
Costa mudou radicalmente o sistema político português, com duas decisões revolucionárias e mais uma: i) rompeu o acordo tácito vigente na democracia portuguesa, de governar quem ganha as eleições; e ii) manter fora do arco da governabilidade – ainda que apenas expresso em apoio parlamentar – forças políticas extermistas, desde logo aquelas que, por filiação ideológica, apoiam ou justificam ditaduras (coisa que, à direita, nunca aconteceu expressamente). Fê-lo por cinismo e instinto de sobrevivência. Foi louvado pela sageza e incensado no Olimpo do Conselho Europeu (com o apoio entusiasmado do Governo da AD, convém, talvez, não esquecer).
Disse duas razões e mais uma, porventura a mais importante para o dia de hoje: iii) a polarização da sua acção política com o Chega, desde o tempo em que André Ventura era deputado único, elevando a sua importância muito para lá da sua expressão eleitoral. Fê-lo com a colaboração activa de Ferro Rodrigues e de Augusto Santos Silva, na Presidência da Assembleia da República, ambos do PS. Com isto quis mexicanizar o país, tornando-o num single party system, onde o PS era o single party.
Fê-lo, durante a maior parte do tempo, antes do colapso moral do seu governo e do seu partido, que culminou com a “indecente e má figura”, não a governar, mas a fazer oposição ao PSD e a Passos Coelho, o vilão favorito da esquerda. Contou, nisso, com a colaboração inapta (para dizer o mínimo) do PSD, que elegeu Rui Rio 3 vezes.
Com a balbúrdia na gestão da imigração (com apogeu na extinção do SEF, por razões mesquinhas e totalmente assacáveis à incompetência de Eduardo Cabrita) e a deterioração dos serviços públicos (do SNS à escola pública), a seu bel-prazer e em seu proveito próprio, hipotecou o país durante quase uma década.
Dizia: polarizou a sua acção política com o Chega. Fê-lo com o intuito de enfraquecer o PSD. Eis, nestas eleições, por ironia do destino – ou deverei dizer par l'ironie du destin, lembrando o que o Partido Socialista Francês fez ao partido dos Le Pen? – graças à determinação de Montenegro no “não é não”, o PS a pagar essa factura.
Com o 3.º pior resultado, numericamente, da sua história, mas o pior simbolicamente, por deixar de ser o 2.⁰ partido com mais deputados, o PS vê-se confrontado com o legado de Costa, que a incompetência, tibieza e inconstância de Pedro Nuno Santos exponenciou.
Mudando de assunto: tenho dúvidas da leitura preguiçosa imediata, de que o país tenha virado à direita. Porquê? Porque importa saber – desde logo na ausência de compromissos em matéria de reformas – que o PSD seja mesmo de direita e – desde logo com o aumento de despesa pública inscrito no Programa do Chega – que o Chega seja mesmo de direita.
Sinal importante seria, se em mais não se entenderem, desde logo, alterar o preâmbulo da Constituição onde a infame frase “abrir caminho para uma sociedade socialista” se mantém. Por que é que isto importa? Porque as reformas, como a que a cimeira da NATO imporá, já no próximo mês, e os efeitos globais da tensão comercial, poderão empobrecer o país, sem um Estado funcional para amparar o impacto.
Voltando à mudança radical do sistema político português: o Chega passou a segunda força política nacional e André Ventura a líder da oposição. Ali, na liderança, por mais que seja, ainda, um partido de um homem só, são a expressão de diversas vontades de mais de 1 milhão e 300 mil portugueses, iguais em direitos e dignidade. Demonizar estes eleitores, com epítetos depreciativos, será persistir na incapacidade de ler o país. Ignorá-los, torna-los-á mais. E, em ambos os casos, enterrar, em definitivo, o sistema, que agora mudou.
Como dizia um amigo, há muitos anos, “este movimento não é de esquerda nem de direita: somos de baixo e vamos aí acima reclamar o que é nosso”. Sobre isto, não deixa de ser curioso como, até geograficamente, o Chega alastra de sul para norte, precisamente a partir de onde a esquerda sempre foi hegemónica.
Recentrando: o ónus – com exposição pública – deverá ser deixado ao partido de André Ventura, obrigando-o a assumir as responsabilidades. A política vence-se com ideias e não com caricaturas, a política vale pela visão e não pelos tacticismos. Ventura terá esses desafios, a que deverá ser obrigado: deixar de ser só um agregador de rancor e deixar de ser um partido só dele.
Percebo a frustração de quem olha para os resultados com pavor, e admito a citação meio rabugenta de Churchill, de que “a democracia é a pior forma de governo, excepto todas as outras que foram tentadas”, mas convém honrá-la. Mais não fora, com as palavras de Jefferson na memória: “o povo é o único soberano legítimo, e o seu poder deve ser exercido através da vontade geral”.
Lembram-se da soberba de António Costa, alcandorado na maioria absoluta que desperdicou? Habituem-se, disse ele. Habituem-se.
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia