Quando se pensa em Medicina Veterinária, a imagem mais comum é a de alguém apaixonado, rodeado de animais, a exercer a profissão com um sorriso e uma entrega quase natural. Mas essa imagem romântica, apesar de verdadeira em parte, não revela o outro lado da realidade — um lado marcado pelo desgaste, pela pressão constante e, cada vez mais, por desafios profundos ao nível da saúde mental.
A profissão veterinária exige muito mais do que competência clínica. Exige uma capacidade emocional que nem sempre é visível — e que, tantas vezes, é negligenciada. Horários prolongados, decisões complexas com impacto direto na vida dos animais (e, indiretamente, dos seus tutores), contacto frequente com sofrimento, e uma sensação crescente de impotência em contextos de limitação financeira ou ausência de soluções clínicas. Tudo isto se acumula, silenciosamente.
Entre os fenómenos menos discutidos está a fadiga de compaixão — uma forma de exaustão emocional provocada pelo envolvimento constante com situações de dor e fragilidade. Nos veterinários, isto manifesta-se quando são confrontados repetidamente com animais em estados críticos, vítimas de negligência, ou com doenças irreversíveis. E, por vezes, são obrigados a tomar decisões que colidem diretamente com a sua missão enquanto profissionais de saúde, como a eutanásia, não por falta de vontade de tratar, mas por falta de meios ou alternativas viáveis.
À ausência de tempo e descanso, soma-se a falta de suporte. Apesar de algum progresso, a saúde mental dos profissionais da veterinária continua a ser pouco discutida — e ainda menos acompanhada. Um inquérito realizado em 2021 revelou que Portugal é o país com maior nível de stress entre os profissionais da área, afetando 87% dos veterinários. E os dados internacionais não são menos alarmantes: um estudo do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) demonstrou que a taxa de suicídio entre médicos veterinários é 3,5 vezes superior à média das restantes profissões.
Estes números não devem ser encarados como estatísticas frias. São um alerta. E devem levar-nos a questionar: como cuidar de quem cuida?
A resposta está em várias frentes. Desde logo, é fundamental criar melhores condições de trabalho: horários mais equilibrados, períodos de descanso obrigatórios e maior previsibilidade nas rotinas. Mas não só. É igualmente essencial garantir acesso fácil e continuado a apoio psicológico — com programas de acompanhamento pensados para a realidade específica da Medicina Veterinária. É nesse sentido que iniciativas como o programa de apoio emocional da Ordem dos Médicos Veterinários representam passos importantes.
Outra dimensão fundamental é a formação contínua em gestão de stress e autocuidado, desde os bancos da faculdade até ao exercício da profissão. É preciso preparar os profissionais para cuidarem de si com o mesmo rigor com que cuidam dos seus pacientes.
Mas há uma mudança ainda mais profunda — e, talvez, mais difícil — que é a transformação da perceção pública da profissão. A veterinária não é só “tratar animais”. É uma profissão exigente, emocionalmente intensa e, muitas vezes, solitária. Os tutores, e a sociedade em geral, precisam de reconhecer essa exigência. E com isso, desenvolver uma relação mais empática, compreensiva e realista com os profissionais que, todos os dias, cuidam daqueles que não têm voz.
É também essencial promover, dentro da própria classe, uma cultura de abertura e diálogo. Criar redes de apoio, fomentar espaços seguros de partilha e reforçar que falar sobre saúde mental não é sinal de fraqueza — é sinal de maturidade e consciência profissional. A realização do Vet Mental Summit, o primeiro evento em Portugal dedicado à saúde mental na veterinária, é um ótimo exemplo de como se pode quebrar o silêncio e criar um movimento positivo dentro da comunidade.
Falar sobre burnout na veterinária não é um luxo. É uma urgência. É um imperativo ético, não só para proteger quem exerce, mas também para garantir que os cuidados prestados se mantêm humanos, empáticos e sustentáveis. Porque cuidar da saúde mental dos veterinários é cuidar, também, da saúde dos nossos animais.
DVM / Health Care Director at UPPartner