Embora a iniciativa tenha limitações a uma total gratuidade, esta medida, conhecida como "Passe Cultural", na verdade tem várias ineficiências e iniquidades (no sentido de criar várias grandes injustiças).

1. Em primeiro lugar, a iniciativa tem um foco errado: é possível endereçar uma medida de apoio cultural num de dois vectores ou apenas num destes: na lógica da oferta, na lógica da procura e, simultaneamente, em ambos. Ao ser exclusivamente dedicada à procura (gratuidade apenas para a procura) pode ter efeitos eleitorais de curto prazo, mas não promove um aumento sustentado e sustentável dos públicos culturais, excluindo todos aqueles que  motivos profissionais ou familiares são co-participantes frequentes da vida da cidade. Seria mais inteligente criar uma política de apoio e promoção às actividades culturais que incluísse todos os cidadãos que vivem Lisboa e trabalham em Lisboa e que funcionasse mais numa lógica da oferta e da sua concertação com a procura do que fazendo um foco único na procura por parte dos cidadãos que residem em Lisboa.

2. Mas ainda que se mantivesse uma lógica de apoio cultural pela via da procura teria sido possível criar um "passe cultural" que integrasse uma lógica de mercado e valor estimulando o consumo sustentável e a prazo de cultura. Não é tornando "grátis" o acesso a bens culturais que os popularizou, pelo contrário, isso criará uma percepção de "valor zero" que como dizia há algum tempo Diogo Infante diretor artístico do Teatro da Trindade, criará "um desinvestimento emocional por parte do público, que se manifesta num menor respeito pelos artistas e numa proporcional desvalorização dos objetos artísticos em apreço". Na mesma linha do vector procura, seria assim mais inteligente, criar um "passe cultural", sim, mas atribuir-lhe um valor máximo anual e ir descontando nesse passe, evento a evento, o valor de cada espectáculo, e abrir o usufruto do cartão a outras organizações, privadas ou públicas, além da EGEAC, que quisessem aderir e usufruir desta oferta. Assim se preservaria a noção de valor do trabalho artístico e se alargaria muito em âmbito e oferta, a quantidade dos serviços cobertos pelo "passe cultural".

3. Em vez de medidas "populares" e de potencial largo alcance mediático ("acesso gratuito à cultura") talvez fosse mais duradouro e eficaz consagrar 1% do orçamento total da autarquia de Lisboa a investimento na área da oferta cultural. O facto de se tornar gratuito o consumo de bens culturais dificulta a execução deste objectivo (mesmo que ele existisse) uma vez que se perde uma boa parte dessa métrica e, logo, dificulta avaliar qual é o grau efectivo de apoio às actividades culturais.

4. É preciso dar mais independência à actividade cultural em relação ao poder discricionário da Câmara Municipal e das Juntas de Freguesia: para além de mais "hubs culturais" e "programas de apoio" precisamos de focar mais nas condições para que exista produção cultural e para que esta se financie realmente num público cultural e não em subsídios. A subsidiodependência é negativa porque subordina ao (conjuntural) poder político de momento mas a melhor forma de a diminuir - de forma gradual e sensata - é permitir que seja o público a avaliar e a financiar a actividade cultural não torná-la dependente de ajustes directos de um qualquer executivo de Câmara ou de Junta. Neste sentido, um "passe cultural" poderia ser uma boa alavanca para libertar os criadores desta dependência ao passar essa responsabilidade para o lado da procura, para o lado dos cidadãos e consumidores de bens culturais através da transformação do "passe cultural" num "cartão-cultura" com um plafond anualmente renovado e que poderia ser consumido nas actividades e serviços das entidades aderentes.

5. O "passe cultural" poderia ser parte de um processo participativo de um "Orçamento Participativo Cultura Lisboa" que envolvesse mais os cidadãos nas opções culturais da cidade. As entidades aderentes (incluindo a EGEAC) poderiam apresentar os seus projectos de serviços culturais ou espectáculos e os aderentes ao passe poderiam votar (com votos múltiplos e usando um método de voto preferencial) nos projectos favoritos: assim se envolveriam os cidadãos, se sairia de uma lógica clientelar e subsídiodependência e se criaria um novo mecanismo participativo na cidade sendo que que tivesse votado num projecto vencedor poderia, posteriormente, ser premiado com acesso sem custos a esse projecto.

6. Tendo em conta que a Câmara Municipal e as Juntas de Freguesia já têm competências (que, em breve, serão reforçadas) nas áreas da educação em Lisboa a CML poderia investir na valorização de todas as disciplinas ligadas à produção artística que alimenta o gosto pela arte e pelos consumos culturais desde as mais tenras idades podem inserir esta estratégia na promoção de um "passe cultural" e de "OP cultura" junto dos mais jovens através da votação em sala de aula dos projectos do "OP Cultura Lisboa" proposto na linha anterior.

7. Este "passe cultural" poderia ser usado para conceder acesso a formações culturais de pintura, fotografia ou desenho nas universidades seniores aderentes e onde já existe este tipo de serviço. Poderia, para quem escreve textos de prosa ou poesia, dar acesso à publicação regular num novo suplemento da revista "Lisboa" da CML que servisse para divulgar e promover a obra de novos e, simultaneamente, divulgar a existência do "passe cultural".

8. Em lugar de focar no lado da Procura, a CML poderia usar este "passe cultural" para abordar o problema de aumentar o uso de bens culturais em Lisboa do lado da Oferta tornando regulares alguns dos apoios extraordinários lançados na época da crise sanitária da COVID-19 aumentando a cobertura da isenção de rendas a 100% por forma a apoiar a produção de cultura na cidade de Lisboa em ateliês, espaços de atividades performativas e artes visuais, sejam estes, escritórios ou armazéns.

Estas oito propostas poderiam tornar o "passe cultural" naquilo que ele prometeu mas que não irá cumprir: ser um efectivo agente de mudança e de apoio às actividades culturais em Lisboa.

Rui Martins | Eleito local em Lisboa pelo PS à Assembleia de Freguesia do Areeiro (Lisboa), dirigente associativo e coordenador da secção temática "Democracia Participativa" da distrital do PS.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.