
O que se passou nas eleições legislativas de 18 de maio de 2025 não foi um acidente de percurso. Foi um colapso. E não se tratou de um colapso conjuntural, passageiro, mas estrutural. Foi o produto final de anos a minar as fundações da participação interna, a negligenciar a militância e a concentrar o poder num círculo cada vez mais restrito e familiar. Se nada mudar, será irreversível. Pior: será terminal e a democracia portuguesa nunca mais será a mesma se perder o seu único verdadeiro partido de centro esquerda (com exceção, talvez, do pequeno e regionalista JPP e do federalista e europeu Volt).
Com efeito, no Partido Socialista, o problema deixou de ser só político ou meramente eleitoral. É organizacional: É democrático. Quando a base deixa de ter voz — na escolha de candidatos, na elaboração de listas, na conjugação de alianças pré-eleitorais e, até, na definição de prioridades —, o partido torna-se um corpo sem alma. E esse corpo, por muito bem vestido que esteja, não se move.
Urge mudar a forma como escolhemos — nos partidos — quem nos representa. Não se trata de abrir as portas de par em par e dissolver a identidade partidária, mas sim de garantir que os militantes contam. Primárias fechadas para cargos uninominais, voto preferencial em listas abertas de candidatos às vereações e a deputados, às freguesias, maior transparência e escrutínio na formação destas listas: não são propostas radicais. São medidas mínimas e urgentes de sanidade democrática que urge lançar.
É igualmente incompreensível que o direito de voto interno continue condicionado ao pagamento de quotas. Num partido que se diz popular e progressista, exigir pagamento para exercer voz política é elitismo travestido de regra administrativa.
A realidade é que muitos militantes já se afastaram e muitos mais o farão nas próximas eleições autárquicas. Não por desinteresse na política, não porque deixaram de se preocuparem com a comunidade mas porque lhes foi retirado o poder de influenciar a condução dos destinos do partido, das suas secções, distritais, concelhias e órgãos nacionais. Quando a lista de vereadores aparece feita, sem consulta nem debate, quando o cabeça-de-lista é imposto sem sequer um gesto simbólico de escuta — mesmo que seja, como agora em Lisboa, uma boa escolha — o afastamento é inevitável. O desânimo transforma-se em desistência.
Cada freguesia tem os seus militantes. São eles que conhecem o terreno, que sentem o pulso da comunidade, que carregam o partido às costas em cada campanha e que fazem a ligação entre eleitos e eleitores e que garantem a prazo a renovação dos quadros locais e autárquicos do partido. Ignorá-los é suicídio político. "Lisboa" é apenas uma entidade abstrata, um "constructo" mental: Lisboa são os seus bairros e as suas freguesias: É neste terreno que se perdem e se ganham eleições: não em "Lisboa", não é nas "empresas de marketing político" nem nas redes sociais ou nas TV (cada vez menos vistas) nem nos jornais (cada vez menos lidos). Por isso, acredito que, na reorganização do PS deve ser dada a prioridade às secções geográficas, refundá-las a partir das suas freguesias e neste movimento back to basics refundar o partido e a sua ligação ao país real, fora da "bolha" das elites.
E é por isso que defendo que nenhuma candidatura local seja considerada legítima sem uma assembleia aberta aos militantes da freguesia. Não tem de ser eletiva ou de aprovar ou propor listas: mas deve ser, pelo menos, uma oportunidade em que os militantes de base têm voz e podem dizer o que pensam — de forma ordeira e construtiva — a quem tem, efetivamente, o poder de tomar as decisões.
Hoje, o poder no PS está concentrado em poucas dezenas de pessoas. As secções funcionam, na melhor das hipóteses, como caixas de ressonância. As comissões políticas são ratificadoras de decisões já tomadas. A base é cada vez mais decorativa.
Mas então, que sentido faz continuar? Que sentido faz pagar quotas, mobilizar esforços, defender o partido, se tudo se decide sem nós?
Se os deputados e eurodeputados ignoram sistematicamente convites, propostas e mensagens dos militantes; se os contributos para os programas não merecem sequer uma resposta automática — por que haveriam os militantes de continuar a cuidar de um partido que já não lhes atribui importância?
A militância não pode continuar a ser apenas mão-de-obra gratuita em tempo de eleições. Ou se reconstrói um partido vivo, plural e participativo — onde os militantes têm poder real — ou deixaremos de ter partido. Porque um partido sem base não é mais do que um castelo sem fundações. E todos sabemos como acabam esses castelos ao primeiro ataque inimigo...
*Um militante que ainda acredita que vale a pena lutar por dentro. Estará enganado?...
Rui Martins é fundador do Movimento Pela Democracia Participativa