Estudou muito: merece. Trabalhou a vida toda: merece. Era pobre e construiu um império: merece. É bilionário/a, mas trata bem os seus funcionários: merece. É uma das pessoas mais ricas do mundo, mas defensor(a) de causas ambientais: merece. Estes são alguns dos típicos exemplos que recebem palmas transversais entre os mais diferentes meios sociais, pressupondo que quem não se insere nessas categorias, à partida, é desmerecedor de riqueza, gentileza ou oportunidades.

A ampla atribuição de mérito a alguém é definida por diferentes parâmetros ao longo da história e trata-se, muitas vezes, de um recorte de atributos ou ações limitadas que podem constranger a livre ação humana e a sua criatividade, assumindo um pressuposto naturalista de que vão sempre existir pessoas que merecem, de forma geral, mais do que outras. Neste sentido, são elencados e reformulados gradientes valorativos que funcionam como formas de distinção, com o objetivo, em última instância, de se manifestar na distribuição de mais ou menos riqueza (ou nenhuma) e/ou reconhecimento, e que acabam por espelhar, ironicamente, a sua relatividade.

O espírito meritocrático causa alienação quando manifesta a sua ostentação moral, pois ao atribuir a máxima importância à necessidade de exibição do mérito (numa escala entre bons e maus, ignorando o diferente), fá-lo como forma exclusiva de obtenção de poder na ação humana, controlando até mesmo o acesso às necessidades básicas e restringindo o livre desenvolvimento das mais variadas capacidades. Uma avaliação do mérito revestida de um cariz paternalista afasta as relações sociais de um voto de confiança solidário entre si e da formação de uma integridade humana por si mesma, pois prejudica o investimento das pessoas nas suas diferentes virtudes e aptidões, e torna nebuloso o surgimento de caminhos harmoniosos na construção de conhecimento, autonomia e entreajuda.

Partindo sempre de uma necessidade dogmática de demonstração da nossa boa-vontade ou empenho para ter direito a algo benéfico, definem-se, numa negociação bastante débil e por vezes viciada, alguns limites que nos exigem superação. Trata-se de uma imposição que pode ser física, mental ou até mesmo emocional, disfarçadamente acompanhada de um caráter abstrato, mas que perambula constantemente ao nosso redor, relembrando-nos sempre da sua exigência: uma prova que demonstre o nosso esforço, que, em muitos casos, é equiparável a uma medição da nossa dignidade. Os direitos humanos e as leis que redigimos encaminham-se para um mundo teórico de dignidade humana incondicional, mas, no quotidiano, ela está longe de se manifestar, pois é pré-atormentada pelo mito especulativo do merecimento. No entanto, partir da incondicionalidade permitiria um encaminhamento dessa ampla dignidade garantida para a especificidade do mérito e, assim, seria construída uma base que colocava cada um e cada uma de nós numa posição mais livre e equilibrada perante aquilo que podemos escolher fazer e o que, supostamente, merecemos.

A perspetiva aqui explorada trata da rivalidade extremada causada pela ideia de meritocracia e do seu desequilíbrio causador de pobreza, preconceitos e discriminações, salvaguardando, obviamente, a justa oportunidade de alguém que se destaca em determinada área poder prosperar nesse meio. Mas mesmo quando é posta em prática essa ideia positiva de mérito, que atribui a alguém a prática de determinada atividade por fazê-la com excelência, está também encoberta por julgamentos de outras dimensões (que esmiúçam a normatividade do merecimento e podem ser castradoras). Estas passam pelo tempo definido administrativamente para a execução da atividade, muitas vezes desatualizado e demasiado controlador; a avaliação da utilidade da tarefa, tendo em conta os restritos padrões de produtividade estabelecidos; as limitações e conflitos culturais a que pode estar sujeita por fanatismos, ressentimentos e/ou ignorância; e vários outros processos que julgam moral e estruturalmente as práticas de quem realiza, com qualidade, uma prática com que se identifica.

A busca por mérito tem de incluir nos seus parâmetros uma relatividade abrangente, sendo fundamental afastar-se da sua faceta competitiva e dos seus dogmas, para não correr o risco possessivo da uniformização. Combater obsessivamente a falta de mérito pode traduzir-se numa batalha contra a pluralidade criativa e na negação de um futuro com mais possibilidades libertadoras.

Quanto à crença na existência atual de um mundo meritocrático, num contexto em que 1% da população detém mais de metade da riqueza mundial, apenas podemos conceber dois cenários: 1) as pessoas que têm mérito são uma raridade; 2) a meritocracia não se manifesta, nem nos nossos sonhos mais exuberantes. A isto, podemos ainda acrescentar todas as pessoas que nunca conseguiram qualquer reconhecimento que lhes permitisse ter uma vida digna, mas que sempre se empenharam dedicadamente a ajudar as outras, todas as que nunca conseguiram viver de uma arte ou ofício que apreciam e dominam, e ainda aquelas que nasceram num contexto social que não lhes permite sequer sonhar e que foram impedidas de construir um projeto de vida minimamente emancipador.

Enquanto nos desviamos do percurso da aprendizagem que nos preenche, das relações humanas que nos definem e da ligação íntima com o meio natural que nos rodeia, criamos também uma urgência sedenta de mérito em relação à nossa própria existência pessoal, pressionada pelo nosso entorno social. Para nos considerarmos merecedores de uma vida moderna ou pós-moderna (ou tardiamente moderna, consoante a perspetiva sociológica), nesta época frenética, definimos um calendário que nos engole constantemente, numa superação competitiva e aborrecidamente contabilizada que impomos a nós mesmos. O desejo de maior lucro e conforto, maiores níveis de segurança e eficácia, melhor gestão de tempo e a realização de muitas tarefas em simultâneo de forma apressada, constroem um sistema de exigência meritocrática que nos aprisiona e que reproduzimos diariamente.

Expondo as costuras ao controlo moral e social do mérito, aquilo que podemos questionar é, talvez, o que fizemos nós para merecer a sua perseguição fantasmagórica com que, de forma masoquista e irrealista, nos autoinfligimos?