Poderá parecer estranho fazer uma crítica a uma crítica. Sobretudo no caso de a crítica original ter alguns anos. Contudo, de vez em quando, a vida oferece-nos oportunidades que não podemos deixar passar. Isto vem reforçado quando a mesma crítica tem todos os condimentos para ser pertinente nos dias atuais – tratar-se-ia, podemos dizer, de um sintoma, o que poderá fazer desta minha crítica, um diagnóstico.

A revista académica Lutas Sociais é um produto do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Trata-se de uma publicação que – pode ler-se no respetivo site – "é produto da insatisfação com debates que, na sua aparente radicalidade, se restringem, dentro e fora dos círculos académicos, a opções que não questionam, mas, ao contrário, mistificam a ordem estabelecida. Diferencia produção científica da simples reiteração ideológica do existente e recusa-se a naturalizar as relações sociais." Da realidade dessa diferenciação entre ciência e ideologia, o caro leitor avaliará com o decorrer da leitura destas breves linhas. Quanto ao combate à naturalização das relações sociais, representa todo um programa. Iremos esquecer esta parte.

A resenha é obra de Ilse Gomes Silva, Doutora em Ciências Socias, professora na Universidade Federal do Maranhão. Foi aprovada pelo júri da revista em 2 de dezembro de 2020 e tem por título Partido Chega: a extrema-direita fascista em Portugal. Trata-se de uma análise à obra do mesmo ano de Riccardo Marchi, intitulada A nova direita antissistema: o caso do Chega.

O artigo indica logo ao que vem: realça o manifesto publicado no Jornal Público de 67 intelectuais contra a "higienização académica do racismo e do fascismo do Chega". Marchi, sendo ele próprio um especialista no estudo da direita radical, é vítima de uma tentativa de cancelamento por parte, podemos facilmente adivinhar, de um grupo de outros académicos (ou seja, seus pares) de esquerda e de extrema-esquerda. À semelhança da forma como procederam com Jaime Nogueira Pinto, Rui Ramos e Maria de Fátima Bonifácio, os adeptos, militantes e ideólogos desse lado do espetro político voltam a demonstrar a sua intolerância doutrinal e moral.

Detentores do politicamente admissível e do eticamente correto, são produtos acabados do wokismo e de um marxismo tardio, frouxo e desesperado. Sabendo que a sua opção económica saiu derrotada, agarram-se como piranhas às causas culturais, identitárias e de costumes. O advento do Chega vem colocar o seu reinado em perigo. Desafiando abertamente o politicamente e linguisticamente correto, fazendo frente à rua sindical/comunista/bloquista e, principalmente, reabrindo debates éticos e culturais outrora dados como findos pela esquerda, o pânico emerge nas hostes como o pó numa fuga de gnus na savana. Mas talvez o maior pecado do partido de Ventura seja a inauguração de uma zona de desconforto (e azia) que se traduz na criação de um campo político fora da bênção do Socialismo.

O Chega é o único partido do espetro político português a não estar sequer encostado (o CDS original dizia-se de centro) a uma visão socialista ou socializante da sociedade (mesmo a IL, em termos morais, é claramente de esquerda).

Adiante. Segundo esse manifesto, Marchi não teria posto em evidência nem muito menos condenado a face "fascista, neoliberal e racista" do partido. Se quanto ao fascismo e racismo poderá haver um certo entendimento quanto à sua pegada histórica – o mesmo já não vale para a verdade da adjetivação em relação ao partido de André Ventura –, o facto de terem incluído um conceito e doutrina económicos (neoliberalismo) à contenda demonstra a má-fé e o preconceito do grupo. O que só serve, de resto, para banalizar as acusações de racismo e fascismo: as práticas económicas de Reagan e de Thatcher jamais foram compaginadas com semelhantes epítetos e meios de atuação. Claro que este tipo de observação está na linha dura do marxismo e é máxima no seu evangelho: quem não é comunista é fascista. Bastará constatar a sua falta de fineza ao vermos sobre quem na História nacional recente recaíram as suas acusações: PSD, CDS, e mais recentemente, além do Chega, a IL. Podemos ver uma outra versão mais recentemente adotada pelos radicais de esquerda na curiosa mistura das causas climáticas, palestinianas, LGBTQIA+ e anticapitalistas. A perturbação das mentes incautas esteve sempre na ordem do dia no Socialismo.

Obviamente que Ilse Gomes Silva concorda com o manifesto. Conclui que o italiano apresenta "com palavras amenas que beiram a legitimação, o ideário do partido". Isto apesar de, acrescenta, o académico se socorrer de documentos oficiais, conteúdos das redes sociais, entrevistas a membros fundadores, "entre outras fontes", para o seu livro.

Repete o bordão ao acusar o autor de "flirtar perigosamente com a irresponsabilidade de não apresentar a face racista, homofóbica, nacionalista, conservadora e fascista" do partido. Aqui, de forma subtil, é introduzido o termo conservador, buscando uma resposta emotiva do leitor ao contrapor subliminarmente com a postura ideológica correta, isto é, o progressismo. No fundo, para quem se avençava na revista da isenção científica e racional, a brasileira transpõe a fasquia e parte para mais altos voos: o seu claro objetivo é condenar ideologicamente, em nome do Chega, toda a direita política. Conforme acima referi, é o velho lema do bom marxista.

Todavia, Ilse Gomes Silva não consegue deixar de mencionar a diferença na postura política do Chega face a Salazar: a nova direita radical "aceita as regras do jogo democrático estabelecidas pela Constituição". Ora, tendo a aprovação do Tribunal Constitucional, este aspeto parece-me suficiente para caracterizar um partido político como democrático. A senhora faz outra leitura: o partido de Ventura tem um "discurso dirigido contra a esquerda para deslegitimar os governos da III República". Ou seja, e chegamos ao ponto fulcral da questão, há uma coincidência e até uma identificação da República com os partidos de esquerda. O eterno chavão dos comunistas, novamente. Mais uma vez: a direita política, segundo a Doutora Gomes Silva, não tem foros de cidadania em Portugal – e, provavelmente, em todo o planeta. O corpo da democracia nasce e deve manter-se amputado de um dos seus lados – o que transforma a sua visão de democracia numa variação das democracias populares de leste no tempo da URSS. Por outras palavras, o que a académica brasileira defende é uma ditadura.

Podemos lembrar aqui o dito de outro amante das ditaduras: "o que precisamos é de um Salazar de esquerda!" Peço desculpa pela repetição de ideias – mas a resenha é repetitiva e tautológica. A autora acrescenta: o Chega não respeita a democracia liberal: "pelo contrário, é totalmente defensor do sistema capitalista, do Estado mínimo e forte e dos interesses do grande capital. Portanto antidemocrático, conservador, contra a superação das desigualdades sociais, estimula o ódio e a violência entre os povos e etnias". Não deixa de ser esclarecedora e paradigmática a relação que é estabelecida entre a premissa e a conclusão. Até os meus alunos do décimo ano sabem identificar um argumento inválido. Contudo, é interessante e revelador que para a brasileira todos os países do Ocidente, onde o capitalismo impera enquanto teoria económica, são antidemocráticos. Os países a seu gosto serão, com certeza, a Venezuela, Cuba, a Coreia do Norte e a China (entre outros) onde não há nenhum respeito pelos direitos humanos.

Não sei nada – nem quero – sobre Ilse Gomes Silva. Não conheço nada além desta resenha – desta pobre resenha. Se isto é digno de uma académica com um grau de Doutor ultrapassa-me e não é, definitivamente, problema meu. Mas demonstra o nível a que se pode descer quando somos dominados pelo fanatismo ideológico e moral. Também desconheço a Universidade e os responsáveis desta revista Luta Social. Ou seja, desconheço o seu grau de identificação com as teses propostas. No entanto, o artigo foi publicado.

Não posso deixar o leitor sem outra peça da nossa autora: "não cabe a um intelectual, com as referências de Marchi, flirtar com a neutralidade política." (Pensava eu que era suposto a ciência ser neutra). Gomes Silva, sem dúvida, não flirtou.

Professor e formador nas áreas de Filosofia, Psicologia, Sociologia, Turismo, História e Política