A importação das guerras culturais dos Estados Unidos para a Europa nunca fez verdadeiro sentido. E foi a esquerda mais radical a fazê-lo primeiro em Portugal, procurando mimetizar narrativas e discursos oriundos da ala mais à esquerda dos Democratas americanos, tendo Ocasio-Cortez como figura inspiradora central de uma esquerda que mais tarde passou a ser designada como “woke” ou “identitária”.

Esta esquerda identitária apropriou-se de causas justas e fundamentais – como a defesa do clima, os direitos das mulheres, das comunidades LGBT+ e das minorias étnico-raciais – para as comprimir numa narrativa extremista e maniqueísta, de “bons contra maus”. Nessa lógica, quem se desviasse da ortodoxia discursiva, ainda que partilhasse os mesmos ideais, era imediatamente rotulado de misógino, homofóbico, racista ou xenófobo.

Nos casos mais extremos, houve tentativas de destruição de carácter e até de prejudicar profissionalmente os visados. A estas práticas passou a chamar-se “cancelamento”. Na maioria dos casos, felizmente, sem grande sucesso. Ainda assim, nos EUA, muitas figuras públicas, sobretudo na área artística, continuam marcadas por rótulos dos quais dificilmente conseguem libertar-se.

Esta cultura espalhou-se pelas redes sociais e passou a ser usada como arma contra pessoas comuns. Diariamente assistimos a tentativas de linchamento moral a quem ouse manifestar opiniões fora da cartilha mais radical da ideologia identitária, que parte da esquerda abraçou, afastando-se das suas causas históricas: os direitos dos trabalhadores e o combate às desigualdades. Esse afastamento ajudou a esquerda radical a perder boa parte do seu eleitorado tradicional.

A ascensão da extrema-direita na Europa tem causas profundas e estruturais, muito para além da mera reacção ao discurso identitário. Mas esse discurso contribuiu, e muito, para a sua consolidação. A maioria dos cidadãos que valorizam a democracia não quer viver permanentemente acusada por uma esquerda moralista, que julga o pensamento dos outros – e até o passado dos seus países. Quando se chega ao ponto de considerar que qualquer homem branco europeu é, por defeito, um potencial opressor, é natural que surja repulsa.

Tudo isto a propósito do discurso de 10 de Junho de Lídia Jorge. O que a escritora disse é factual: Portugal é uma mistura de povos e tons de pele, algo que qualquer português com escolaridade básica reconhece. Mas por que o disse no Dia de Portugal? Precisamente porque vivemos um clima polarizado, alimentado por guerras culturais importadas dos EUA. De um lado, uma esquerda identitária a impor a sua moral restritiva; do outro, uma extrema-direita que quer recuperar uma visão retrógrada e perigosa do mundo.

Para além da polarização, esta importação é desajustada da realidade europeia. O modelo esclavagista dos EUA foi profundamente distinto do europeu. O racismo na América do Norte tem origem e expressão muito diferentes do europeu. Ambos são condenáveis e devem ser combatidos, mas importar as soluções e discursos norte-americanos para a Europa é ignorar realidades distintas. Só para dar um exemplo, a maioria dos afro-americanos desconhece a sua origem africana e sente-se profundamente enraizada nos EUA. Já os afro-europeus conhecem, regra geral, a sua origem familiar e mantêm ligações culturais e sociais aos países dos seus ascendentes.

O discurso de Lídia Jorge, num contexto de radicalização crescente, ainda que bem-intencionado, acabou por acentuar divisões num dia simbólico de unidade nacional. E sugeriu, mesmo que implicitamente, que devíamos ter vergonha da nossa História, especialmente da época dos Descobrimentos. Ao fazê-lo, adoptou novamente a narrativa importada de “bons e maus”, colocando os portugueses do lado errado da História. Era o que menos precisávamos em tempos de crescimento da extrema-direita.

Os portugueses podem – e devem – ter orgulho na sua História e nos seus heróis, de D. Afonso Henriques a Salgueiro Maia, passando por Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral ou Diogo Cão. Mesmo os que chegaram a terras que viriam a ser colonizadas. Muitos actos do passado são hoje inaceitáveis – mas à época eram comuns e considerados legítimos. Ter orgulho na História, com tudo o que teve de épico e de trágico, não é um acto ideológico. Não nos torna mais de esquerda ou de direita, nem mais ou menos racistas.

Portugal é, desde a sua génese, fruto de mestiçagens, cruzamentos e influências diversas. Que os portugueses possam viver em paz com a sua herança histórica e com orgulho na sua portugalidade, seja ela expressa e vivida de que forma for.

Escreve no SAPO quinzenalmente à quinta-feira // Tiago Matos Gomes escreve com o antigo acordo ortográfico