José Correia tem 68 anos, 50 dos quais dedicadas à pesca. Quando andava no mar, tinha por missão alimentar 13 homens famintos, criando pratos com os poucos recursos que tinha à mão. A bordo cozinhava caldeirada, sequinho, massadas, gala-gala, feijoadas de carne, peixe frito e grelhado e sopa de couves. «Os homens gostavam muito do peixe grelhado, mas como a fome era muita devido ao desgaste físico gostavam de tudo, sobretudo de lagosta», conta ao SAPO.

Foi a partir de histórias e experiências de vida como a do João e dos seus companheiros pescadores que muitos pratos passaram do mar para a terra e hoje fazem parte da chamada gastronomia de bordo, que influencia a zona de Peniche, Ílhavo e Murtosa e que, de há uns anos a esta parte, tem sido homenageada no Festival Gastronomia de Bordo, que este ano decorre de 2 a 25 de outubro em vários restaurantes da região.

A gastronomia de bordo é simples, baseada em poucos alimentos e condimentos que se misturam e deixam a alquimia fazer o seu trabalho. Mas quais os ingredientes que nunca podiam faltar a bordo? «Azeite e, para além disso, cebolas, alhos, sal e polpa de tomate», conta o antigo pescador. Mas quando também estes faltavam substituíam-se por outros e, por vezes, descobriam-se novos sabores. Já a maior dificuldade em cozinhar a bordo era na altura os fritos «devido aos balanços do barco».

Quando a comida feita no mar causa delícia em terra
créditos: Festival Gastronomia de Bordo

Assim, o que começa por ser uma necessidade a bordo acaba por influenciar toda uma região. «A gastronomia de mar é um importante património cultural imaterial dos diferentes concelhos que urge preservar e defender. A gastronomia influenciou cada uma das regiões, pois determinou os cardápios de cada região em causa, divulgou os produtos endógenos e impulsionou a comercialização dos produtos alimentares que caracterizam cada um dos diferentes pratos», explica Patrícia Borges, docente na Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar do Instituto Politécnico de Leira, que está a compilar em livro o enquadramento destas comidas feitas a bordo de barcos de pesca longínqua, costeira e lagunar e que acabaram por influenciar toda a gastronomia da região.

Longa ligação ao mar

Nesta região, a pesca tradicional começa por se desenvolver sobretudo a nível local e costeiro, mas a partir dos anos 60 do século XX esta ligação ao mar estendeu-se à pesca longínqua, tendo-se introduzido já neste século a pesca de arrasto. Estes pescadores recorrem a várias técnicas que vão passando de geração em geração, como o cerco, anzol, várias redes, covos, etc..

É este enquadramento histórico que Patrícia Borges está a fazer para ser compilado num livro a lançar brevemente. Para além da consulta a especialistas e obras de referência, foram também feitas entrevistas a antigos cozinheiros e a pescadores que foram cozinheiros de bordo. «O maior desafio foi tentar que os mesmos recuperassem as suas lembranças, comparando os diferentes testemunhos de forma a chegar a uma conclusão», conta a docente, que revela ainda que o que mais a impressionou foi «as condições de que disponham (muito fracas) e a capacidade de improviso dos pescadores em criarem pratos com um conjunto de ingredientes tão reduzido».

De entre estes vários tipos de pesca realizados e artes de pesca a que recorriam, assim nasceram muitos pratos confecionados a bordo e que acabariam por ser passados para os lares dos pescadores e tabernas que frequentavam em terra. «No caso de Peniche, o sequinho, a caldeirada, a gala-gala, o arroz de sardinhas e as massadas com diferentes espécies fazem parte dos ditos pratos de gastronomia de bordo», assinala Patrícia Borges.  As datas de introdução dos pratos são imprecisas, exceto o alfaquique frito com açorda de ovas que data de 1970. As outras são equivalentes à data de origem da pesca.

Quando a comida feita no mar causa delícia em terra
Caldeirada de enguias créditos: Festival Gastronomia de Bordo

Um festival que homenageia a comida feita no mar

A terceira edição do Festival Gastronomia de Bordo decorre de 2 a 25 de outubro, iniciando-se em Peniche e passando depois para Ílhavo e Murtosa. Os três municípios estão ligados pela temática do mar e pelo que este representa nas suas histórias, associadas à pesca longínqua, costeira e lagunar.

Este ano, o festival Gastronomia de Bordo em Peniche adaptou-se às novas circunstâncias e fica circunscrito à experimentação dos pratos nos restaurantes Xakra Beach Bar, Entre Peniche Tapas, Bar Ambassador, Restaurante O Pedro - Peniche, Restaurante Sardinha, Tables, Prainha Restaurant, O Minhoto e Wine Bar entre outros que assumem o compromisso de garantir que as receitas e pratos correspondem à sua origem, amarrada às épocas e às técnicas de confeção tradicional.

Assim, pode-se encontrar o seguinte receituário nos restaurantes aderentes a esta iniciativa: Alfaquique (peixe-galo) com açorda de ovas, Arroz de sardinhas, Sopa de peixe, Caldeirada à moda de Peniche, Cavala salgada à moda de Peniche, Filetes de peixe-porco com arroz de berbigão, Lagosta suada à moda de Peniche, Polvo suado, Quelmes secos grelhados com batatas a murro, Raia de molhinho, Sequinho, entre outros.

José Correia gosta de vários pratos realizados a bordo, mas confessa-nos aqueles a que não resiste: «Sou fã de cavala salgada, mas também de caldeirada».