
O debate aceso em torno da sentença do caso do ataque ao Centro Ismaili, amplificado pela tomada de posição de dezenas de psiquiatras, transcende o caso concreto. Revela uma necessidade premente de refletir sobre como o sistema judicial valoriza e integra o conhecimento científico especializado, particularmente no que concerne à saúde mental e à determinação da responsabilidade criminal. Como médico psiquiatra, com particular enfoque na psiquiatria forense, sinto o dever de contribuir para este esclarecimento, num momento em que a clareza conceptual parece escassear.
No epicentro da questão está a imputabilidade penal: a capacidade de um indivíduo ser responsabilizado pelos seus actos. O artigo 20.º do Código Penal é taxativo: inimputável é aquele que, por força de uma "anomalia psíquica" presente no momento do facto, carece da capacidade de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar por essa avaliação. O termo "anomalia psíquica" remete, inequivocamente, para o domínio da patologia mental, da doença.
É para identificar esta condição patológica e o seu impacto funcional que o Código de Processo Penal (CPP) no seu artigo 159.º, determina a realização de uma perícia psiquiátrica. Este é um acto médico-legal, da exclusiva competência de um médico especialista em psiquiatria. A sua missão é dupla: primeiro, identificar a existência de anomalia psíquica, ou seja, patologia; segundo, e crucialmente, determinar se essa anomalia psíquica comprometeu as capacidades cognitivas ou volitivas do agente no momento do crime.
Foi esta perícia que, no caso em análise, concluiu pela inimputabilidade. E importa aqui frisar que nem todos os psiquiatras estão igualmente preparados ou possuem a diferenciação necessária para actuar como peritos em psiquiatria forense, pois esta é uma área que implica competências altamente específicas e superespecializadas – tanto que a própria Ordem dos Médicos reconheceu essa necessidade ao criar a subespecialidade de Psiquiatria Forense.
Posteriormente, foi realizada uma perícia psicológica, ao abrigo do artigo 160.º do CPP. É aqui que a confusão de papéis se torna evidente. Imagine que o funcionamento mental é um sistema complexo, como um carro. A perícia psiquiátrica forense, no contexto da imputabilidade, é como o diagnóstico de um mecânico especializado que verifica se o motor (a mente) possui uma avaria estrutural grave (a anomalia psíquica) que o impediu de funcionar correctamente (capacidade de entender e querer) no momento de um determinado "acidente" (o crime).
O psiquiatra forense é o perito treinado para identificar essa "avaria" específica, de natureza médica, e determinar se foi ela a causa directa do "descontrolo". A perícia psicológica, por sua vez, seria como a análise de um instrutor de condução ou de um especialista em comportamento rodoviário. Este observa o estilo de condução do motorista (personalidade, traços comportamentais), as condições da estrada (contexto social), ou se o condutor tem maus hábitos ao volante (padrões de comportamento). Esta análise é valiosíssima para compreender o condutor, o seu perfil e o seu risco geral, mas não se sobrepõe à avaliação técnica da mecânica interna do veículo. O instrutor não desmonta o motor para verificar uma falha numa válvula; essa é a função do mecânico.
A distinção fundamental reside no foco: a psiquiatria, enquanto especialidade médica, dedica-se primariamente à doença mental. O diagnóstico formal de uma "anomalia psíquica", no sentido patológico que a lei lhe confere, é um acto médico, da competência do psiquiatra. A psicologia, ciência do comportamento e dos processos mentais, é crucial para compreender o indivíduo na sua globalidade. Um psicólogo pode, e frequentemente o faz com grande acuidade, levantar hipóteses diagnósticas e identificar sinais de alerta que justifiquem um encaminhamento para avaliação psiquiátrica.
No entanto, e ainda mais crucial no contexto específico da imputabilidade do art. 20º, não lhe compete firmar o diagnóstico médico da "anomalia psíquica" incapacitante. A sua perícia é de valor inestimável em inúmeros outros contextos forenses – avaliação da personalidade, do risco de violência (quando não directamente ligado a uma doença mental activa e incapacitante), da credibilidade do testemunho, das sequelas psicológicas em vítimas, entre muitos outros – onde a doença, no seu sentido médico estrito, pode não ser o elemento central ou determinante da questão colocada ao tribunal.
A decisão do colectivo de juízes, ao contrariar a perícia psiquiátrica e a promoção do Ministério Público, baseando-se, ao que parece, numa perícia psicológica para uma finalidade que a esta não compete no âmbito específico da imputabilidade, é profundamente questionável. A prova pericial médico-legal psiquiátrica, pela sua natureza técnica e científica, não é matéria de livre convicção absoluta do julgador. O seu afastamento exige uma fundamentação robusta, que aponte um erro crasso na sua elaboração ou a apresentação de prova científica de valor igual ou superior que a contradiga.
Uma perícia psicológica, pese embora o seu valor noutras dimensões, não possui, para o efeito específico do diagnóstico de "anomalia psíquica" do art. 20º, esse valor probatório equiparado. Não se trata de estabelecer hierarquias de valor entre ciências, ambas fundamentais, mas de respeitar as suas delimitações e âmbitos de actuação.
Quando o tribunal parece pedir ao "instrutor de condução" que emita um parecer técnico sobre a "avaria do motor" que se sobreponha ao do "mecânico especializado", a fiabilidade da decisão fica comprometida. Cada qual deve permanecer na sua "via" de competência.
A correcta administração da justiça penal exige que se reconheça e respeite o âmbito de cada saber. A determinação da existência de uma anomalia psíquica e do seu impacto na capacidade de um indivíduo ser responsabilizado criminalmente é uma questão médica, da esfera da psiquiatria.
Ignorar este princípio é um precedente que nos deve inquietar a todos e que urge corrigir, sob pena de a balança da Justiça pender para o lado do equívoco.