Em 2019, um pai de Vila Nova de Foz Coa foi assassinado ao tentar retirar a sua filha de 13 anos de um casamento forçado. Em 2022, uma mãe e uma filha foram baleadas em Vila Real por tentarem impedir o casamento de uma menina de 14 anos. Recentemente, um homem na Amareleja foi baleado pelo próprio pai ao tentar proteger outra menina de 14 anos de um casamento arranjado. Em todos estes casos, as meninas não queriam o casamento. Mas mesmo que tivessem consentido, não teriam idade para dar consentimento informado, nem os pais podem tomar uma decisão desse tipo em nome de uma criança.
Não será novidade para ninguém que existem casamentos arranjados em Portugal com menores de 16 anos. Há até relatos de casamentos a envolver meninas de 12 anos. Numa democracia liberal, o princípio da tolerância permite-nos conviver com escolhas e modos de vida diferentes desde que não afetem a liberdade dos outros e sejam feitas por pessoas capazes de fazer essas escolhas. Uma criança de 12, 13 ou 14 anos não tem idade para dar consentimento informado. O facto de este tipo de comportamentos já ter acontecido de forma generalizada num passado longínquo em Portugal – e noutras geografias no presente – também não justifica que se tolere isso nos dias de hoje.
Assumindo que não existiam outras razões que não a defesa daquelas meninas para o conflito que levou à sua morte, estas pessoas que morrem a defender meninas de casarem cedo demais são heróis dos direitos humanos. Esta classificação pode parecer exagerada por o impedimento deste tipo de casamentos já estar consagrado na lei há muito tempo, e ser dado por adquirido pela maioria das pessoas, mas essa lei ainda não é uma realidade para todas as crianças, nem sequer em Portugal.
Neste momento, há pessoas na comunidade cigana a perder a vida para impedir que crianças sejam forçadas a casamentos, acabando violadas ou limitadas na sua liberdade. Lutam para, pelo menos neste tema, trazer a sua comunidade para os padrões morais do século XXI. São mártires dos direitos humanos que merecem respeito. Não são lembrados como heróis porque isso obrigaria uns a admitir que estes casos ainda existem com demasiada frequência dentro da comunidade cigana, e outros a admitir que a culpa de existirem não é coletiva porque há pessoas dentro da própria comunidade que perdem a vida para defender aquelas meninas.
Num Estado de direito no século XXI, ninguém deveria ter de morrer para impedir meninas de serem violadas e privadas da sua liberdade. Essa é uma responsabilidade do estado. Tolerar passivamente esta situação continuará a condenar meninas a serem entregues às mãos de pedófilos – porque quem casa com uma menina de 12, 13 ou 14 anos não é um marido, é um pedófilo – e adultos a morrer às mãos de quem defende esses pedófilos.
São mártires dos direitos humanos dentro das suas comunidades que merecem o mesmo respeito que outros mártires do passado noutras comunidades. Eles já fizeram a sua parte ao dar a vida por esta luta. Chegou a vez de o Estado português fazer a sua.
Carlos Guimarães Pinto escreve no SAPO quinzenalmente, sempre à terça-feira