“O futuro já aqui está, só não está distribuído de uma maneira muito uniforme”, terá dito o escritor William Gibson algures nas décadas de 1980 e 1990, quando o cyberpunk estava muito em moda na literatura e no cinema, sendo usado como um espelho capaz de refletir o que seria o nosso futuro, com um devir bastante assente em revolucionárias novas tecnologias digitais.

Basicamente, o que ele quis dizer, sendo este um dos ingredientes deste subgénero da ficção científica, é a ideia de que aquilo que marcou o passado e está a marcar o presente, poderá vincar e dar forma ao futuro, seja qual for a configuração que esse futuro assumir. Assim sendo, e por exemplo, se o passado e o presente estão contaminados por uma enorme desigualdade económica e social, então é expectável que o futuro seja igual ou ainda mais acentuado nessa mesma característica, sendo que a tecnologia digital a reforçará ainda mais.

Aliás, e de acordo com a revista Forbes, em 2023 o homem mais rico do mundo é Bernard Arnault, com uma fortuna líquida de 211 mil milhões de dólares. Com 74 anos, Arnault enriqueceu à custa das marcas de produtos de luxo de que é dono, como a Louis Vuitton. Logo a seguir temos Elon Musk (180 mil milhões) e Jeff Bezos (114 mil milhões), dois “barões” da tecnologia que têm, respetivamente, 51 e 59 anos, pelo que as próximas décadas deverão ser influenciadas pelo que decidirem, ou não, colocar em marcha. Marck Zuckerberg, com apenas 38 anos, surge no 16º lugar, com mais de 64 mil milhões de dólares. Basta olhar para a enorme lista da Forbes, e somar as dezenas de milhares de milhões de dólares de cada um dos que lá surge, para perceber quão grande se tornou a trincheira entre esta pequena elite económica, dona e senhora de quase toda a tecnologia digital de relevo que usamos (com as suas plataformas digitais), e os restantes cidadãos comuns.

Visto pelo outro lado do prisma, este é um “mundo em que o político se dissolveu no económico”. Em breves palavras, esta é a súmula que o cinéfilo Éric Dufour nos faz do cyberpunk, subgénero que deve muito a escritores como Bruce Sterling, William Gibson e Lewis Shiner. Quanto ao termo, ele nasceu em 1983, pela caneta de Bruce Bethke, numa novela a que deu o mesmo nome.

O escritor William Gibson é considerado um dos principais pioneiros do cyberpunk. O seu livro "Neuromancer", publicado em 1984, é um dos mais famosos do género. Créditos: Gonzo Bonzo

No cinema, sendo que é na sétima arte que nos vamos concentrar, esse mundo chegou até nós, e com mais força, através de Blade Runner - Perigo Iminente (1982), de Ridley Scott. Todavia, é no filme The Matrix (1999), das irmãs Wachowsky, que ele atinge o seu apogeu, com a sua voraz e tecno-crítica à sociedade moderna e capitalista. Pelo meio, obras como Ghost in the Shell (1995), um anime do japonês Mamoru Oshii, ou ainda Robocop (1987) e Total Recall - Desafio Total (1990), ambos de Paul Verhoeven, fizeram as delícias dos fãs do cyberpunk e daqueles que se reviam nas suas previsões, ao mesmo tempo que tiveram o condão de colocar o dedo em muitas das feridas abertas por uma civilização movida a esteroides pela tecnologia digital: projetando as suas histórias para um futuro imaginário que, cada vez mais, parece (pelo menos em boa parte) exequível.

Para Éric Dufour, autor de O Cinema de Ficção Científica, são três os elementos que podemos encontrar num filme cyberpunk. O primeiro deve muito ao filme noir, com a sua estética urbana, noturna e chuvosa, adicionando-se a ela as características que, por norma, associamos às cidades do futuro: imersas na poluição, no caos e num caldo cultural em que diferentes línguas e formas de estar se emaranham.

O segundo elemento é a sua ligação com o mundo da informática e das novas tecnologias da informação: em Ghost in the Shell e The Matrix, por exemplo, temos um mundo (com os seus indivíduos) que está ligado em rede, com o virtual a fazer parte desse imaginário ou realidade futura. Ao mesmo tempo, também encontramos aqui a velha relação entre homem e máquina, procurando mostrar formas de vida que vão além da mera dicotomia entre ambos: quer através de máquinas autónomas (ciborgues) ou humanos que podem ser programados, a que se juntam formas de vida – vamos chamar-lhes assim – que podem nascer, habitar e viajar pela vasta rede digital que começou por ser a Internet.

Por fim, e talvez mais importante, temos o político enquanto terceiro elemento. “O cyberpunk sublinha a modificação do corpo humano”, diz Dufour, “consequentemente, as suas condições cognitivas sofrem uma profunda transformação”, explica. Deste modo, e “equipado com um corpo modificado, o homem apercebe o mundo diferentemente”, o que nos levará a dar de caras com a verdadeira natureza da dimensão política e social em que estamos emersos. “Quando se vê as coisas de outro modo, daí resulta que a organização efetiva da sociedade, demasiado humana, revele o seu carácter intolerável. Por outras palavras, a modificação é uma desalienação. O herói do cyberpunk é sempre um revoltado que foge à ordem social e que a transgride”.

Do Capitão América ao Super-Homem: os super-heróis dos blockbusters nunca colocam em causa o status quo do mundo em que vivemos; limitam-se a combater vilões irreais com uma paródia de poderes sobrenaturais

Atentemos na seguinte panóplia de heróis, distintos dos do cyberpunk, e que, nos últimos anos, deram a cara a mui lucrativos blockbusters no cinema: Homem de Ferro, Capitão América, Homem-Aranha, Thor, Hulk, Aquaman, Black Phanter, Deadpool, Mulher-Maravilha, Super-Homem, Batman e por aí adiante. Todos estes heróis tem o prefixo “super” no início, eles representam personagens irreais de um mundo ficcional onde a realidade, como a conhecemos, entra em estado de suspensão, para que o seus poderes sobre-humanos e os burlescos e bizarros vilões que enfrentam possam fazer sentido.

Contudo, eis que chegamos ao busílis da questão, pois quando criamos heróis (ou anti-heróis) como os que referimos em cima, que só podem operar num cenário em que a realidade como a conhecemos entra em suspensão, que é puramente ficcional e irreal, a ordem social, tal como a conhecemos do nosso dia-a-dia, também se desvanece, torna-se invisível e não a conseguimos localizar com precisão. Perde-se espaço para uma critica social precisa, clara e eficaz em muitos destes filmes de super-heróis.

Logo, e em giza de conclusão, parece que todo este manancial de heróis não procura escapar e romper com o status quo do mundo real, aquele em que verdadeiramente vivemos e operamos. São personagens incapazes de recriar, dentro de nós, a sensação de que é possível colocar em marcha uma disrupção ou uma mudança significativa na realidade em que habitamos, aquela que existe fora dos ecrãs (sejam do cinema, do smartphone, televisão ou computador).

Criticar o ambiente político e económico que perdura até hoje, em que a política se tornou subserviente do poder económico e os serviços públicos gratuitos decaíram de qualidade para dar lugar aos privados

Quanto aos heróis e anti-heróis do cyberpunk, nomeadamente os do cinema, o que têm eles de distintivo? Em Blade Runner - Perigo Iminente, temos em ação um grupo de “replicantes”, entidades artificiais que são uma mistura de androides com clones humanos (o que os torna indistinguíveis do homo sapiens), fabricados pela bioengenharia para servirem de escravos nos mas diversos cenários fora da Terra – do trabalho braçal à guerra, passando pelos serviços sexuais. Tudo começa quando decidem enfrentar o seu génio criador, dono da empresa tecnológica mais poderosa da Terra e das suas colónias espaciais, para lhe exigir que o seu tempo de vida, predefinido logo que são criados, não se limite a quatro anos. Basicamente, também eles passaram a temer a mortalidade e procuram libertar-se da escravidão.

Pelo meio, o enredo conta a história de um detetive, Rick Deckard (o anti-herói, protagonizado por Harrison Ford), cuja profissão passa por perseguir e liquidar os replicantes que se rebelaram e fugiram para a Terra… Mas este acaba por se apaixonar por uma versão mais avançada de um replicante e, ainda, é salvo da morte por um dos que perseguia. Tudo culmina com Deckard a entrar em conflito com as suas presunções anteriores, rompendo com o status quo do qual fez parte e abraçando a ideia de que os replicantes são tão humanos como ele. Deixa de existir uma distinção entre um “nós” e os “outros”.

O replicante Roy Batty, sabendo que o seu tempo de vida está à beira de expirar, declama um dos monólogos mais marcantes da história do cinema, após salvar a vida ao seu perseguidor humano. Todo ele foi dito de improviso pelo ator Rutger Hauer: “Vi coisas que vocês, pessoas, não iriam acreditar. […] Todos esses momentos perder-se-ão no tempo... como lágrimas na chuva... Está na altura de morrer”.

De seguida, temos um futuro dominado por poderosas e insaciáveis megacorporações, com uma cidade, a de Detroit (nos EUA), a enfrentar uma grave crise social e económica, dominada pela corrupção política e económica, com todos os serviços públicos essenciais – saúde, educação e a polícia – em total disrupção. Uma distopia que, atualmente, até parece bem real. Cenário perfeito para uma destas megacorporações apresentar o seu novo “produto”, Robocop, o polícia artificial: na verdade, foi construído usando como base o cérebro de um agente abatido em serviço e dado como morto, pois provou-se que só através desta hibridização se conseguia um “produto funcional”.

Esta “máquina” é mais forte e resistente que todos os agentes de uma esquadra da polícia, mas, e acima de tudo, não exige um ordenado (quanto mais um aumento), não protesta contra as más condições de trabalho, não faz greve e obedece cegamente a quem lhe dita as ordens. Para quê um polícia humano quando se pode ter um trabalhador, um polícia, robotizado?

Todavia, tudo se desconfigura quando a criação, que ainda tem o seu quê de humano, se rebela contra o criador e coloca a nu toda a hipocrisia e corrupção que mina a empresa que quer controlar toda uma cidade, como se esta fosse o seu feudo privado.

Todo o filme é uma crítica e sátira ao ambiente político e económico que ganhou solidez na década de 1980 e chegou até aos dias de hoje, com a política a tornar-se subserviente do poder económico e os serviços públicos gratuitos a decaírem de qualidade para dar lugar aos privados – mas a que só alguns conseguem ter acesso.

Em Total Recall - Desafio Total, um épico que tem lugar numa Marte colonizada por megacorporações (mais uma vez) e explorada por trabalhadores precários, a capacidade tecnológica de inserir e alterar memórias no cérebro humano esbateu, por completo, a aptidão para distinguir o real do irreal. Será que amo mesmo esta pessoa diante de mim? E aquelas férias que acredito ter usufruído, porque não aguentava mais o stress e o cansaço do trabalho, aconteceram mesmo, apesar das boas memórias que tenho delas?

Nem o protagonista, encarnado por Arnold Schwarzenegger, consegue perceber quem é ele: um simples trabalhador da construção civil ou um espião que descobriu um mistério planetário? Talvez a sua vida seja tão enfadonha e repetitiva que preferiu ficar com as falsas memórias do segundo, pois, apesar de não serem reais, sempre dão um maior significado à sua existência. Uma película astuta que nos faz pensar e duvidar, pois não conseguimos perceber, com toda a clareza, se o status quo foi mesmo alterado ou se é tudo uma enorme ilusão e nada mudou.

De um ponto de vista científico e filosófico, o que é a vida? A tentativa de resposta é dada pela entidade que emerge de forma inesperada na Internet, no anime Ghost in The Shell, longa-metragem que, desde 1995, se tornou num clássico de culto:

“Não sou uma Inteligência Artificial. Sou uma entidade viva e pensante que foi criada no mar da informação [digital]. […] A vida tornou-se mais complexa no avassalador mar da informação. E a vida, quando organizada em espécies, depende dos genes para ser o seu sistema de memória. Assim, um humano é um indivíduo apenas devido à sua memória intangível... e a memória não pode ser definida, mas define a humanidade. O advento dos computadores, e a subsequente acumulação de dados incalculáveis, deu origem a um novo sistema de memória e pensamento paralelo ao vosso. A humanidade subestimou as consequências da computorização.”

Gera-se o pânico e abre assim a caça a esta nova criatura que, navegando pela omnipresença do mundo digital, é capaz de deter um poder que apenas parecia reservado aos deuses.

“A maioria das pessoas não está pronta para ser desligada da Matrix, e muitas delas estão tão habituadas, tão irremediavelmente dependentes do sistema, que lutarão para o proteger”

A longa-metragem do japonês Mamoru Oshii serviu de forte inspiração para um outro e mais reconhecido filme de culto: The Matrix. Aqui, o herói, apesar de relutante quanto ao seu papel, é facilmente reconhecível. Thomas Anderson, que de noite opera como hacker usando o nome Neo, durante o dia é um simples trabalhador que, obedecendo a regras e hierarquias rígidas, tal como todos os outros, desconhece que vive numa simulação criada por máquinas num futuro longínquo.

O cenário criado é, de acordo com os criadores da simulação – a que chamam de Matrix – uma cópia do suposto pináculo da civilização humana: 1999, no final do século XX. Sendo uma simulação destinada a esconder a real situação em que se encontra a humanidade – presos e encapsulados pelas máquinas em fábricas que capturam a sua energia corporal –, tudo é estático e cada pessoa ocupa o lugar que lhe foi predestinado pela Matrix. Quando lhe oferecem a oportunidade de sair desta ilusão e conhecer a realidade, Neo aceita-a, mas quando encara, pela primeira vez, a crueza do mundo verdadeiro, o choque visceral e o estado inicial de negação são inevitáveis.

Morpheus, o homem que o desperta para a verdade, não tem dúvidas sobre aquilo que enfrentam: “A Matrix é um sistema, Neo. Esse sistema é o nosso inimigo. Mas quando estás lá dentro, e olhas à tua volta, o que vês? Homens de negócios, professores, advogados, carpinteiros. As próprias mentes das pessoas que estamos a tentar salvar. Mas até o fazermos, estas pessoas continuam a fazer parte do sistema e isso torna-as nossas inimigas. Tens de perceber que a maioria dessas pessoas não está pronta para ser desligada [da Matrix]. E muitas delas estão tão habituadas, tão irremediavelmente dependentes do sistema, que lutarão para o proteger.”

Morpheus dá a Neo duas hipóteses que determinarão o resto da sua vida: “Se tomares o comprimido azul, a história acaba, acordas na tua cama e acreditas no que quiseres acreditar. Se tomares o comprimido vermelho, ficas no País das Maravilhas e eu mostro-te até onde vai a toca do coelho".

A grande missão, ao fim e ao cabo, é o de conseguir libertar o maior número de pessoas deste estado de adormecimento, torpor e ilusão. No fim, após a epopeia que o herói tem de atravessar, as regras são desafiadas com sucesso e novas portas abrem-se. Tal como refere Neo, dirigindo-se às máquinas (ou aos humanos que se comportam como máquinas previsíveis, se falássemos do nosso mundo real) que tentam controlar a Matrix:

“Eu sei que têm medo... têm medo de nós. Têm medo da mudança. Eu não conheço o futuro. Não vim aqui para vos dizer como é que isto vai acabar. Vim aqui para vos dizer como vai começar. Vou desligar este telefone, e depois vou mostrar a estas pessoas o que não querem que elas vejam. Vou mostrar-lhes um mundo sem vocês. Um mundo sem regras e controlos, sem fronteiras ou limites. Um mundo onde tudo é possível. O que vamos fazer a partir daí é uma escolha que deixo a vocês.”

No cyberpunk “os atos individuais de rebelião dos marginalizados raramente se transformam numa resistência organizada”

Mas… o que sucedeu ao cyberpunk para, atualmente, parecer que estagnou, rodeando-se, no cinema e em alguma literatura, dos velhos e gastos clichés das décadas de 1980 e 1990, sem adicionar nada de novo, algo que, aos olhos de hoje, pareça verdadeiramente transgressor e seja um espelho para outras opções ou utopias?

“Porque é que o cyberpunk ainda se parece com o que era nos anos 80? Talvez não tenha existido necessidade de mudar: ele continua a ter impacto junto de nós porque o mundo que retrata é aquele em que vivemos”, explica Paul Walker-Emig, antigo jornalista que atualmente trabalha para indústria dos videojogos, num incisivo artigo de opinião que escreveu para o jornal The Guardian, quando o cyberpunk teve um fugaz reaparecimento mediático.

“O género foi formado como resposta a um mundo onde o poder corporativo proliferava e se expandia por todo o globo, a desigualdade crescia e a Inteligência Artificial, os computadores e outras novas formas de tecnologia ofereciam tanto a promessa de libertação como o potencial para novas e perigosas formas de dominação.”

Todavia, e se olharmos para as origens da ficção cyberpunk, vemos que, apesar de “ter aberto brechas”, “os atos individuais de rebelião dos marginalizados raramente se transformam numa resistência organizada”, critica em seguida. Ou seja, eram histórias que iam beber muito, apesar de o colocar em causa, ao espírito da época em que sugiram, dominado por um crescente individualismo, por uma crença de que que tudo estava ao alcance do indivíduo; renegando as outras narrativas que olham para o coletivo como verdadeira força de mudança.

“Não é coincidência que o cyberpunk tenha amadurecido durante a era em que o capitalismo estava a avançar para um domínio global. […] O neoliberalismo tornou-se um consenso que impediu, com sucesso, a imaginação de alternativas. Este horizonte de acontecimentos políticos foi também uma morte para a ficção científica utópica. Interiorizámos a ideia de que o sistema em que vivemos é uma inevitabilidade e, com isso, a nossa imaginação estagnou, incapaz de conceber um futuro que vá para além dele – como se estivéssemos presos num loop de uma dessas simulações de computador de que o género tanto gosta.”