Soube recentemente da perda de um dos meus maiores amigos e percebi, subitamente porque é que a nossa última troca de mensagens tinha ficado a meio... sempre que vinha a Lisboa (e vinha frequentemente exercitando o seu seguro e ágil domínio da língua portuguesa) tomávamos um café e falávamos sobre as nossas causas comuns em torno da democracia participativa e, sobretudo, dos orçamentos participativos.
Com efeito, perdemos Yves Cabannes, professor de Planeamento do Desenvolvimento na DPU entre 2006 e 2015, quando se aposentou da University College London. Yves foi um Académico completo (na verdadeira e plena aceção da palavra), um ativista e professor brilhante, tendo trabalhado em mais de 60 países, focando-se na justiça social e nos direitos humanos. Investigou temas como agricultura urbana, soberania alimentar, formas coletivas de posse de terra (como as Community Land Trust (CLT).
Yves Cabannes também trabalhou muito sobre questões relacionadas com a governação local, destacando-se no desenvolvimento de ferramentas de gestão urbana, como o orçamento participativo, área onde o conheci (num workshop organizado pela Divisão de Participação da CML em 2019).
Defensor das comunidades urbanas marginalizadas, usou a sua vasta rede na Europa e, sobretudo, na Ásia Central e na América do Sul para sensibilizar e apoiar movimentos contra despejos forçados, destacando especialmente o seu papel de presidente do Grupo Consultivo sobre Despejos Forçados da ONU-Habitat (2004-2010). Lecionou em Harvard e coordenou o Programa de Gestão Urbana da ONU para a América Latina e Caribe, promovendo estudos e capacitação para governos municipais.
Mesmo depois da sua reforma, continuou a colaborar com a DPU, ensinando e participando em investigações e ativismo. Poliglota e incansável, usou as suas habilidades e competências para unir pessoas e pressionar governos. A sua perda será fortemente sentida por comunidades urbanas, académicos, muitos ativistas, ex-alunos e amigos.
As suas publicações podem ser lidas aqui. Guardo especiais recordações da nossa colaboração em "Greening cities through Participatory Budgeting: Answers to climate change from Lisbon, Portugal and Molina de Segura, Spain". E da sua colaboração na proposta: "Proposta de aplicação prática do Conceito dos Community Land Trust (CLT) em Lisboa, no Bairro Portugal Novo". O terreno é municipal e foi cedido por cinquenta anos, as habitações pertencem à massa falida da extinta cooperativa de habitação pelo que – havendo vontade política por parte da CML – pode ser transferido por um período de tempo experimental a um CLT a criar para o efeito conjuntamente com moradores. Este modelo (CLT) pode ser inscrito no Plano Diretor Municipal de Lisboa como uma forma de recuperação de zonas de génese ilegal. E, sobretudo, da sua participação muito ativa, com conselhos muito úteis e relevantes no "Ranking dos Orçamentos Participativos 2020 em Juntas de Freguesia de Lisboa" que se materializou no "Ranking dos Orçamentos Participativos 2020 em Juntas de Freguesia de Lisboa - O que é um OP? Metodologia, Objetivos, Dimensões, Variáveis e Indicadores"; Ranking dos Orçamentos Participativos 2020 em Juntas de Freguesia de Lisboa - Apresentação; Ranking dos Orçamentos Participativos 2020 em Juntas de Freguesia de Lisboa - Índice (com o Ranking) e Dados e nas "Dez propostas para o aperfeiçoamento dos Orçamentos Participativos das Juntas de Freguesia de Lisboa" com análise e introdução.
Um orçamento participativo (OP) é um processo democrático de âmbito local ou nacional onde os cidadãos podem discutir e decidir sobre orçamentos e políticas públicas. Num OP a participação na gestão da Coisa Pública por parte do munícipe ou freguês não se reduz ao voto de quatro em quatro anos mas a participação anual ou ainda mais regular na administração da sua freguesia. Um OP reúne o melhor da democracia representativa porque quem o organiza e executa são os órgãos eletivos (Junta de Freguesia e Assembleia) e o melhor da democracia direta ao trazer para o centro da gestão e da execução orçamental os cidadãos.
A existência de um Orçamento Participativo de Freguesia aumenta a transparência das despesas do orçamento da autarquia e o envolvimento dos cidadãos na gestão política local acabando por, indiretamente, traduzir-se num estímulo à redução da abstenção e um convite à participação em associações cívicas, sociais, culturais e à própria militância nos partidos políticos. Paralelamente, se a autarquia tiver igualmente um Orçamento Participativo Jovem ou Escolar poderão criar-se hábitos de participação que poderão trazer à participação os grandes ausentes dos dias de hoje: os mais jovens.
Os OP tendem também – se devidamente executados – a aumentar a satisfação dos eleitores para com os executivos que os implementam porque as iniciativas e obras patrocinadas neste contexto são exatamente aquelas que, por maioria de votos, os eleitores gostariam de ver realizadas na sua freguesia. Assim, a prazo, a simples existência de um OP, tende a ter efeitos eleitorais positivos nas listas eleitorais que resultam da continuidade dos executivos de Junta que os promovem. Se bem executado (tendo, nomeadamente, uma divisão por zonas que garanta que as zonas mais pobres são sempre beneficiárias que algum projeto de OP) pode ser um fator de desenvolvimento económico e social e trazer assim para o centro da participação política muitos cidadãos que tradicionalmente se autoexcluem destes processos.
Em abril de 2021, com o apoio do professor Yves Cabannes da University College London, fiz um estudo comparativo dos orçamentos participativos das Juntas de Freguesia de Lisboa. O estudo será atualizado ainda durante este ano de 2022 mas gostaria de deixar antes deste refrescamento comparativo algumas propostas que as Juntas de Freguesia de Lisboa e, em particular, a de Alvalade (que não tem um OP) poderiam incluir nos seus programas de OP já em funcionamento ou naqueles que poderão via a ter ou a retomar.
Dez propostas para o aperfeiçoamento dos Orçamentos Participativos:
1. Além de ser possível votar e apresentar projetos para o Orçamento Participativo (OP) deve ser – seguindo o espírito e prática de Porto Alegre – que os cidadãos possam também ter o seu papel na ordenação das prioridades do orçamento autárquico de investimento.
2. Acreditamos também que deve ser possível votar no OP a partir dos 14 anos (atualmente em alguns OP de freguesia em Lisboa o limite são os 16 anos ).
3. O que aconteceu ao primeiro OP do mundo, o de Porto Alegre, prova que o OP não pode ser partidarizado e que, pelo contrário, é preciso que seja criado ou que se desenvolva enquanto algo de transversal a todos os partidos ou, pelo menos, à maior quantidade possível elaborando, desejavelmente, um carta de compromisso comum quanto à continuidade do OP.
4. O OP deve ter um foco especial em projetos de pequena escala e de baixo custo. São estes que permitem uma mais rápida execução e uma maior resistência às pressões dos lobbies e grupos de influência.
5. Os OP permitem criar “Capital Social” na Comunidade e os cidadãos começam a conhecer melhor os processos de governação da cidade: nesse sentido seria interessante fazer reuniões em que técnicos da CML responsáveis pela execução passada de projetos de OP falassem e trocassem opiniões antes da fase de apresentação de projetos.
6. Para além de votarem nas propostas de OP, os cidadãos devem também poder votar na prioridade de tipos de investimentos que as juntas de freguesia gerem nos seus orçamentos. Se o dinheiro vem dos impostos porque não temos uma palavra na forma como ele é gasto? Isto aumentaria o conhecimento dos cidadãos sobre a forma como se investem os fundos públicos.
7. Porque o processo é mais importante que o produto: o ano participativo não se pode esgotar no momento da votação das propostas: Deve ser criada uma “caravana das prioridades” em que os cidadãos são levados para conhecer a sua cidade e poderem criar ou apoiar futuras propostas sobre freguesias que não são as suas e recolher ideias para a sua própria freguesia.
8. Ponderar fazer como acontecia em Porto Alegre (Brasil) e fazer aprovar todas as propostas vencedoras na Assembleia de Freguesia, sem aprovação automática, por forma a comprometer (e a fiscalizar) a execução das propostas.
9. Impedir que pequenos grupos em pequenas freguesias, mas muito mobilizados, sejam capazes de distorcer a votação, votando em massa num projeto que queiram ver aprovado. Para criar criando uma maior transparência na participação, propomos que sejam enviadas por carta as propostas e RSF de resposta a todos os moradores da cidade. A possível distorção será assim reduzida através do aumento do universo de votantes nas propostas de OP, diluindo mobilizações por parte de grupos organizados.
10. Além de ser possível votar e apresentar projetos para o Orçamento Participativo (OP) deve ser – seguindo o espírito e prática de Porto Alegre – que os cidadãos possam também ter o seu papel na ordenação das prioridades do orçamento autárquico de investimento.
Yves, STTL: Sit Tibi Terra Levis (Que a terra te seja leve). Até Breve.
Rui Martins é fundador do Movimento Pela Democracia Participativa