Imagine-se a olhar para o céu noturno em busca de estrelas cadentes, ou seja, de meteoros que fazem a sua entrada na atmosfera terrestre. A olho nu, ou com a ajuda de um simples par de binóculos, vê o que parece ser o brilho de um destes corpos a cruzar a escuridão lá em cima, em seguida vira a cara para o lado e vê outro, algum tempo depois surge mais um, noutro sítio. Começa a estranhar tanta sorte e é então que percebe: são apenas satélites, membros de uma família de vastos milhares que foram enviados para a órbita terrestre. E o seu número não parece que vá parar de crescer.

Calma. Ainda não se chegou a um cenário em que o brilho de corpos celestes e de engenhos produzidos pela humanidade se confundem por completo no céu, mas para lá se caminha a passos largos. A empresa aeroespacial SpaceX, fundada por Elon Musk, já enviou para a baixa órbita terrestre 775 satélites do seu projeto Starlink, desde 2015. O objetivo é ter uma constelação de pequenos satélites capazes de fornecer Internet, tendo sido aprovado pela Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos da América o envio de 12 mil. Entretanto, a União Internacional de Telecomunicações já recebeu a papelada para dar aval ao despacho, adicional, de mais 30 mil satélites. Estima-se que o número total de satélites Starlink possa chegar a uns impressionantes cem mil.

“Atualmente há um grande número de objetos em órbita da Terra. Entre satélites, detritos de satélites e de foguetões estima-se que existam uns 20 mil corpos”, começa por explicar Ismael Tereno, investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). Segundo José Afonso, coordenador do IA, esta situação “levanta muita preocupação no seio da comunidade astronómica”, pois “a poluição, que é já bem visível, vai afetar negativamente a astronomia e o nosso conhecimento do Universo, estimando-se que a existência, a curto prazo, de dezenas de milhar de satélites a orbitar a Terra poderá afetar mais de 30% das observações dos telescópios mais poderosos, em funcionamento ou em construção”.

Uma grande dor de cabeça, portanto, para o consórcio do maior radiotelescópio do mundo, o Square Kilometre Array (SKA), cuja construção, atrasada, poderá começar em 2021. O SKA será composto por milhares de antenas com um disco e quase um milhão de antenas de baixa-frequência, espalhadas ao longo de milhares de quilómetros no hemisfério sul, especialmente na África do Sul e Austrália. Este empreendimento nunca antes visto, e que conta com Portugal como parceiro, permitirá aos astrónomos monitorizar o céu com um nível de detalhe e uma velocidade sem precedentes. A sua missão vai desde a observação das primeiras estrelas e galáxias que se formaram logo após o Big Bang, até ao estudo da enigmática força de repulsão que é a energia escura – ninguém sabe em que consiste, mas é responsável por perfazer 68% da energia total do Universo observável –, passando pela procura de sinais de vida em galáxias distantes, na forma moléculas de água ou outras.

Pormenor importante. Em radioastronomia, ‘observar’ um corpo celeste ou um fenómeno astronómico significa que se está a usar ondas de rádio para analisar as radiações eletromagnéticas que emitem ou refletem, explicando de forma rudimentar. Ou seja, aqui não há imagens para analisar, apenas sinais, mas estes sinais são responsáveis por algumas das maiores descobertas em astronomia, daí que os radiotelescópios sejam tão fundamentais.

Satélites ‘bloqueiam’ a procura de vida no Universo

Qual é, realmente, o impacto de satélites como os da Starlink nos radiotelescópios? “Os satélites comunicam com a Terra usando radiofrequências entre 10.7 e 12.7 gigahertz. Nestas frequências existem muitas riscas espectrais de moléculas prebióticas [moléculas orgânicas complexas, necessárias para a vida como a conhecemos], entre elas aminoácidos como a glicina”, frisa o astrofísico norueguês Jarle Brinchmann, também do IA. Estas riscas espectrais, que podemos descrever, corriqueiramente, como bandas negras que surgem na frequência da radiação eletromagnética emitida por um objeto, assinalando a presença química de diferentes átomos ou moléculas, “são difíceis de detetar e precisam de muito pouco ruído”, e é por isso que o SKA “está a a ser construído num local sem interferência eletromagnética”. O problema, sumariza Brinchmann, é que “os satélites produzirão muito ruído e podem fazer com que estas observações sejam impossíveis, se não tivermos uma solução para o problema”.

Imagem estilizada que mostra uma parte da rede de antenas com disco do radiotelescópio SKA.
Imagem artística conceptual que mostra uma parte da rede de antenas com disco do radiotelescópio SKA. créditos: SKA Project Development Office and Swinburne Astronomy Productions

A equipa do SKA publicou recentemente uma análise onde calcula as consequências do envio de 6400 satélites para a rede de 197 antenas com disco que irá erigir, nos próximos tempos, na África do Sul. A crer nos cálculos feitos, ocorrerá uma perda de sensibilidade na casa dos 70% na radiofrequência em que operam estes satélites, a chamada Banda 5b (entre os 10.7 e os 12.7 gigahertz), uma das sete bandas em que operará o SKA. Dito de outra forma, isto comprometerá a procura e estudo de moléculas orgânicas complexas que possam assinalar a presença de vida, assim como de moléculas de água em galáxias distantes, um marcador que é usado para estudar como é que a anergia escura está a acelerar a expansão do Universo.

“Para os telescópios do SKA existe uma maneira relativamente fácil de tratar o assunto: assegurar que os satélites não apontam para os telescópios enquanto comunicam com a Terra”, esclarece o pesquisador norueguês. A capacidade para fazer isto não é algo estranho para os operadores de satélites, pois já “são obrigados a evitar interferência com comunicação de televisão e outros tipos de telecomunicação, pelo que deve ser possível e relativamente fácil de fazer o mesmo com o SKA e outros telescópios de rádio”.

Mesmo assim, e apesar de existir bastante regulamentação destinada a proteger algumas bandas de radiofrequência usadas pelos astrónomos, “há demasiados satélites de comunicação que não as respeitam”, avisa José Afonso. “Mesmo quando respeitam, emitem alguma radiação residual nestas frequências, o que, para um radiotelescópio capaz de detetar uma galáxia nos confins do Universo – a 13 mil milhões de anos-luz –, é incapacitante”.

A lente do telescópio não está suja, o céu é que está

Quando foram lançados os primeiros 60 satélites de comunicação Starlink, em maio de 2019, a comunidade astronómica ficou pasmada com a facilidade com que qualquer pessoa os podia ver no céu. Os satélites da SpaceX não só eram mais brilhantes do que se pensava, como estava na calha o lançamento para a órbita terrestre de largos milhares de aparelhos semelhantes.

Foram más notícias para o futuro Observatório Vera Rubin, que está a ser construído a 2600 quilómetros de altura na montanha de Cerro Pachón, no norte do Chile, pela Fundação Nacional de Ciência dos EUA. Dotado de um espelho primário com 8,4 metros de diâmetro, o que distingue este novo telescópio ótico é a sua câmara digital, a maior do mundo para telescópios terrestres e capaz de captar as imagens mais detalhadas que alguma vez se obteve do céu noturno. A ciência que aí se fará terá como alvo a matéria escura e a energia escura, dois dos maiores mistérios da Natureza que, combinados, representam 95% do Universo conhecido, além de que conseguirá mapear pequenos objetos no Sistema Solar, incluindo asteroides cuja órbita os aproxima da Terra.

O problema é que, e de acordo com um estudo de impacto do Observatório Vera Rubin, após terem simulado os efeitos de 42 mil satélites Starlink, 30% das imagens obtidas pelo telescópio terão, pelo menos, o rasto de um destes satélites a borrar a pintura. Pior será durante crepúsculo, pois o brilho dos aparelhos será maior nessa altura e afetará quase todas as imagens. Para ajudar a atenuar o problema, a SpaceX já começou a escurecer os seus novos satélites, o que reduzirá a quantidade de “artefactos” óticos nas imagens – também conhecidos como “imagens fantasma”, aclara Ismael Tereno, e “que resultam de reflexões internas no sistema ótico” dos telescópios, sendo depois responsáveis “por fazer aparecer fluxos de luz solar, ou sinais elétricos, nos pixéis vizinhos” aos de um objeto com brilho.

Acontece que esta solução poderá não servir de muito, pois concluiu-se que o brilho principal que os satélites deixam como rasto será sempre captado. Soluções urgentes para a Vera, precisam-se.

O Observatório Europeu do Sul (ESO), do qual Portugal é membro, face à ameaça também foi obrigado a fazer os seus estudos de impacto, pois opera alguns dos maiores e mais tecnologicamente avançados telescópios terrestres. É o caso do Very Large Telescope (o VLT), considerado o instrumento ótico mais avançado do mundo e composto por quatro telescópios com espelhos principais de 8,2 metros de diâmetro, a que se juntam quatro telescópios auxiliares móveis, com espelhos de 1,8 metros. Ou, ainda, o Leviatã que será o Extremely Large Telescope (ELT), um instrumento com um espelho de quase 40 metros e que fará as delícias da comunidade astronómica quando começar a funcionar, em 2025. Conforme menciona o ESO, estes dois telescópios, ambos situados no deserto do Atacama, no Chile, “serão moderadamente afetados pelas constelações de satélites em desenvolvimento”. Mais especificamente, “o efeito é mais pronunciado no caso de exposições longas (de cerca de mil segundos), sendo que podem ser afetadas até 3% destas exposições obtidas durante o crepúsculo (tanto durante a madrugada como ao cair da noite)”.

Impressão artística do European Extremely Large Telescope (ELT)
O ELT, do Observatório Europeu do Sul, será o maior telescópio ótico do mundo quando começar a funcionar, em 2025. Esta imagem estilizada permite ter uma noção do seu tamanho, devido ao espelho de quase 40 metros de diâmetro que tem. créditos: ESO/L. Calçada

Ismael Tereno corrobora. “As imagens de telescópios óticos vão passar a ter, sistematicamente um grande número de rastos de pixéis saturados e de artefactos óticos. Além disso, a saturação cria um efeito de persistência, pelo que novas observações continuarão a ter, por algum tempo, alguns artefactos, mesmo que não haja a passagem de um rasto nesses instantes. O problema é particularmente importante em telescópios que tenham um grande campo de visão e que estejam a fazer imagens profundas, como será o caso do Observatório Vera Rubin.”

Alguém viu o asteroide que se aproxima da Terra?

Já se percebeu que a grande preocupação é a reflexão da luz solar nos satélites, pelo que a altitude a que estão os satélites faz toda a diferença, esclarece Jarle Brinchmann: “A altitude dos satélites Starlink (entre os 350 e os 400 quilómetros) implica que só são visíveis durante o crepúsculo. O crepúsculo é muito importante para observações de asteroides perto da Terra e de alguns outros objetos no nosso sistema solar, assim como para observações essenciais para a calibração dos nossos instrumentos.” Em suma, “se o número de satélites chegar ao previsto, cerca de cem mil, isto significa que podemos ser bastante prejudicados a detetar asteroides perto da Terra”, salienta.

Um enxame de satélites tão grande também prejudicará o estudo das zonas mais distantes da Via Láctea, as quais podem dar muitos dados observacionais que ajudem a explicar melhor como se formou o nosso sistema solar.

O que pode suceder quando há satélites que orbitam a uma altitude superior? O governo britânico e uma multinacional indiana lideram o consórcio que ganhou o leilão para ficar com a falida OneWeb, um outro projeto de constelação de satélites de comunicação que, até março de 2020, lançou 74 para o espaço. Os aparelhos, ao contrário dos da SpaceX, estão a uma altitude de 1200 quilómetros. Um problema para os astrónomos, até porque os mil milhões de dólares injetados pelo consórcio poderão permitir que a OneWeb atinja o seu objetivo inicial: enviar até 2022 à volta de 650 satélites que fornecerão Internet.

O fluxo de luz solar refletida é sempre maior para os satélites que têm uma órbita mais próxima da Terra, no entanto, o grande problema está mesmo nos satélites que estão a maior altitude, como os da OneWeb. O motivo? “Têm uma velocidade angular mais baixa, e, assim, demoram mais tempo a atravessar cada pixel da imagem” obtida pelo telescópio, adianta Ismael Tereno. “Ou seja, têm um tempo de exposição efetivo maior e fazem saturar o detetor. Isto quer dizer que não só fica um rasto na imagem, como também se formam artefactos ópticos. Além disso, quanto mais longe estão os satélites, maior o número deles que cabe no campo de visão do telescópio.”

Uma diferença em relação a satélites com uma órbita mais baixa é que estes, apesar de serem mais rápidos e surgirem durante menos tempo no campo de observação de um telescópio, formam um rasto mais largo.

Jarle Brinchmann faz uma análise semelhante à do seu colega do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço. “Se os satélites passarem para uma trajetória mais alta do que os 600 quilómetros, temos problemas ainda mais graves, já que eles podem ser visíveis a noite toda. Neste caso, as imagens profundas do universo, que precisam de tempos de exposição de 15 a 30 minutos ou mais, serão fortemente afetadas com rastos muito frequentes, que acabam por torna a redução e análise das imagens difícil ou até impossível.”

Imagem do asteroide Eros. o segundo maior a orbitar próximo da Terra. obtida em 2000 pela sonda espacial NEAR.
Imagem do asteroide Eros. o segundo maior a orbitar próximo da Terra, obtida em 2000 pela sonda espacial NEAR. créditos: NASA/JPL/JHUAPL

À espera que a solução caia do céu

Com tantos problemas a aturdir os astrónomos, o que fazer que seja verdadeiramente viável? No último verão, duas instituições científicas norte-americanas lançaram um relatório após auscultarem a opinião a mais de 250 cientistas, engenheiros, operadores de satélites e outros intervenientes que estiveram no workshop virtual Satellite Constellations 1 (SATCON1). O documento apresenta um plano de ações que podem mitigar as consequências negativas, para a investigação astronómica, que as constelações de satélites de comunicação criaram e vão adensar. Entre as medidas, constam ideias como a de evitar ter satélites a uma altitude acima de 600 quilómetros, construir satélites mais escuros, controlá-los de modo a reduzir a luz que refletem, remover os efeitos óticos que produzem nas imagens captadas e fazer observações a um ponto do espaço onde se sabe não estarem a passar satélites. A última implica coordenação entre as operadoras e os observatórios, no sentido de fornecerem informação minuciosa quando ao posicionamento dos satélites.

Todavia, mesmo que estas medidas de mitigação sejam aplicadas, não deixará de existir “enormes constrangimentos à operação dos telescópios atuais e futuros”, realça José Afonso, pois são “peças de precisão e marcos de desenvolvimento tecnológico cuja atividade deve ser eficiente”, remata o coordenador do IA.

Para Jarle Brinchmann, tudo se resume a uma questão de altitude (ou atitude) por parte das empresas. “Se conseguirmos convencê-las a ter satélites com altitudes de 600 quilómetros, o impacto será ligeiro para muitas áreas da astronomia, mas para os estudos do sistema solar, em particular, algum impacto é inevitável.  Se não conseguirmos limitar as altitudes, os efeitos podem ser muito graves e vai prejudicar o futuro de observações astronómicas a partir da Terra.”