que não é representativo de todos os negros ou homossexuais que existem.

Em breves palavras. Durante a nossa infância os nossos cérebros estão a fazer este tipo de conexões, e quando já somos adultos usamo-las para tentar perceber e navegar pelo mundo.

Capa do livro «A Ciência do Ódio»

A crer no que está a explicar, então estes atalhos mentais, que desde muito cedo aprendemos a usar, acabam por funcionar como ratoeiras que nos prendem a uma visão distorcida da realidade que nos rodeia. Há alguma forma de aprendermos a escapar delas?

Antes de mais, temos de perceber que temos estes estereótipos, que estamos agarrados a eles e que os usamos para nos movermos pelo mundo. O passo seguinte é questioná-los.

Vou dar como exemplo a homofobia que eu próprio internalizei enquanto crescia, antes de perceber que era homossexual. Eu, de facto, era homofóbico. Eu evitava homossexuais, mas não odiava e nunca cometi um crime de ódio contra um homossexual. No entanto, existia em mim um preconceito que levou a que parasse de falar com um amigo meu quando ele me disse que era homossexual. Eu evitava os homossexuais na universidade devido ao medo de que eles me expusessem, ou devido ao receio de que fosse tentado a fazer algo que me expusesse. Sentia ansiedade e medo, assim como uma sensação de ameaça bem real, uma ameaça capaz de minar a minha identidade e expor-me como um homossexual. Face a isto, os meus comportamentos manifestaram-se sob a forma de preconceito para com os homossexuais.

Quando finalmente me assumi como homossexual tive de lidar com a situação e pedi desculpa às pessoas, incluindo ao amigo que afastei. A explicação que dei foi a de que não queria minar, na altura, a minha pretensa identidade heterossexual, e que me sentia ameaçado por quem era homossexual.

Como se processou essa mudança? O nosso cérebro não tem um botão que permita ligar ou desligar de imediato determinadas ideias ou preconceitos.

Tive de me desafiar, desmantelar o preconceito que existia em mim e reprogramar o meu cérebro. Assim, em vez de sentir vergonha e medo, eu senti orgulho e uma espécie de alegria porque consegui ser eu próprio. Foi maravilhoso. Eu uso o meu caso para exemplificar o que é o preconceito aprendido e como ele pode ser desafiado. Se um homossexual pode ser homofóbico, então todos podem ter um preconceito. As pessoas negras, se cresceram numa cultura racista, também podem ter preconceitos para com outras pessoas negras.

Todos nós temos qualquer tipo de preconceito que temos de desafiar numa base rotineira, mas é muito difícil fazê-lo. Chega a ser exaustivo tentar fazê-lo, porque estamos a tentar reverter décadas de programação que estão no nosso cérebro.

"Se as pessoas têm uma experiência negativa com quem vem de diferentes contextos, isso vai moldar e formar a sua opinião sobre elas. Quando as interações são positivas, sucede o mesmo, embora criando uma opinião oposta. As interações positivas são realmente capazes de quebrar com os estereótipos negativos que se possa ter."

Os estudos em que se ‘olha´ para o funcionamento do nosso cérebro, em tempo real, corroboram o aquilo que acabou de explicar, incluindo a sua experiência pessoal?

Com as atuais tecnologias de imagiologia cerebral podemos detetar os sinais no cérebro que indicam como é que a informação é usada e quando é que ela é chamada. Basicamente, a imagiologia cerebral consegue duas coisas: medir a quantidade de oxigénio no sangue, uma medida que nos indica que parte ou partes do cérebro estão ativas em determinado momento; mas também consegue dar-nos uma visão dos impulsos elétricos que ocorrem à medida que estes fazem disparar os neurónios no cérebro.

Eu próprio fiz esses dois tipos de exames e, segundos eles, parece que tenho um diferente tipo de reação cerebral para com imagens de rostos masculinos negros e raivosos, em comparação com, por exemplo, rostos masculinos brancos raivosos. Foi um resultado que me inquietou.

O que causa essa reação?

Essencialmente, é a amígdala, uma parte do cérebro que processa o medo e as emoções a ela associadas. [O cérebro humano tem duas amígdalas, uma em cada hemisfério – esquerdo e direito – do cérebro, as quais se assemelham em formato a uma amêndoa.] É uma das partes mais antigas do cérebro humano, evoluiu há centenas de milhares de anos atrás e serve para nos manter seguros.

Esse tipo de medo, processado pela amígdala, foi muito útil no passado para sobrevivermos, enquanto mamíferos, aos nossos predadores, como eram o caso das cobras. Ou seja, ela processa medos primários.

Precisamente. E é esse tipo de medo que pisca como uma árvore de Natal, no nosso cérebro, quando vemos o que nos parece ser uma ameaça. Foi o que sucedeu quando vi um rosto masculino negro e raivoso. Perguntei à neurocientista que estava a interpretar os resultados o que significava aquilo. Eu já lhe tinha contado que tinha sofrido um crime de ódio no final da década de 90, sendo que os três homens que me atacaram eram negros, daí que ela tenha concluído que existia a possibilidade (embora sem nenhuma certeza) de que os sinais detetados eram um resquício dessa experiência.

Se eu olhar para trás, para a minha história de vida, sei que aquele momento [em que foi vítima de um crime de ódio] foi a primeira vez em que estive frente-a-frente com um homem negro. Cresci numa área predominantemente branca e aquele foi o primeiro encontro que tive com alguém negro. É sabido que o primeiro encontro com uma pessoa é, de diversas formas, formativo e que deixa marcas se tiver uma dimensão violenta e moral. Para mim, aquela experiência que tive no passado foi moral porque me estavam a atacar por julgarem que eu era homossexual, o que deixa uma marca ainda maior.

O meu cérebro, portanto, acabou por recordar esse momento. Experiências vividas com pessoas oriundas de diferentes contextos, como foi o meu caso, deixam a sua marca: e se as pessoas têm uma experiência negativa com quem vem de diferentes contextos isso vai moldar e formar negativamente a sua opinião sobre elas.

Quando as interações são positivas, sucede o mesmo, embora criando uma opinião oposta. Estas interações positivas são realmente capazes de quebrar com os estereótipos negativos que se possa ter.

Esta é, precisamente, uma das respostas que dou no livro sobre como é que podemos ultrapassar os nossos preconceitos e os estereótipos negativos. Uma das soluções de maior sucesso para o conseguir passa por interagir com pessoas diferentes de nós, em vez de as afastar, convidá-las a entrar na nossa vida para que possamos aprender e descobrir que similaridades podem existir entre cada um de nós.

"As redes sociais reforçam o contacto negativo. Colocam-nos em contacto com pessoas que são iguais a nós, em vez de também pessoas que são diferentes. Depois, quando encontramos quem não é como nós, frequentemente o que ocorre é um tipo de interação bastante negativo."

No livro descreve que as redes sociais podem ser um “acelerador” do preconceito e do ódio. Não há prova alguma de que os criadores destas plataformas alguma vez pretendessem isso. Aliás, o seu objetivo declarado era precisamente o contrário. O que correu mal?

Tenho de dar crédito aos seus inventores, pois não acredito que o Mark Zuckerberg [Facebook] ou o Jack Dorsey [Twitter] soubessem que estavam a criar uma ferramenta que acabaria por polarizar a humanidade.

Foram ingénuos quanto conceberam os algoritmos que alimentam estas redes sociais digitais?

Sim, foram, mas não existia malícia nas suas intenções. Sempre pensaram que iam fazer dinheiro com o que tinham criado, mas creio que também seguiam uma bússola moral: a de conectar mais pessoas entre si, o que traria maior educação e tolerância. Esta é a tese do «contacto positivo» desenvolvida pelo Gordon Allport [o mesmo psicólogo social que criou a «Pirâmide do Ódio»], na década de 1950, a qual defende que quanto mais positivos forem os contactos que tivermos, maior a probabilidade de sermos mais tolerantes e perceber que todos são iguais, aparte algumas diferenças como a cor da pele.

Infelizmente, parece que os criadores destas redes sociais não leram o livro de Allport até ao fim, pois ele explica que é necessário existirem pré-condições muito importantes para que se produzam contactos positivos.

Apesar de as redes sociais fomentarem um maior contacto entre as pessoas, infelizmente muitos desses contactos são negativos, pelo que acabamos por ter os nossos estereótipos reforçados, devido às caixas de ressonância e às bolhas (que funcionam como um filtro) dentro das quais estamos.

Estas bolhas, que resultam dos algoritmos das redes sociais, basicamente reforçam o contacto negativo, colocando-nos (por norma) em contacto com pessoas que são iguais a nós, em vez de também pessoas que são diferentes. Depois, quando encontramos quem não é como nós, nas redes sociais, frequentemente o que ocorre é um tipo de interação bastante negativo.

Um dos exemplos que dá das redes sociais como “aceleradores” do preconceito e do ódio é o papel importante que, segundo refere, o Facebook teve em Mianmar (antiga Birmânia) no genocídio da minoria muçulmana Rohingya.

Não podemos ignorar esse facto, o papel que o Facebook teve. Calhou ser o Facebook porque era a plataforma que os birmaneses utilizavam, pois tinha disponível a língua que falavam. Até o Twitter poderia ter sido implicado se também disponibilizasse o birmanês aos utilizadores daquele país.

Em agosto de 2017, no estado de Rakhine, em Mianmar, teve início uma perseguição pelas forças estatais do país à minoria Rohingya, e que, segundo a ONU, tinha "intenções genocidas". Estima-se que cerca de 25 mil pessoas tenham morrido, a que se juntou uma crise humanitária que levou mais de 742 mil pessoas a buscar refúgio na nação vizinha do Bangladesh. Esta imagem, de outubro de 2017, foi obtida de um dos muitos campos de refugiados que ainda hoje existem no Bangladesh. Seyyed Mahmoud Hosseini / Tasnim News Agency

A questão é que, apesar de disponibilizarem a língua, o Facebook não investiu em moderadores que falassem a mesma língua, e isso resultou numa desinformação divisiva fornecida em massa. O genocídio teria acontecido mesmo que não existisse o Facebook, ele não esteve na sua origem, mas teve um papel importante e só isso é assustador.

"Em Portugal existe um partido e um líder político que estão a demonizar a população roma [pessoas de etnia cigana]. Conseguem fazê-lo de uma forma eficaz porque estão a apelar à parte antiga do nosso cérebro [responsável por processar medos primários], e sabem que se continuarem a repetir que os roma são uma ameaça as pessoas vão começar a pensar que podem mesmo ser."

A história que Mathew Williams conta de John Doran, em «A Ciência do Ódio», é impressionante e merece ser aqui resumida. Há cerca de seis anos, este jornalista britânico teve um acidente de bicicleta em que bateu com a cabeça e, depois desse episódio, de um momento para o outro passou a ter gostos (inclusive musicais) e opiniões muito diferentes de antes. O mais problemático é que, do nada, começou a ter pensamentos de ódio perturbadores, agressivos e violentos, de cada vez que via na rua alguém diferente de si, especialmente quando estava cansado. Todavia, os artigos jornalísticos que escrevera no passado definiam-no como alguém antirracista, anti-homofóbico e antimisógino. Mais tarde foi-lhe diagnosticado uma lesão cerebral traumática no córtex pré-frontal e concluiu-se que os sintomas que sentia, incluindo as vozes de ódio e preconceito que escutava na sua cabeça – e que o faziam sentir vergonha –, tiveram origem nessa lesão provocada pelo acidente. Dois meses depois, quando as ligações neuronais danificadas já tinham sido reparadas, as vozes cessaram e John Doran voltou ao que era antes.

Há registos, um pouco por todo o mundo, de muitas outras histórias parecidas com a de John Doran. Que lição podemos aprender a partir delas?

Foi uma história que me chocou. Mas é uma ótima história porque nos dá uma perceção sobre o papel do cérebro na formação das ideias e sentimentos que temos. A lição que ela nos ensina? Tal como já referi, todos nós aprendemos o preconceito. O John [que tinha 45 anos quando teve o acidente] viveu e cresceu em Liverpool na década de 1970, um sítio onde, naquela época, existia muito racismo. Por exemplo, quando era mais novo trabalhou numa fábrica e estava constantemente a ouvir piadas racistas. Ou seja, na sua juventude esteve exposto a uma enorme quantidade de pensamentos preconceituosos e racistas. Apesar de ter crescido a sentir que não era uma pessoa preconceituosa, esse preconceito já estava no seu cérebro sem ele se dar conta.

Mas o que o impedia de dizer uma piada racista ou a expressar racismo era o seu córtex pré-frontal, uma parte do cérebro que está mesmo atrás da nossa testa.

A nível evolutivo, é uma das zonas mais recentes do cérebro humano, ao contrário da amígdala.

Sim, foi uma das últimas partes do cérebro humano moderno a evoluir. É onde se situam as áreas de controlo executivo [relacionadas com o planeamento, as tomadas de decisão, a moderação do comportamento social, a linguagem, o discurso, entre muito mais], é a parte mais ‘inteligente’ de nós e que nos permite, por exemplo, responder às perguntas de um exame. Ela é responsável por analisar informação mais antiga e dizer-nos que essa mesma informação não é verdadeira, ela permite que nunca expressemos ou mencionemos qualquer palavra relacionada com essa velha informação.

Mas quando a parte da frente do nosso cérebro não permite isso porque está danificada, tudo isso sai cá para fora. No caso do John Doran, ele nunca disse nada racista, nem uma única palavra, mas nos seus pensamentos essas palavras estavam sempre lá. Ou seja, ele tinha algum nível de controlo, mas era incapaz de parar os chamamentos que vinham das partes mais antigas do seu cérebro, as coisas que ele tinha aprendido quando era criança.

Já percebemos que os sentimentos mais viscerais e primários dos seres humanos, como o medo e o ódio, são despoletados pelas áreas mais antigas do cérebro. É isso que torna tão difícil às zonas mais recentes, como o córtex pré-frontal, ter controlo sobre esses sentimentos ou refreá-los com maior ímpeto?

Sim. A estrutura da parte mais antiga do cérebro, aquela que se desenvolveu primeiro, é responsável por nos manter seguros, porque essa era a principal necessidade da nossa espécie nos seus primórdios: era o que nos ajudava a ficar vivos, garantindo que a espécie humana sobreviveria.

Infelizmente, o que atualmente sucede é que em vez de nos proteger de um clima extremo, dos predadores e outras ameaças antigas, essa velha parte do nosso cérebro está a ser usada de uma forma que não deveria ser. Além do mais, também está a ser usada como uma arma: os políticos sabem que podem gerar em nós uma sensação de ameaça em relação a um grupo externo.

Por exemplo, em Portugal existe neste momento um partido político e um líder político que está a demonizar a população roma [pessoas de etnia cigana]. Conseguem fazê-lo de uma forma eficaz porque estão a apelar à parte antiga do nosso cérebro, e sabem que se continuarem a repetir que os roma são uma ameaça as pessoas vão começar a pensar que podem mesmo ser. Isto funciona assim: eu preciso de um bode expiatório, preciso de culpar alguém porque sinto-me frustrado com a minha vida, porque não tenho dinheiro suficiente ou não tenho um emprego. E assim se transforma um determinado grupo numa ameaça, recorrendo, como já disse, às áreas mais antigas do cérebro que processam essa informação.

O voto a favor do Brexit, por si só e sem ter em conta variáveis como a taxa de desemprego, o nível de escolaridade e as migrações, está associado a um maior número de crimes de ódio no Reino Unido, indica um estudo liderado pelo autor.

O Matthew Williams está à frente do programa HateLab, o qual se debruça e analisa o impacto de determinados acontecimentos no discurso e nos crimes de ódio. A campanha no Reino Unido em torno do referendo ao Brexit (que determinou a saída do país da União Europeia) foi um dos acontecimentos que estudaram com afinco. A que conclusões chegaram?

Estávamos interessados em saber se o voto no Brexit teve um efeito determinante na taxa de crimes de ódio. A suspeita (a hipótese) que queríamos analisar era se o referendo, o facto de o termos tido, criou as condições para que os crimes de ódios aumentassem.

No entanto, para tentarmos perceber tudo o que se passou naquele período é preciso ter em conta várias circunstâncias: se houve mudanças na taxa de desemprego, o nível de escolaridade, as migrações de entrada ou saída que ocorreram numa determinada área, etc. Tentámos englobar todas estes dados.

O que descobrimos? Quando cancelámos uma série de potenciais contribuintes para o aumento dos crimes de ódio, reparámos que ainda existia um isolado e distintivo efeito provocado pelo voto a favor do Brexit. Basicamente, nas cidades onde a maioria das pessoas votaram para sair da União Europeia a probabilidade de aí ocorrerem crimes de ódio aumentou imenso. Segundo os nossos cálculos, se a votação não tivesse ocorrido, então naquele mês [o referendo ocorreu a 23 de junho de 2016] teriam ocorrido menos 1200 crimes de ódios [reportados a nível nacional].

Estamos, portanto, face a um dos tais “aceleradores” a que faço referência no livro: o Brexit foi um evento de desencadeamento, um acelerador para crimes de ódio. E são precisamente este tipo de eventos que criam uma sensação de ameaça. O mesmo sucede após um ataque terrorista, por exemplo, em que a sensação de ameaça aumenta e, por causa disso, os preconceitos são vistos comos justificáveis e expressados.

Fica a ideia de que, nos dias de hoje, algumas pessoas, incluindo líderes políticos bastante poderosos, se sentem legitimadas para expressar ideias racistas, xenófobas ou misóginas sem receio do que os outros possam julgar delas. Como se explica esta tendência?

Psicologicamente, estamos continuamente a tentar suprimir os nossos preconceitos. Estamos sempre a fazê-lo porque é socialmente inaceitável expressar um preconceito, especialmente se tivemos em conta o momento histórico que vivemos, por causa dos movimentos dos direitos civis [o mais conhecido deles surgiu nos EUA, na década de 1950, e conduziu à plena igualdade perante a lei de todos os cidadãos norte-americanos, independentemente da sua cor de pele, etnia ou religião], os movimentos de libertação das mulheres e os movimentos para os direitos dos homossexuais, por exemplo. Todos estes movimentos levaram a que determinados preconceitos se tornassem inaceitáveis na maior parte dos círculos sociais.

O que se está a passar neste momento é que estão a surgir acontecimentos que funcionam como forças de justificação para os preconceitos que mantivemos ‘escondidos no armário’. Dentro de nós existe supressão e justificação, supressão e justificação… E estas duas coisas operam como se tivéssemos o diabo e um anjo nos nossos ombros, a batalhar entre si sobre o que devemos dizer ou fazer. Estamos constantemente a suprimir preconceitos, pois eles não são socialmente aceitáveis, mas quando surge um acontecimento que, por exemplo, nos diz “este grupo de pessoas é um problema porque perpetrou um ataque terrorista”, isso dá maior força à nossa justificação para expressar preconceitos: a nossa capacidade de supressão é enfraquecida. Quando isto acontece, de repente passamos a perceber que é socialmente mais aceitável verbalizar os preconceitos que temos.

Foi precisamente isso o que se verificou com o Brexit. Quando políticos como o Boris Johnson e o Nigel Farage dizem que determinado grupo de pessoas é mau para nós, porque ficam com os nossos postos de trabalho e com o nosso dinheiro, etc., com o intuito de criar uma sensação de medo que conduza à ideia de que o melhor é votar pelo Brexit, isso aumenta a hipótese de expressarmos preconceitos porque eles estão a ser justificados.

"A parte assustadora é tentar saber quando poderá ocorrer um ponto de inflexão em que todo o bom trabalho dos movimentos de libertação e de direitos civis, nas décadas anteriores, será suplantado pelas atuais narrativas que dizem não existir problema algum em expressar os nossos preconceitos em relação a outros grupos."

Podemos dizer, de forma rudimentar, que existe uma narrativa assente numa noção de direitos humanos, no pensamento lógico e racional, e processada pelas zonas mais recentes do nosso cérebro, que ajuda a suprimir muitos dos nossos preconceitos. Essa narrativa corre o risco de desvanecer-se?

Essa narrativa, que desde a década de 1950 está a suprimir todos os nossos preconceitos, tem sempre regressado porque os acontecimentos que podiam inverter a situação têm tido uma curta duração. No entanto, a parte assustadora é tentar saber quando poderá ocorrer um ponto de inflexão em que todo o bom trabalho das décadas de 50, 60 e 70, dos movimentos de libertação e de direitos civis, será suplantado pelas atuais narrativas que dizem não existir problema algum em expressar os nossos preconceitos em relação a outros grupos, diferentes daquele a que pertencemos.

O meu medo recai sobre alguns países, os quais podem estar a pender para este último lado. São países onde os mecanismos de supressão que desenvolvemos podem começar a enfraquecer e a desvanecer, com as forças de justificação do preconceito a ganhar cada vez mais protagonismo. Estamos a ver um pouco disso no leste europeu, onde as opiniões em relação a quem faz parte da comunidade LGBTQ+ estão a endurecer e a tornar-se cada vez piores. Mas também está a suceder o mesmo junto dos mais jovens.

É francamente assustador ver isto a acontecer, pois não há certeza alguma de que iremos sempre, psicologicamente, conseguir suprimir estes preconceitos.

"Podemos desumanizar qualquer pessoa, mas no caso dos indivíduos transgénero que atravessam uma transição [a nível de aparência física], tal faz com que pareçam ser – na mente dos perpetradores de crimes de ódio – bastante diferentes. Quando uma pessoa é vista como algo diferente e depois é desumanizada, torna-se muito mais fácil magoá-la."

Gisberta Salce Júnior. O seu nome tornou-se mediaticamente conhecido em 2006 pelos piores motivos, gerando uma onda de choque e comoção em Portugal. Em fevereiro desse ano, e ao longo de uma semana, um grupo de 14 adolescentes do sexo masculino, com idades entre os 12 e os 16 anos, praticou continuamente vários atos de agressão física, violência sexual e tortura em Gisberta, no interior do prédio abandonado em que vivia, na cidade do Porto. Gisberta, uma imigrante brasileira transexual, viu os seus últimos anos de vida marcados pela sua condição de doente com VIH/Sida e sem-abrigo. A 22 de fevereiro, os mesmos jovens que a agrediram e que a descreveram como "um homem que tinha mamas e parecia mesmo uma mulher", pensaram que Gisberta tinha sucumbido à doença e aos maus-tratos por eles recebidos. Receando ser descobertos, atiraram o corpo e os paus com que a agrediram para dentro de um poço cheio de água que existia no prédio. Ainda no mesmo dia, um dos rapazes, incapaz de lidar com o sucedido, confessou tudo a uma das suas professoras. Após o cadáver ter sido resgatado do poço, e uma vez realizada a autópsia, descobriu-se que Gisberta, afinal, estava viva quando foi atirada para a água que submergiu o seu corpo, tendo falecido por afogamento. Foi um dos crimes de ódio, neste caso movido pela transfobia, que mais marcou o país nos últimos anos.

Dos 14 adolescentes que, em 2006, agrediram, torturaram e assassinaram a transsexual Gisberta, 11 deles frequentavam as Oficinas de São José, uma instituição de acolhimento e educação de menores sob tutela da Igreja Católica. Este centro acabou por ser encerrado após a denúncia de casos de abuso sexual e maus-tratos ocorridos no seu interior. Nunca se soube se algum desses 11 jovens foi vítima de um destes crimes e se sofria de algum trauma, mas no seu livro refere que a maior parte dos que cometem um crime de ódio sofreram, a um certo momento da sua vida, uma qualquer forma de trauma.

Todos nós sofremos de traumas, embora alguns mais do que outros, e sabe-se que o trauma interfere, até certa extensão, no desenvolvimento psicológico. Se somos expostos, quando novos, a traumas de grande intensidade, e se nada for feito para conter esses mesmo traumas, o que subsiste são traumas muito crus e incontroláveis. Quando assim é, é quase certo que isso muda ou pode ter uma influência no nosso comportamento, mais tarde na nossa vida. Por exemplo: pode afetar a capacidade para avaliar os custos e benefícios de determinada situação em que se está envolvido; pode afetar a capacidade para controlar a raiva; mas também pode distorcer a perceção que se tem de coisas como o sexo. Quando se trata de um trauma sexual, ele pode distorcer a opinião sobre o que é o sexo e o que ele significa.

Foto da Gisberta Salce Júnior, anos antes de ser assassinada.

Os traumas que sofremos em criança têm um efeito muito mais poderoso do que aqueles que sofremos na idade adulta, porque quando somos adultos o córtex pré-frontal já está totalmente formado: ou seja, a nível de desenvolvimento o cérebro já atingiu seu ponto maior de eficiência [e temos mais e melhores mecanismos para lidar com o trauma].

Quando se é novo e vítima de abusos sexuais, e se não existir alguém para dizer que o que aconteceu está errado, que a situação irá parar e que iremos ficar bem, então o medo, a ansiedade, o stress e a frustração que isso causa vai mesmo alterar a psicologia do ser humano.

Assim sendo, não me surpreenderia se se vier a descobrir que alguns dos adolescentes que agrediram continuamente aquela mulher [a Gisberta] e a mataram possam ter experienciado diversos tipos de trauma enquanto cresciam.

No entanto, creio que é importante sublinhar a natureza da vítima…

Refere-se ao facto de ela ser, ao mesmo tempo, transexual e brasileira?

Sim. Ela era diferente em duas frentes. Era uma estrangeira, uma não-portuguesa, mas há que frisar que a natureza transgénero de uma pessoa pode, por vezes, levar à sua desumanização: a noção de que esta pessoa não é um ser humano como eu. É verdade que podemos desumanizar qualquer pessoa, mas no caso particular dos indivíduos transgénero que atravessam uma transição, tal faz com que pareçam ser – na mente dos perpetradores de crimes de ódio – bastante diferentes dos demais. [A Gisberta Salce Júnior, por exemplo, submeteu-se a um processo de transformação da sua aparência física, com a identidade de género que assumia a não coincidir com o sexo com que nasceu.]

Quando uma pessoa é vista como algo diferente e depois é desumanizada, torna-se muito mais fácil magoá-la. Foi precisamente o que Hitler e os nazis fizeram com os judeus, ou o que em Mianmar se fez com os Rohingya: estas minorias eram verbalmente comparadas a baratas, vermes e ratos.

Esta tática de desumanizar todo um grupo de pessoas leva a que seja aberta uma enorme avenida de possíveis comportamentos, incluindo fazer a elas coisas inimagináveis (fisicamente e moralmente,) porque pensamos que elas não são iguais a nós.

Há um outro pormenor que é preciso ter em conta no caso da Gisberta. Os adolescentes que cometeram o crime operaram em grupo e eram todos do sexo masculino.

Nos crimes de ódio, mesmo quando há uma dinâmica de grupo, também há raparigas e mulheres envolvidas. Todavia, quando a maioria é composta por rapazes ou homens, o normal é que venha à tona uma cultura de masculinidade. Quando a vítima é um homossexual ou um indivíduo transgénero, o que esse grupo masculino está potencialmente a fazer é a tentar “endireitar as coisas como elas devem ser”. Basicamente, estão a dizer que aquela pessoa está a transgredir a moral de masculinidade e, devido a isso, vão corrigi-la e puni-la por ter quebrado essas regras.

Ao mesmo tempo, enquanto cometem esse ato criminoso na vítima, também estão a comunicar entre si dentro do grupo, estão a mostrar que são mais masculinos devido ao que estão a fazer. Estão a reafirmar a sua própria masculinidade atacando alguém que, do ponto de vista deles, é de certa forma uma afronta à ideia de masculinidade. De forma resumida, trata-se de um ato performativo para os outros verem, o qual, por sua vez, reforça o ideal de masculinidade valorizado pelo grupo, ao mesmo tempo que lhes permite subir alto na hierarquia do mesmo.