Embora ainda não se conheçam os dados de 2022, tudo indica que não existirá um aumento na quantidade de cidadãos em situação de sem-abrigo em Lisboa. E pessoalmente, caminhando nas ruas das freguesias de Alvalade e Areeiro registo, de facto, uma diminuição da quantidade de pessoas nessa situação especialmente desde o "termo" da crise COVID e da recuperação do turismo. Contudo, esta minha percepção e o resultado "oficial" dos inquéritos não confere com o que se passa no resto da cidade e, especialmente nas freguesias litorais de Lisboa e em Arroios onde há a certeza de que a quantidade destas pessoas aumentou de forma muito significativa.

Se se confirmar esta separação entre números oficiais e números percepcionados então estamos perante um problema de qualidade nestes números e precisamos, urgentemente, de rever a forma como são elaborados. Acredito que esta diferença (o número real de pessoas em situação sem-abrigo em Lisboa pode estar entre as 600 e as 800) assenta na dificuldade em quantificar esta população pela sua mobilidade mas sobretudo pelo facto de a população migrante sem-abrigo ter explodido em Lisboa nos últimos anos. Actualmente, não há dúvidas de que o número de estrangeiros já é muito superior ao dos cidadãos nacionais num fenómeno que já tinha registado quando fiz voluntariado num centro de acolhimento COVID-19 em 2020. E entre estes estrangeiros há novos padrões: a quantidade de timorenses aumentou de forma significativa nos últimos meses e há novas nacionalidades na rua: marroquinos e argelinos. Isto mesmo foi confirmado por Flávia Tourinho do Alto Comissariado para as Migrações no Debate do "Morar em Lisboa" de 31 de Janeiro em Lisboa que confirmou este aumento de cidadãos estrangeiros desde julho de 2022 sendo que em 2021 houve apenas 17 atendimentos mas em 2022 o número já subiu a mais de 800.

Por razões familiares conheço bastante bem, além de Lisboa, Amadora e Queluz e é nítido que praticamente não existem aqui cidadãos sem-abrigo. O mesmo, contudo, não se regista em Lisboa. Este fenómeno pode ser o produto de uma "distorção virtuosa" em que pelo facto de, nos últimos anos, ter existido um grande reforço nas soluções para este desafio. Em consequência temos hoje mais de 900 camas em Lisboa, o que corresponde a aproximadamente 60% da oferta nacional. Esta percentagem está quase na mesma proporção da distribuição de cidadãos nesta condição pelo território nacional e Lisboa e é a razão pela qual se conseguiram integrar boa parte das 300 pessoas que viviam na rua antes de 2019 nas 240 casas "housing first" entretanto criadas em Lisboa.

Estes números foram divulgados no debate do "Morar em Lisboa", de 31 de Janeiro na Biblioteca do Calhariz, e demonstram que é preciso endereçar a questão dos cidadãos sem-abrigo não apenas numa escala lisboeta mas ir mais longe e aumentar a oferta de soluções e de reintegração social nos concelhos em torno de Lisboa numa lógica de intervenção à escala da Área Metropolitana (AML) tanto mais porque em Lisboa escasseiam espaços para nova construção habitacional e porque tudo indica que o programa "Housing First" (lançado em 2019) é um sucesso. Com efeito, neste debate do "Morar em Lisboa", Américo Nave, diretor executivo da CRESCER, reportou uma taxa de sucesso de 90% apontando na direcção deste programa e do seu alargamento aos concelhos limítrofes de Lisboa como uma peça essencial nesta equação. É assim, na nossa opinião, muito importante estender este programa até Amadora e Vila Franca de Xira e, mesmo até Cascais (que tem apenas 29 camas) e outros concelhos. Neste sentido, têm existido movimentações na AML mas tudo ainda a uma velocidade muito baixa e não temos nenhuma concretização desta possibilidade que aliviaria Lisboa da posição demasiado central que ocupa nesta situação.

Além do alargamento da oferta "Housing First" aos concelhos da AML é importante revisitar as propostas de 2020, ano em que foi sextuplicado o IMI a todos os imóveis devolutos da cidade e encontrar formas imaginativas e apelativas que levem a que os proprietários coloquem no mercado de arrendamento estas habitações e a preços acessíveis. O sucesso desta devolução à cidade de 14% das casas de Lisboa (mais de 48 mil) num prazo relativamente curto teria — pelo aumento brusco da oferta — um efeito muito sensível nos preços na cidade.

No debate de 31 de Janeiro ficou por responder a pergunta que deixei à mesa de oradores: Quantos cidadãos, quantas famílias perderam a casa nos últimos casos para o Alojamento Local (AL)? Qual seria o impacto de acabar com o AL nos preços do arrendamento em Lisboa? Se as mais de 25 mil casas em AL regressassem ao uso habitacional juntamente com os 48 mil devolutos, ou seja, se os perto de 30% de casas vazias e em AL regressassem ao uso para o qual foram construídas qual seria o impacto na espiral louca dos preços da habitação na cidade?

Rui Martins | Eleito local em Lisboa pelo PS à Assembleia de Freguesia do Areeiro (Lisboa), dirigente associativo e coordenador da secção temática "Democracia Participativa" da distrital do PS.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.