Já vai longo o folhetim dedicado ao Bairro do Talude. O caso mediático conta-se de uma penada: um magote de virtuosos escandalizou-se, rasgou as vestes, assinou cartas abertas e zurziu o autarca de turno porque a Câmara Municipal de Loures decidiu demolir meia centena de barracas, deixando sem teto igual número de famílias. O problema político e social é ligeiramente mais complexo e, portanto, ininteligível para os bons samaritanos de teclado: as florestas de zinco, latão e madeira estão novamente a expandir-se pelas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e não há Ricardo Leão que, sozinho, consiga conter o seu crescimento ou oferecer habitação condigna a milhares e milhares de pessoas.

À semelhança de outros bairros com condições insalubres ou mergulhados em dramas sociais irreparáveis em menos de duas ou três gerações, o Talude só foi descoberto pelas Ritas de Cássia pátrias quando lhes dedicaram aberturas de noticiários da hora de jantar. Até há uma semana, os seus moradores povoavam um exótico ecossistema a que os juízes morais do reino só se atrevem ir de máscara, pele coberta de repelente, safari vest, binóculos e, por prevenção, uma Glock. Chamam a esses habitats grotescos, à distância de uma IC19, de uma CRIL ou de uma Ponte 25 de Abril, periferias.

Para aqueles que julgam que o mundo começa no Terreiro do Paço e termina no Parque das Nações ou em Telheiras – ou, com alguma benevolência, nos estúdios de Paço de Arcos ou Queluz de Baixo – e que, por isso, nunca deram pelas dezenas de Taludes que os rodeiam, a pobreza boa é a pobreza abstrata, distante, imaginada e perfeita para retórica anticapitalismo, antiturismo, antinómadas digitais, antigentrificação, antipoder local ou antigoverno. Já a pobreza concreta, quotidiana, áspera e pungente, é-lhes estranha. Exceto quando passível de utilização para exibição pública de virtude.

Nos últimos dias, estes profissionais do humanismo pronto-a-servir, ignorando que a gestão da coisa pública pressupõe opções difíceis em contextos em que quase nunca existe um cenário ótimo ou, sequer, bom, reduziram a questão da habitação ilegal em Portugal a um ato bárbaro de Ricardo Leão, o demolidor-mor do reino, o Mefistófeles autárquico contaminado pela agenda de ódio do Chega. Em bom rigor, se retirarmos o partido de André Ventura a esta fauna de especialistas, sobra ao seu argumentário o mesmo que vai sobrar nos terrenos do Talude: nada.

Nada me move a favor ou contra Ricardo Leão (cujo trabalho conheço mal). Até admito que a Câmara Municipal de Loures pudesse ter acautelado de outra forma o realojamento das famílias há muito sujeitas a condições de vida indignas e, provavelmente, como o próprio autarca denunciou, expostas a todo o tipo de exploração. No entanto, não embarquemos na ladainha daqueles coletivos independentes – aos quais só algumas redações não descortinam a foice e o martelo ou a estrelinha escondidos – de que, por passe de mágica, poderia garantir-se casa para toda a gente em Loures, na Área Metropolitana de Lisboa, no país e no mundo se não houvesse falta de vontade política.

O problema dos bairros de lata, sublinhe-se, só foi mitigado no Portugal democrático graças à ambição do governo de Cavaco Silva e à audácia e cooperação de inúmeros autarcas, de diferentes cores políticas, como Jorge Sampaio, primeiro, e João Soares, depois, quando em 1993 foi aprovado o Programa Especial de Realojamento (PER). Quando foi lançado, existiam no país mais de 100 mil pessoas a viver em barracas, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística. Ao longo de 30 anos, só em Lisboa o investimento em habitação pública foi superior a 600 milhões de euros.

Indiferentes aos números e às nuances das situações complexas, um punhado de socialistas puros, de princípios imaculados e catedráticos da empatia, com a cumplicidade da mesmíssima comunicação social que lamenta que “os portugueses (sic)” sejam “forçados a mudar-se para a margem sul” do Tejo — esse terceiro mundo esquecido em que só a malária é mais letal do que o chumbo —, apressou-se a dar lições sobre o (inexistente) coração de Ricardo Leão e verteu umas lágrimas de crocodilo em público pela delapidação do património histórico do PS, agora entregue à agenda revanchista da extrema-direita.

Ignoram que existam 26 mil pessoas à espera de habitação social no país, segundo contas feitas pelo Expresso, e que a própria classe média conte hoje cada cêntimo para conseguir pagar uma renda ao fim do mês. Inclusivamente nos pestilentos subúrbios. Em 2018, ainda sem a pressão da vaga migratória que o país tem testemunhado, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) estimava que a resposta às carências habitacionais identificadas pelos municípios implicaria um investimento total a rondar os 1700 milhões de euros. Hoje, serão seguramente mais e exigirão uma forte parcela de fundos do Plano de Recuperação e Resiliência, a panaceia para todos os nossos males.

Felizmente, há vastíssimo registo das intervenções vocais desses guardiões da moral esquerdista quando – e passando por cima de outras excentricidades aplaudidas de pé — em 2021 a obsessão de Pedro Nuno Santos e o oportunismo de António Costa fizeram com que o país despejasse 3200 milhões de euros para “salvar” uma empresa de aviação falida. Quantas selvas de lata custam, afinal, uma TAP? Quantas construções e demolições de Taludes poderíamos ter evitado se os pobres fossem mesmo uma prioridade e a habitação em condições um verdadeiro desígnio nacional?

Até lá, contando sempre com os princípios férreos destes beneméritos, as pessoas no Talude bem podem continuar a dormir ao relento. Melhor ainda: quando olharem para o céu, em vez de estrelas, vão conseguir ver a bandeira portuguesa nas asas de aviões em que nunca vão poder voar.

Nota: Concluo hoje a minha colaboração com o Sapo. Procurei sempre escrever aquilo em que acredito para não ter de fingir acreditar naquilo que escrevo. À Joana Petiz, que me concedeu a honra deste espaço mais ou menos semanal, o meu obrigado. Aos leitores, a razão de ser de qualquer projeto editorial, o meu sentido agradecimento. Encontrar-nos-emos em breve.