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Apagão

Foi na semana passada que confirmei a veracidade de algo que a minha mãe me dizia quando eu era pequeno, sempre que não desligava a luz do quarto: não somos sócios da EDP.
Apagão

Foi na semana passada que confirmei a veracidade de algo que a minha mãe me dizia quando eu era pequeno, sempre que não desligava a luz do quarto: não somos sócios da EDP.

O dia foi difícil. Estive sem luz, sem água e, pior, dez horas sem conseguir ver reels. Peguei no carro para ir dar uma volta, mas não há semáforos. Assim é complicado. Sem o amarelo, como é que eu sei quando é para acelerar?

Liguei a rádio numa desesperada tentativa de uma dose de tecnologia. Começam as teorias.

A Renascença diz que o apagão foi um último sinal do Papa, e que a falta de luz representa um último luto. Por esta lógica, África está de luto há três mil anos. Na verdade, existem homo sapiens em África há mais de trezentos mil anos, mas três mil é muito mais fácil de dizer. Uma lógica que orgulhosamente aplico em todos os factos, ainda que a minha professora de História não concorde que quem descobriu o Brasil tenha sido Pedro Alves Cabral.

Mudei de estação. A RFM está a entrevistar pessoas à porta de um supermercado, e os testemunhos alertam-me para uma realidade que até então tinha ignorado: não tenho um fogão a gás. Entrei em pânico. Vou ter de ir ao supermercado.

A falta de semáforos representou para mim um inesperado teste de memória ao Código da Estrada. Não foi fácil perceber quem tinha prioridade nos cruzamentos. Pelo sim pelo não, acelerei em todos.

Os meus problemas começaram no parque de estacionamento. O único lugar que tenho é entre um carro parado em cima das linhas e outro estacionado na diagonal. Não é que não dê para estacionar, mas é um estacionamento só para quem é muito bom a estacionar. Eu fui criado por uma mulher, há traços que se adquirem. Pus os retrovisores para dentro.

Vinte e dois minutos depois, consegui. Estou estacionado. Acontece que as minhas portas estão extremamente próximas dos carros ao meu lado, pelo que não consigo sair. Aqui decido que vou fazer as compras pela app, assim ao menos a viagem não é em vão. Não tenho dados móveis.

Não me rendo. Saí pela mala. Chego ao supermercado e decido pôr em prática os meus conhecimentos de psicologia invertida. Nem vou perder tempo a ir ao corredor das conservas. Fui direto aos frescos e congelados. Vazio. Ninguém pensou nisto. Sou um génio.

Pego em seis ou sete sacos de comida congelada e coloco-os no cesto. Agora estou a tratar de duas necessidades: comida e água, porque os sacos estão todos a verter. Não paro de me surpreender. Sou impressionante.

Sigo. Neste momento corre um rumor na ala dos arrozes de que a charcutaria está aberta e nela a funcionar uma balança analógica. Tinha de confirmar. Não se verifica. Foi tudo uma cabala para me afastar do Basmati integral. Mas vejo algo que me surpreende: temos fiambre.

O senhor da charcutaria está visivelmente entusiasmado, no que parece uma celebração pela vitória do Homem sobre as máquinas, agora que pode pesar tudo a olho como se fazia antigamente. Mas não vai ser fácil. Vou ter de regatear. Felizmente esta é uma arte que eu domino desde os nove anos, quando fui passar férias a um resort tudo incluído na Tunísia e nunca me cobraram o sumo de pêssego.

Avanço com tudo: “Boa tarde. Queria seis quilos de fiambre.”

O senhor da charcutaria responde: “Cem gramas. Pode ser?”.

Digo-lhe: “Sim, está ótimo.”

Devia ter previsto que se tratava de um profissional. Não tive hipótese.

Ainda abalado pela fraca prestação na negociação de fiambre, avanço já carregado para a caixa. A fila é maior do que a expectativa para saber se o próximo Papa é português.

À minha frente tenho uma idosa. Não me parece que tenha ido fazer as compras do mês – o meu palpite é que tenha ido fazer compras para o tempo de vida que lhe resta. Ela não leva um carrinho de compras, tem uma carrinha de caixa aberta. A senhora da caixa demorou meia hora a registar todas as coisas, e quando acabou o tapete estava em burnout.

Quando finalmente penso que a idosa vai pagar, ouço a última coisa que estava disposto a ouvir naquele momento: «olhe eu tenho aqui uns cupões…».

Passei-me. Nisto a idosa começa a discutir com a senhora da caixa por causa da validade de um cupão. Não via uma negociação tão acesa desde o cessar-fogo da Palestina.

As pessoas na fila começam a gritar números aleatórios: onze e meio. Onze, setecentos e cinquenta. Aparentemente isto invoca o Fernando Mendes, que sai disparado do meio da fila e começa a intermediar aquilo. Isto ainda me fez perder mais tempo, que agora a velha teve de ir lá dentro buscar um chouriço e uma bandeirinha da freguesia.

No final da negociação, até fumo branco saiu da chaminé do supermercado. Habemus poupança! 14 cêntimos.

Comediante Estagiário

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