Na última década, a doutrina de quem nos pastoreou assentou em fazer-nos crer que éramos corresponsáveis pela rotação da Terra sobre si mesma e pelas voltas desta em torno do sol. O planeta vencia a inércia, mas o mérito era nosso, dizia-nos a propaganda governamental.
As leis da Astronomia e da Física podiam então ser revogadas porque, afinal, os seus efeitos eram reivindicáveis por humanos, sobretudo pelos mais capazes e desembaraçados de todos, os portugueses. Ao girarmos, existíamos. Ao dançarmos, não porque efetivamente nos mexêssemos, mas porque o chão que pisávamos o fazia por nós, estávamos a contrariar quem criticava a inação. Cada povo tem o Galileu que merece. Calhou-nos em sorte António Costa.
Durante quase nove anos, com o amparo de um Presidente que, apesar de frenético, se revelou irrelevante, não mudou nada de substancial em Portugal. Não houve uma transformação digna de registo – as exceções talvez tenham sido o facto de o PS ter metido na cabeça que é fundamental ter as contas em ordem e o descalabro nas políticas migratórias. Tudo considerado, apesar da lengalenga de que tinha virado a página da austeridade, o anterior primeiro-ministro legou a Luís Montenegro um país um nadinha melhor do que tinha herdado. E aos portugueses, o Chega como primeira força da oposição e Henrique Gouveia e Melo como próximo inquilino de Belém.
Costa, como já escrevi, lia-nos e interpretava-nos como poucos: conservadores até à medula, avessos a qualquer espécie de risco ou reforma, profissionais da desresponsabilização individual e viciados em doses homeopáticas de inveja em relação a quem faz avançar o que quer que seja. O segredo do sucesso foi manter tudo previsível, tudo constante, tudo medíocre. O nacional-mesmismo, recebido com a apatia própria de corpos incapazes de enxotar moscas, foi promovido a ideologia pátria.
Montenegro percebeu a lógica e, com o álibi perfeito – a inexistência de uma maioria estável no Parlamento —, decalcou a estratégia do antecessor. Fez do nacional-mesmismo a bússola de uma governação que tinha como único fim a eleição seguinte. Com sucesso nas urnas, homologado uma segunda vez no último 18 de maio.
No entanto, contados os votos das últimas legislativas, o chefe do governo depara-se com uma dificuldade com que não se defrontava até aqui: vai ter de fazer qualquer coisa acontecer. Não bastarão promessas, não chegarão anúncios (de planos, programas ou acordos), não serão suficientes os expedientes táticos, não será aceitável que se despejem incontáveis milhões para apaziguar os enxames corporativos mais incómodos nem serão compreensíveis as sujeições tíbias aos apetites, como no caso da reprivatização da TAP, do segundo maior partido nacional.
Terminou o tempo de pedir licença para existir. É hora de governar, ignorando as baias que a oposição – a que ainda conta e a que ficou reduzida a pó — e a do comentário prêt-à-porter procuram colocar-lhe. Pedem-lhe agora, em nome da democracia, do Estado de Direito e de um centrismo melancólico que corroeram sem rebuço em 2015, que se suicide. Que conserve o “não é não” quando o país grita o contrário. Não perceberam nada. Ou não querem perceber.
Sejamos claros: a nova geometria parlamentar permite que Montenegro encete uma mudança profunda em diversas áreas e que o faça com a colaboração de um novo PS (expurgado da deriva corbynista que produziu os resultados que sabemos) ou apesar da vontade do PS. Seja na saúde ou na educação, onde as ofertas privadas e sociais devem ser acarinhadas e incluídas num sistema amplo e articulado; seja na legislação laboral, olhando com arrojo para os desafios trazidos pela tecnologia e pela digitalização, pelo trabalho remoto, pela interdependência económica, pela inteligência artificial, entre outros, mas também estabelecendo limites às greves, em particular às designadas práticas abstensivas atípicas; seja na habitação, com menos entraves à construção e ao arrendamento privados, mas com mais casas públicas (não necessariamente em Lisboa ou no Porto) no mercado; nos transportes, decretando o fim de monopólios ineficientes e injustificáveis; seja na Segurança Social, assumindo que as gerações mais novas estão a contribuir para um sistema do qual pouco ou nada beneficiarão; seja na fiscalidade, que castra famílias e atasca empresas; seja na segurança interna ou nas Forças Armadas, acabando com a dicotomia entre perceções e realidade (como se as perceções, já por si, não fossem um problema) e com a utopia de que não devemos pertencer a blocos político-militares; seja na eleição/designação e no funcionamento dos órgãos de soberania, revendo as leis eleitorais ou reconfigurando a arquitetura do nosso aparelho judiciário (tribunais superiores incluídos), mas também dos organismos de regulação e supervisão, salvaguardando a sua independência e protegendo-os de agendas pessoais ou partidárias; seja ainda na descentralização de competências e no poder autárquico, repensando a efetiva utilidade das autarquias; seja na dimensão da própria Administração Pública e do setor empresarial do Estado.
Exige-se, portanto, uma visão de país e um roteiro claro, que não esqueça as dimensões em que o Estado é indispensável e que não negligencie quem verdadeiramente carece do seu papel enquanto reparador das falhas de mercado e agente por excelência de mobilidade social. Uma mobilidade social que seja verosímil aos olhos de todos, especialmente para os que têm estado no ângulo morto das políticas públicas e do insuportável banzé mediático.
Mais: o centro-direita democrático e liberal tem a responsabilidade histórica de fazer uma revisão profunda da Constituição, um texto carregado de devaneios pós-revolucionários e anacronismos económicos e sociais, sem ceder à desumanidade e às ilusões demagógicas da direita radical. A lei fundamental tem de ser trazida para o século XXI, servindo de denominador comum a governos e demais decisores públicos, mas não pode ser nem uma arma de arremesso de um punhado vocal de radicais derrotados pela história nem um bloqueio permanente ao serviço do nacional-mesmismo.
Rever a Constituição será apenas um sinal de alteração de uma maneira muito nossa, comezinha e palatável, de ir gerindo o país. Não deverá ser a tarefa cimeira de nenhuma maioria parlamentar, mas terá um peso simbólico não despiciendo para Montenegro e para a AD. Ignorá-lo, em prol de conversas vãs sobre linhas de uma qualquer cor, significaria estender a passadeira vermelha a quem, mais do que reformas, tem apenas a rutura como ambição.
Também por isso, e provavelmente nem estando alinhado com as prioridades de alguns dos subscritores, encontro-me em sintonia com o espírito do manifesto intitulado “Reformar o Estado: já não é cedo”, promovido pelo Pedro Gomes Sanches e publicado na última edição do Expresso. É urgente que todos nós, lesados do nacional-mesmismo, nos façamos ouvir. Por mim, senhor primeiro-ministro, viramos de vez essa página.