No relatório "O fim do paraíso do gado: como o desvio de terras para explorações pecuárias minou a segurança alimentar nos Gambos", um município da província da Huíla (sul), a organização não-governamental (ONG) alerta para o afastamento de "dezenas de milhares de pequenos criadores de gado para dar lugar a explorações pecuárias comerciais".

Estas comunidades, acrescenta a AI, estão a ser expostas a riscos ainda maiores de fome e inanição devido à seca que aflige o sul de Angola.

O documento refere que, embora a região semiárida dos Gambos seja propensa a secas cíclicas, as pastagens comunitárias atenuavam estes impactos, mas foram atribuídas pelo governo a criadores de gado comerciais, deixando as famílias de pastores tradicionais a lutar pela sobrevivência.

Segundo o relatório da AI, que cita o governo, existem atualmente 46 criadores de gado comerciais que ocupam 67% das terras mais férteis (2.629 quilómetros quadrados), deixando apenas 33% para as comunidades locais, que têm na produção de leite, queijo, iogurte e carne o principal meio de subsistência.

"A AI soube que as terras, usadas durante séculos pelas famílias pastoris das províncias do Cunene, da Huíla e do Namibe, foram-lhes retiradas sem o devido processo legal", adianta a ONG.

A AI afirma que o governo autorizou os criadores de gado comerciais a ocupar a Tunda dos Gambos e o Vale de Chimbolela sem indemnizar nem auscultar as comunidades afetadas, que ficaram com terras insuficientes e improdutivas, violando a legislação angolana.

A organização pede, por isso, que o governo declare uma moratória às concessões de terras e nomeie uma comissão de inquérito para investigar como as 46 agropecuárias ocuparam dois terços das melhores pastagens desde o fim da guerra civil, em 2002.

"Ao falhar no seu dever de proteger estas pastagens comunitárias contra interesses comerciais, o governo falhou no seu dever de proteger precisamente as mesmas pessoas que reivindica ter legitimidade para governar", critica no relatório o diretor regional para a África Austral da AI, Deprose Muchena, acusando o executivo angolano de não proteger o direito destas comunidades à alimentação.

A ONG sublinha que a forme e a inanição "grassam entre as comunidades dos vanyanekes e ovahereros que vivem nos Gambos", considerada a "região leiteira" de Angola devido ao peso da criação de gado e produção de leite na economia local.

Testemunhas ouvidas pela AI dizem que a situação é tão grave que houve pessoas a morrer à fome e outros são obrigados a comer folhas selvagens, registando-se casos de vómitos, diarreias e doenças de pele, devido à escassez de água e más condições de higiene.

No decurso da investigação, a AI realizou duas missões nos Gambos, em fevereiro de 2018 e março de 2019, entrevistando dezenas de homens e mulheres diretamente afetados pelo desvio de terras e membros da sociedade civil.

A organização de defesa dos direitos humanos recorreu também a imagens de satélite para avaliar o aumento da utilização das terras para explorações agropecuárias e consequente redução das pastagens disponíveis para o gado das comunidades tradicionais, entre 1990 e 2018.

RCR // LFS

Lusa/fim