Miguel Anxo Fernandes Lores tirou os carros do centro, aplanou passeios, pôs parques infantis onde dantes os havia de estacionamento. Hoje, Pontevedra tem mais dez mil habitantes do que tinha, e o número de crianças aumentou 8%. Desde 2011 que não há acidentes mortais, e os níveis de carbono estão já compatíveis com as normas que todas as cidades se esfalfam por atingir.

O alcaide esteve em Lisboa, a convite do café A Brasileira, para um dos debates do ciclo Lisboa de Volta, que analisa a cidade pós-COVID-119. E deu uma lição de urbanismo moderno, ele que é médico de profissão.

Por ser uma cidade virada para as pessoas, Pontevedra viveu de forma diferente a covid-19 e estes tempos de confinamento?

Vou dar um exemplo: quando se levantou o confinamento e as pessoas puderam sair à rua… obviamente se há ruas com passeios de 1,5 metros não se pode fazer uma separação de 2 metros. Nós trabalhamos há vinte anos o espaço público e há passeios na cidade de Pontevedra que têm 3,5 metros. Quando não há passeios, que é a maioria de todo o centro histórico e da zona nova de 1800, existem quase 2 ou 3 quilómetros quadrados com plataformas únicas ou espaços de coexistência, que dão preferência aos peões. Os carros também entram nessas zonas, mas sempre respeitando o direito das pessoas, e das bicicletas, das trotinetes e do transporte público, em primeiro lugar, e depois das mercadorias, cargas e descargas. Portanto, não precisámos de fazer nenhum tipo de adaptação ao espaço público para o COVID-19. Noutras cidades tiveram que pôr sinalização, fazer tudo a correr porque era imprescindível. Nesse aspeto, fomos uma referência. Assim como no combate às alterações climáticas, na redução da contaminação e do efeito de estufa provocado pelos automóveis. Desde há 15 anos que temos uma redução de 70% e a qualidade do ar todos os dias é compatível com as normativas da União Europeia.

Quando se fala de as pessoas regressarem ao centro, de estarem mais próximas, e não quererem andar de transportes, quererem andar a pé… Tudo isso são hábitos em Pontevedra. A cidade de 15 minutos não é estranha para si.

Sim, há que perceber que Pontevedra é uma cidade com 5-6 quilómetros quadrados e é compacta, com edifícios com 5 ou 6 andares, e uma concentração populacional considerável. Nós entendemos que as cidades devem ser compactas, para dar os melhores serviços a um custo ecológico menor.

O que é uma cidade compacta?

É uma cidade onde se ocupa o espaço com qualidade. Cidades compactas são cidades que permitem deslocações a pé e nas quais as distâncias se encurtam. Outra característica que Pontevedra tem é que é uma cidade multisserviços, não temos espaços da cidade reservados para usos específicos. Queremos que a cidade seja um espaço onde a 500 metros ou a um quilómetro, tenhas tudo o que precisas para viver. Portanto, que não precises de pegar num carro para ir comprar pão ou para ir ao centro comercial na periferia. A nossa aposta é a de uma cidade multifuncional e de multisserviços, onde as distâncias maioritariamente se podem fazer a pé. 90% compra roupa e alimentação a pé, não utiliza o carro mais do que em 28% das deslocações. Maioritariamente, faz-se tudo a pé, como é uma cidade muito pequena e plana, o uso de bicicleta não ultrapassa os 5 %. Se fosse uma cidades de 10, 15 quilómetros de distância, aí o uso de bicicleta seria maior. Mas nós movemo-nos com a nossa própria energia. Deram-nos um prémio em Nova Iorque de excelência do desenho urbano sustentável porque havia uma preocupação pela obesidade infantil, qualidade de vida, comida caseira e de produtos frescos. Se as distâncias são curtas, o espaço público é acessível para todos. Entre o passeio e a estrada fizemos plataformas únicas, para que as pessoas com mobilidade condicionada se consigam mover sem restrições. E há uma coisa importante, que é o limite de velocidade de 30 Km, 20 Km e agora 10 Km.

Dez quilómetros em toda a cidade?

Onde a preferência é pedonal. Velocidades superiores podem provocar acidentes com os peões. O resto da cidade, incluindo zonas rurais, é a 30. A 30 nunca acontecem acidentes mortais.

Aliás, já não há acidentes rodoviários em Pontevedra desde de que ano?

Desde 2011. Nestes últimos meses criou-se o prémio de segurança rodoviária da União Europeia, e nós recebemos o primeiro. E esse é um dado importante, porque a União Europeia está a refletir sobre a necessidade de tomar medidas nas zonas históricas porque os acidentes não baixaram como deveriam ter baixado, então criaram esse prémio de segurança rodoviária.

A segurança é fundamental para a qualidade de vida?

Gosto de falar deste como um modelo integral que permite às pessoas que se necessitam de se deslocar pela cidade o possam fazer, como as crianças e pessoas com mobilidade reduzida ou os idosos. É uma cidade segura, onde as crianças podem ir a pé para a escola, podem jogar futebol na rua e nas praças, é uma cidade atrativa para viver. E a característica especial que tem é que a cidade cresceu no centro e não no subúrbio, evitando o trânsito entre o subúrbio e a cidade. A cidade é que te dá qualidade de vida e isso para mim é mais importante.

Isso agora parece um mar de rosas, mas quando ganhou as eleições e propôs isso pela primeira vez, não foi fácil. Quem foi que mais o criticou, os comerciantes?

A oposição política, depois os condutores de carros de altas gamas, com medo de perder privilégios. Se não podes levar o teu carro à missa de Santa Maria, ao domingo, para que serve? Há um problema de uso, de individualismo. Estas eram as pessoas que se opunham, havia algum comércio também, mas porque tinham medo de perder negócio, o que não aconteceu.

Isso é muito importante. Em Lisboa as críticas que se fazem aos projetos de de retirada dos carros do centro da cidade estão ligadas ao comércio. Acha-se que as pessoas vão deixar de ir à cidade se não o fizerem de carro.

Há dois argumentos contundentes. Lembro-me de um senhor que tinha uma livraria em Pontevedra e perguntaram se estava a favor da penalização e ele disse, a mim nunca me entrou um carro para comprar um livro. O outro foi numa penúltima viagem que fiz ao México, onde me perguntavam preocupados pelo comércio. E eu dizia: quem é o comerciante mais vende no mundo, quem mais vende no mundo inteiro? Alguns sabiam que me estava a referir Amancio Ortega da Inditex, e ele não coloca uma loja da Inditex numa segunda circular, coloca no centro urbano da cidade, na zona pedonal, no sítio mais caro de toda a cidade. Quando se fazem obras para atualizar uma zona da cidade e convertê-la em pedonal, nesse momento há uma perda de clientes, mas assim que se recupera esse espaço, triplica-se as vendas, em alguns casos. A qualidade urbana da cidade facilita a atividade económica e estimula a atividade privada. Por detrás de um investimento público num espaço público há um investimento privado, porque isso é mais atrativo. Nós sempre apostámos no espaço público com todos os serviços e a partir daí a própria atividade privada é a que gera mais investimento. E faz que a cidade seja diferença e que as pessoas estejam mais orgulhosas da sua cidade. E é muito positivo.

Nas cidades portuguesas aconteceu o contrário, com os centros comerciais, nos anos 80…

Há exemplos de cidades como Lisboa, Porto, ou Santiago, onde por não se fazer investimento de qualidade urbana na cidade, a população procurou qualidade urbana fora. Ou porque não se fez uma política correta de construção ou porque era uma cidade inóspita e isso era o que se passava connosco em 1999. Hoje dizia o presidente da Câmara de Lisboa que há uns anos entravam em Lisboa 400 mil carros. Lisboa (cidade) tem hoje 500 mil habitantes. Nós naquela altura tínhamos 50 mil habitantes e entravam 150 mil carros em dias de trabalho. Era uma barbaridade, o que fizemos não foi pôr mais faixas, porque assim mais carros entravam. Recuperámos sim o espaço público e a partir daí tornámos a cidade mais atrativa.

Tudo isso funciona em Pontevedra porque é uma cidade pequena, não em Lisboa que é quatro vezes maior.

As cidades maiores têm uma vantagem, têm um transporte público funcional que as pequenas não têm. Quando tomamos uma decisão de reduzir o trânsito dos veículos privados numa cidade pequena estamos a incomodar uma percentagem elevada de condutores que levava um carro para onde bem lhe apetecia. Numa cidade grande já há muita gente que não leva o carro porque é impossível. As pessoas têm direito à cidade e ao espaço público. Têm direito a sair da sua casa, têm direito que não atropelem os seus filhos e que estes possam ir a pé para a escola. O direito ao espaço público é algo fundamental, é onde acontecem as interações sociais. Há um termo que usamos todos na União Europeia que é a coesão social. A coesão social é viver num espaço agradável, onde as pessoas saem à rua para conviver. Não há coesão social entre pessoas e carros. Portanto, façamos cidades habitáveis, para as pessoas. Cada vez mais gente vive no espaço urbano, temos que fazer um que não nos mate, que seja espaço de convivência, que seja dinâmico.

Uma espécie de ecologia urbana.

Até há pouco tempo, a ecologia referia-se ao espaço livre, ao passarinho, mas a ecologia agora é o ambiente onde vivemos e nós vivemos na cidade. Portanto, nesse ambiente tem de se respirar ar puro. E o meio ambiente urbano tem que ver com a redução do tráfico, a qualidade do ar, e isso é responsabilidade dos autarcas e presidentes das câmaras. Temos responsabilidade direta sobre o espaço público e somos nós que podemos decidir o que pode ou não circular. Eu recomendo a todos que tomem decisões. Nós somos uma força política nacionalista, galega, base social relativamente pequena, que temos uma percentagem de voto que vai entre o 10% e o 25% numas eleições gerais. Municipais superamos sempre os 30 ou 40% dos votos, isso é porque gostam da gestão que fazemos. As pessoas votam por quem lhes dá maior qualidade de vida, quem lhes dá garantia de dinamismo, de espaços agradáveis. Cada cidade tem que procurar o seu caminho, tem que olhar para o seu espaço e ver o que tem de fazer. As chaves são sempre as mesmas, que é recuperar o espaço para as pessoas, reduzir o tráfego e perceber que a cidade não tem de ser um armazém de carros nem um espaço inóspito, tem de ser agradável.

Há quem diga que a grande vantagem de Pontevedra foi demográfica.

Demográfica porque aumentou a população. E demográfica porque há pessoas de outras cidades que podem trabalhar porque estamos num mundo globalizado e elegeram Pontevedra para viver porque os seus filhos têm maior qualidade de vida. E isso tem a ver com a segurança, qualidade, melhoria fundamental do espaço público. E depois tem uma parte importante, que é quando a cidade é atrativa para viver também atrai talento. Estamos a trabalhar agora no conceito de uma cidade 4.0 com empresas inovadoras e com as universidades. Nós temos alguns cursos de ensino superior, como desenho, moda, desporto, fisioterapia, belas-artes, todos estes setores da criatividade e cultura atraem muito talento para a cidade. Já temos exemplos de várias empresas pequenas e de novos empreendedores, que estão exportando e que testam as suas criações na cidade. Como empresas que se dedicam à iluminação e que testaram a sua inovação na própria cidade à medida que vão crescendo, em colaboração com os técnicos municipais. Fizeram toda a iluminação do centro histórico, para evitar a contaminação luminosa, fizeram luzes mais natural e estão agora a competir na Europa com projetos em Amesterdão na Philips. Quando aplicas as novidades e projetos de vanguarda isso ajuda o tecido empresarial a desenvolver-se. E este tipo de coisas também fazem com que a cidade se vá tornando uma referência.

Costuma falar das crianças do banco de trás.

Para mim, uma preocupação pelas quais mudámos tudo, é a falta de autonomia das crianças na cidade. Há uma parte que está relacionada com a sociedade atual, em que os pais e mães são superprotetores com os filhos, e isso é indiscutível. Qualquer um de nós que tenha agora 50 ou 60 anos, passou a sua infância a ir para a escola a pé, e chovia e molhávamo-nos. Agora as pessoas pensam que os miúdos encolhem quando se molhem. É a geração do assento de trás do carro. a cidade não tem de ser um armazém de carros nem um espaço inóspito, tem de ser agradável. Há que dizer aos pais que deixem os miúdos ganhar autonomia e que os deixem experimentar o espaço público, e ao mesmo tempo as autoridades têm de garantir uma certa segurança nesse espaço. Uma cidade onde os carros andam a 60 Km por hora, não é para deixar as crianças a correr por aí. Mas se reduzimos a velocidade e o tráfego e fizermos passeios, então sim, conseguimos uma cidade mais habitável.

As famílias vêm para o centro e fazem dele a sua aldeia.

Um projeto integral é também conseguir responder a toda a cidade. Se não respondes de forma igual a toda a cidade, o que estás a fazer é elevar preços em certas zonas, fazendo com que as pessoas queiram viver aí, e depois aparece gentrificação. Nós começámos pelo centro histórico, porque é o que temos, e as pessoas não vão conhecer um bairro em Pontevedra. Vão ver a Igreja da Peregrina, o caminho português, e há que investir aí ao início. Mas depois é preciso atuar na cidade inteira para que todos tenham direito ao acesso. Eu critico muito que se façam zonas pedonais só no Natal porque existe mais tráfego. E as pessoas que vivem lá no resto do ano? Só podem sair à rua quando está tudo cheio de turistas, cheio de pessoas que vão comprar prendas de Natal? Não é assim, as pessoas vivem na sociedade o ano inteiro e tens que viver no teu espaço público, tem que se fazer investimentos globais para que a cidade cresça de forma harmoniosa e compacta. Há um Presidente de Câmara na Galiza que faz cada centro comercial maior do que o anterior, e diz que está a favor do comércio local, e isso é mentira. Não se pode ser pelo comércio local, quando se faz centros comerciais cada vez maiores. E eu quero insistir numa questão. Se entendemos que a cidade é para as pessoas e que os peões são o mais importante; se mudamos o paradigma, pondo o peão no topo da pirâmide, a partir daí as decisões são mais fáceis. Tem que se acalmar o trânsito, não se pode conduzir depressa na cidade. E o mesmo na bicicleta, não é porque estou a utilizar este meio que tenho direito a ir mais rápido.

Em Pontevedra houve mais alguma política, além de tirar os carros e tornar a cidade mais pedonal, para trazer mais gente para dentro do centro? Como fez para intervir numa coisa que também é privada e difícil de se gerir, como a habitação?

A ideia fundamental é recuperar o espaço público das pessoas. Como se faz? É reduzindo o espaço de estrada e aumentando o do passeio e das plataformas únicas. Uma parte fundamental é acalmar o trânsito, outra é a coexistência de usos, porque efetivamente em Pontevedra há carros. A ideia é que na cidade circulem só os carros necessários para que a cidade funcione. O espaço é para todos, mas sobretudo para os mais necessitados, as crianças e os mais velhos. Mas há outras questões que são colaterais. Quando tiras os carros da rua, se nesse espaço não há um uso social, comunitário, cultural, desportivo, então as pessoas não entendem porque tiraste os carros da rua. Tenho que ter uma política cultural, festiva, desportiva, o concelho tem de trabalhar para dar uso a esse espaço público. E outra coisa, é o exemplo que se dá. O carro oficial do concelho não voltou a entrar no centro histórico, eu ando a pé até ao centro. Ali não entra o carro de ninguém, então as pessoas compreendem.
Quando melhoras a qualidade de vida, o espaço público torna-se mais atrativo. Quem vive no centro histórico, vive com a mesma qualidade do que quem vive numa urbanização nova. Nós trabalhamos com uma empresa para o abastecimento de água que mede a cada momento, o serviço de água. Temos cada vez menos perdas de água, e estamos a trabalhar agora com outras coisas, nomeadamente o transporte, porque temos uma população muito dispersa. Estamos também a trabalhar na compostagem de resíduos sólidos, e vamos conseguir cumprir os objetivos antes de 2030, cerca de 75% dos objetivos ficarão cumpridos em 2020. A redução da contaminação, eliminação das perdas de água, a compostagem dos bio resíduos. É verdade que temos a vantagem de nos podermos candidatar a mais mandatos do que em Portugal, para continuar o trabalho. Os projetos de cidade necessitam de tempo para serem executados.

Como lhe surgiram, no início, essas ideias todas?

Eu era médico, mas a cidade estava mais doente que alguns pacientes crónicos. Muitas cidades estão doentes, há contaminação ambiental, há mortos por acidente, há ruído, o espaço público não é utilizado e tem que se aplicar um tratamento como se fosse um paciente normal. Temos que lhes dizer para andarem mais de 10 mil passos, e temos de lhes fazer o passeio para poderem caminhar. Para isso, tem de haver uma segurança rodoviária e a cidade tem de ser mais atrativa. Para mim, que sou médico de medicina primária, ser Presidente da Câmara Municipal é uma continuação da medicina.

Pode acompanhar esta série de debates todas as quintas feiras, às 18:00, no SAPO e na página oficial de "A Brasileira" no Facebook. O próximo, dia 30 de julho, será sobre Olissipografia e história de Lisboa – o que temos para aprender com a pandemia.