Vivemos uma época de liquefação das grandes matrizes ideológicas que sustentaram e puseram em movimento a vida política das sociedades ocidentais nos últimos 80 anos. Liberalismo, conservadorismo e esquerdismo/socialismo — todos vivem tempos de crise. Mas a crise é mais severa para o lado das esquerdas e vale pena tentar perceber porquê.

As últimas eleições legislativas em Portugal trouxeram o pior resultado para as esquerdas desde a fundação do regime democrático. O desastre incluiu o Partido Socialista (PS) que até há pouco tempo parecia ir sobrevivendo à decadência das extremas-esquerdas. Os socialistas europeus (PES) reconheceram o desastre quando viram um dos últimos partidos socialistas esvair-se na irrelevância. De facto, a Península Ibérica parecia ser um lugar invulgar de resistência eleitoral da esquerda não-extremista. Porém, com Pedro Sanchez em apuros sérios e o PS em decomposição, o tempo do pânico chegou. Giacomo Filibeck, o secretário-geral do PES, atestou o pânico quando há dias tentou desvalorizar tamanhos reveses contrapondo com uma vitória eleitoral na Lituânia, um micro-Estado, obtida em Outubro.

É preciso, no entanto, dizer que os partidos da esquerda democrática europeia não estão condenados à extinção. E que vários destes reveses têm razões conjunturais que ajudam a perceber o tamanho da hecatombe. No caso português, o legado de António Costa foi pura e simplesmente demasiado pesado para qualquer líder socialista que fosse a eleições. Independentemente da inaptidão de Pedro Nuno Santos para a liderança da oposição – inaptidão reconhecível a quem tinha olhos para ver logo no início de 2024 –, a herança política deixada por Costa era inassimilável.

Não foi só a incompetência, a corrupção, o clientelismo e a colonização em massa do Estado e da sociedade pelo PS durante oito longos anos. Costa foi directamente responsável por crises agudas em sectores muito valorizados pela população, como a saúde ou a habitação. Costa não deixou qualquer reforma estrutural digna desse nome. Fez-se à custa da mais vulgar demagogia em torno da “austeridade” e de uma falsa página que se teria virado com ele. Engoliu a contragosto o novo modelo de Pedro Passos Coelho para o desenvolvimento do País, assente em contas públicas equilibradas, crescimento pelas exportações e pela atracção de investimento externo e cumprimento das regras europeias, sem aventuras desastrosas à Syriza, cuja “linha” Costa dizia em 2015 que se sentia “fortalecido” para seguir. E convém não esquecer que Costa é o único rosto responsável pelo desastre das alterações da lei da imigração e da lei da nacionalidade que converteram a imigração num dos principais problemas políticos nacionais.

Como se isto não fosse suficiente, Costa subtraiu o que restava de autoridade ao PS para se apresentar agora como barreira ao crescimento do extremismo político. Aliou-se a extremistas notórios quando foi necessário para salvar a sua carreira pessoal. E secou a legitimidade do PS para exigir que o PSD agora se lembre da parceria de décadas de ambos os partidos na construção do regime democrático. Depois de oito anos de arrogância e prepotência, votando ao desprezo o PSD, o PS devia ter vergonha dos apelos que agora faz diariamente ao “sentido de responsabilidade” do PSD. Enquanto Costa durou no poder, choveram as palmas a tanta “habilidade” que ia arruinando o regime. Deu-se até protagonismo ao Chega, numa estratégia de imitação ao que Mitterrand deploravelmente levara a cabo na promoção da Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen nos anos 80. O aplauso de então ao desprezo pelos valores da moderação política dá agora despudoradamente lugar a lágrimas de invocação desses valores. Não merecem um segundo de consideração.

Conjuntura à parte, a crise do esquerdismo transcende as fronteiras nacionais. Resulta de transformações longas na identidade e base intelectual das esquerdas que chegaram nos últimos anos ao seu ponto de contradição fatal. A esquerda política nasceu e consolidou-se como crítica radical do capitalismo. E radical porque tinha como consequência a proposta de uma alternativa ao capitalismo. Tanto a esquerda totalitária como a esquerda democrática concordavam que a emancipação com que sonhavam só seria possível num sistema económico e social alternativo ao que era proporcionado pelo capitalismo. Por conseguinte, o que estava em causa, por meios diferentes, evidentemente, era a edificação de uma democracia económica e social que fosse além da democracia meramente política, e que seria impossível sem a solução do problema criado pela propriedade privada dos meios de produção e a determinação livre dos preços. Para pensar essa mudança, a esquerda, incluindo a esquerda democrática dos partidos trabalhistas e social-democratas, recorreu às categorias marxistas. Não tinha outras.

Aconteceu que no final dos anos 60 essas categorias estavam mortas. A esquerda, incluindo a esquerda extremista, começou a reconhecer que o marxismo não era a interpretação infalível do capitalismo, nem dos seus conflitos internos, que sempre jurara que era. Com essa ruína, a esquerda radical desceu por uma espiral de irrealidade na procura de uma transformação já não das estruturas económicas do capitalismo, mas das relações de opressão que julgou encontrar no sufoco da conformação das subjectividades. O poder, afinal de contas, oprimia sobretudo nas sombras da sociedade. Não era a maioria que vivia sob a opressão da exploração do capital, mas as pequenas minorias que eram vítimas de formas inauditas de poder informe.

Por seu lado, a esquerda democrática deparou-se com a falência total do seu esforço de pensar uma alternativa ao capitalismo. Pura e simplesmente desistiu. E daí tornou-se liberal. Estou a falar de um liberalismo de esquerda, claro. Mas ainda assim um liberalismo que oferecia apenas paliativos e correcções inofensivas às desigualdades e injustiças do sistema de mercado. O problema é que essa solução fora encontrada antes pelo liberalismo e pelo conservadorismo sob a forma de uma “economia social de mercado”. Aflitos com o seu compromisso com o mercado, sobretudo em tempos de “austeridade”, cresceu nos esquerdistas democráticos a vontade de se diferenciarem.

Por falta de imaginação, a esquerda democrática adoptou a redefinição da luta política imposta pela extrema-esquerda. Tratava-se então de dar ao lado social e cultural da acção política um cunho libertário de emancipação da subjectividade e dos seus desejos. A esquerda passou a exigir novas liberdades, querendo dogmatizá-las como direitos, desinteressando-se das liberdades antigas. Fê-lo desregrando a vida social e moral em nome da emancipação individual, da autenticidade pessoal e da diversidade.

Havia, porém, um problema. É que as novas liberdades eram apresentadas como reinvidicações de emancipação de pequenas minorias contra a maioria, incluindo a maioria composta pelo eleitorado dos partidos da esquerda democrática. O que podia ser uma experiência para a extrema-esquerda era fatal para os partidos social-democratas. Estes agora apareciam a hostilizar o seu próprio eleitorado como a fonte da opressão cujo combate animava toda a acção política. Os ainda eleitores dos partidos da esquerda democrática viam-se agora no papel ingrato de serem xenófobos se criticassem a imigração massiva imposta pelo cosmopolitismo socialista. E de serem transfobos se se recusassem a aceitar a ditadura da linguagem correcta definida nos departamentos de ciências sociais das universidades americanas e exportadas para o resto do mundo. O eleitorado devia aceitar ser tratado como um conjunto de broncos preconceituosos dóceis à reeducação feita através da propaganda, da escola, da universidade, dos media e finalmente da força coerciva da lei. Mais, o desregramento cultural e moral proposto pela esquerda trazia um efeito dissolvente que até podia ser acolhido positivamente num tempo de rigidez moral ou de disciplina social ou de autoridade e força nacional. Mas num tempo em que tudo isso parece fugir debaixo dos pés, esse efeito dissolvente aparece como uma ameaca destrutiva que é preciso afastar e se necessário fazer desaparecer.

Quando os partidos populistas de direita apareceram com força, acabaram por perceber que podiam adoptar a formulação que a desorientação dos partidos de esquerda lhes dava de bandeja. Por exemplo, a intervenção do Estado na economia e a refutação dos dogmas de mercado, como a crítica da globalização, sempre que fosse essa a vontade colectiva da comunidade nacional. A proposta de intervenção socialista em nome de ideias vagas de igualdade e amarradas a uma preocupação cosmopolita aparecia agora menos palpável, menos concreta e, por isso, politicamente muito menos atractiva. Além disso, os partidos populistas de direita podiam apelar finalmente ao conservadorismo social e cultural das classes trabalhadoras que afinal de contas era uma manifestação simples do seu senso comum, e que se sentia desrespeitado pelas elites endinheiradas e universitárias das esquerdas identitaristas sempre em busca de direitos de nova geração. Não foi por acaso que em Portugal os maiores triunfos da direita populista vieram dos bastiões das esquerdas.