
Meros dias após a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, a 24 de fevereiro de 2022, o então chanceler alemão Scholz deu o tiro de partida para aquilo que designaria por “Zeitwende”, uma mudança radical, a tomada de consciência de uma crua e amarga realidade. Esta decisão do governo alemão acabou por ser o início de um autêntico processo de militarização, cujo objetivo é dotar a Alemanha do maior e mais eficaz exército convencional no espaço europeu. A maior economia da Europa e a terceira maior do mundo acabara de decidir que iria rearmar-se e sobretudo preparar-se para combater. E em termos históricos, sempre que a Alemanha decide que tem de se preparar para combater, as coisas são levadas a sério e de forma invulgarmente célere.
O novo chanceler alemão, Friderich Merz, dá mais um passo decisivo neste sentido. Algo que à vista desarmada poderia parecer muito difícil ou mesmo impossível. Consegue criar um consenso alargado no Bundestag que lhe permite consolidar e reforçar esta política de rearmamento e crescimento das suas Forças Armadas, conferindo a este desígnio uma nova e decisiva dimensão. Reúne os consensos necessários no espetro político-partidário alemão, o que lhe proporcionou a possibilidade de avançar com alterações à própria Constituição. O governo alemão passa a poder endividar-se por forma a conseguir, em tempo recorde, criar um aparelho militar moderno e dissuasor, eficaz e bem-adaptado aos novos desafios geopolíticos desencadeados pelo Kremlin. Substituindo-se também a um eventual menor empenhamento dos EUA de Trump no espaço europeu. Era de há muito claro que urgia tomar medidas. A Alemanha não podia dar-se ao luxo de ser surpreendida!
O desafio que se colocava ao executivo alemão era grande e multifacetado, não se centrando unicamente na esfera da política doméstica. No âmbito externo velhas desconfianças e ecos do passado foram e ainda continuam a ser ressuscitados. Compreensivelmente, a possibilidade de uma nova Alemanha militarmente forte coloca interrogações. No entanto, muitas das vozes críticas, mais não são do que verdadeiras caixas de ressonância da propaganda russa, sendo que em última análise foi mesmo Vladimir Putin o verdadeiro catalisador desta mudança (“Zeitwende”). Outras vozes, com origem na Europa ocidental, receiam que uma ascensão da Alemanha à categoria de primeira potência militar convencional europeia possa causar desequilíbrios insanáveis na própria balança de poder erigida no pós-segunda Guerra Mundial. Tudo confabulações desprovidas de qualquer rigor factual, sociológico e científico. Atualmente, uma Alemanha forte, longe de ser uma ameaça aos equilíbrios de poder europeus, será antes um bem para todos nós que de momento vivemos ensombrados pela incerteza de um apoio incondicional dos EUA, caso algo corra mal no nosso espaço europeu nos tempos mais próximos.
Para os germânicos quando se trata de planeamento estratégico-militar, o fator tempo é sempre decisivo. As soluções boas são sempre preferidas em detrimento das ótimas, já que estas últimas exigem em regra demasiado tempo para serem concretizadas. Ser capaz de fazer algo antes que o adversário o consiga é fundamental para ganhar sobre este uma nítida vantagem. Assim diria que este processo não é apenas imparável, mas também algo que será invulgarmente célere.
Por mais que Vladimir Putin tente lançar sucessivas campanhas de propaganda visando retratar o governo alemão como uma organização nazi renascida, empenhada em reconstruir uma nova “Wehrmacht”, a Alemanha não tardará a converter-se na maior potência militar convencional europeia.
Putin tem consciência de que se invadir a Polónia ou os Países Bálticos terá de enfrentar tropas alemãs a defender o espaço europeu. Este governo alemão não está a apenas a adquirir armas e munições. Berlim está sobretudo apostado em desenvolver um notável complexo militar industrial. Empresas alemãs como a Rheinmetall, que cresce a um ritmo assinalável, aproveitou, por exemplo, linhas de montagem da Volkswagen inativas para produzir blindados, rapidamente e em grandes quantidades. Trata-se do pragmatismo alemão em ação.
O executivo de Merz está também a ajudar a Ucrânia a produzir mísseis de longo alcance e outros equipamentos tecnologicamente evoluídos que podem atingir objetivos vitais na profundidade do território russo e sem qualquer tipo de restrições de emprego.
“Curiosa” é a reação do executivo moscovita, verbalizada pelo infatigável Dmitry Medvedev ao aperceber-se da grandeza deste plano, classificando esta decisão como “perigosa”, afirmando que colide com qualquer possível acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Vai mais longe e sem novidade assevera que desta vez “a Rússia entrará em Berlim para ficar”. As razões para este tipo de retórica são óbvias. A Alemanha irá investir na Defesa 5% do seu Produto Interno Bruto (PIB) até 2031, o que significa uma verba que pode ascender aos 250 mil milhões de dólares anuais. Se compararmos com os gastos correntes da Federação Russa, em guerra, estamos perante apenas cerca de 135 mil milhões de dólares. Ou seja, a Alemanha em paz irá investir mais em defesa do que a Rússia em guerra. Estamos perante um projeto cujo objetivo é construir hoje, o exército de amanhã, tomando como referência as lições aprendidas na guerra na Ucrânia. É justamente esta constatação que origina tanto alvoroço e ansiedade nos círculos próximos do Kremlin.
Adicionalmente, o facto de a Alemanha estar a destacar forças militares para fora do país, a fazer o que já não acontecia desde a segunda Guerra Mundial, contribui também para o referido nervosismo. Trata-se da 45.ª Brigada Blindada alemã, composta por cerca de 4800 militares permanentemente destacados na Lituânia. Esta força representa, em si mesma, uma declaração à Rússia de que qualquer tentativa de invasão da Lituânia ou de algum vizinho, trará efetivamente a Alemanha para a guerra. Putin, realmente não esperava que a Alemanha tomasse a liderança na Europa. Mas há mais. Em boa verdade, a convicção de Putin, segundo a qual o comprometimento do executivo de Trump com os aliados europeus da NATO poderia ser wishful thinking, vê-se abalada pela determinação alemã de tomar a dianteira no caso de um ataque à Europa. A colocação em marcha do “Trinity House Agreement”, assinado a 23 de outubro de 2024 entre alemães e ingleses procurando aprofundar a cooperação em todos os domínios da Defesa, traz claramente Inglaterra de volta para o seio da União Europeia. Em caso de agressão russa à Europa ocidental, a ideia é ser capaz de ganhar a guerra mesmo sem a presença norte-americana. Por outras palavras, edificar uma Europa militarmente autossuficiente é possível e converter-se-á num bem concebido centro de gravidade.
Putin acreditou que a invasão da Ucrânia acabaria por dividir a Europa. Não só não o conseguiu como despertou a Alemanha de uma longa letargia. A história parece repetir-se. Nas palavras do seu chanceler, ela está claramente de volta ao palco das grandes decisões (“Germany is back”). Em força e disponível para assumir a liderança no contexto europeu.
Se a ideia de Putin era enfraquecer a Europa, aquilo que está a conseguir é exatamente o oposto. Está a criar a Europa mais militarizada de sempre após o terminus da Guerra Fria.
Em boa verdade, não calculava que a Europa fosse a jogo. As suas ações estão na origem do surgimento de um novo centro de poder à escala global nascido no espaço europeu, centralizado nesta Alemanha e acrescentado pelo poder do Reino Unido e porventura de França e da Polónia. Ou seja, o sonho transformou-se em pesadelo porquanto o tiro lhe saiu pela culatra.
Major General//Escreve semanalmente no SAPO, à sexta-feira