Primeiro chefe, a seguir amigo, depois a vida a adiar-nos (a nós e aos nossos reencontros) – implacável sacana, a vida adulta. Para mim, começou há quase 26 anos, na manhã do dia 20 de setembro de 1999, eu e o Mário Lopes (que podem, há muito, ler no “Público”) subindo as escadas do edifício do jornal “A Capital”, numa zona de Cabo Ruivo em transição pós-Expo’98: fábricas antigas, garagens, terrenos baldios, empresas novas, o metro a cheirar a fresco. Algures no segundo ou no terceiro andar, a luminosidade da redação do jornal BLITZ contrastava com a escuridão do interior de um prédio acinzentado pelo monóxido de carbono do tráfego acelerado da Infante D. Henrique. Mal entramos, linha reta, espera-nos um cavalheiro com ar de intelectual de BD francesa, t-shirt preta, cabelo curto mas levantado em poupa, óculos de lentes redondas, cigarro na ponta dos lábios, provavelmente o 12º da manhã que se seguiu a um dia de fecho.

O António Pires já era chefe de redação do semanário BLITZ há mais de uma década e, por esses dias, um histórico da imprensa musical portuguesa. Não me recordo bem da conversa, que há de ter sido breve, porque o que importava era pôr dois estagiários a trabalhar. Fomos, evidentemente, ‘pescar’ notícias e ouvir a nossa querida Cândida Teresa – fundadora do jornal, de quem o António tinha acabado de se separar – zombar com o sangue fresco. E ler em primeira mão textos da edição da semana seguinte, assinados por Miguel Francisco Cadete, Jorge Mourinha, Jorge Manuel Lopes ou Gonçalo Frota: a equipa A.

Esta história não é sobre os novatos – não é sobre mim –, mas é importante sublinhar isto: o António Pires não nos deixou sozinhos e, num repente, estávamos integrados na redação do jornal mais importante da imprensa portuguesa. Com o António a mudar os nossos títulos (e ainda bem que o fez; passou-me esse tique), a remontar os ‘leads’, a acrescentar 3 parágrafos a notícias que julgávamos oh-tão-eloquentes, a tornar rico tudo o que era incipiente, a dar-nos os contactos de toda a gente. Nenhum jornalista se faz a si mesmo e nós tivemos a sorte de ter o António Pires a mostrar-nos como se fazia. (Também estou certo de outra coisa: não o faço, hoje, melhor do que ele.)

O António não fumava; engolia cigarros e falava no meio de dois tragos: suave ou ofegantemente, ou as duas coisas ao mesmo tempo; as versões divergem. O seu cinzeiro era um cemitério de beatas, o telefone um viveiro de novidades. Tinha voz para apaziguar qualquer cobrador. Ao mesmo tempo possuía uma espécie de nervosismo vital que, por ser tão seu, parecia essencial à sua respiração. Atribuía-nos trabalhos que só nós poderíamos desempenhar com um ar tão alarmado que lá nos convencia a ir ao Lux às 3 da manhã ver o DJ mais importante do momento depois de um concerto de 3 horas de salsa no outro lado da cidade. Porque, evidentemente, não havia nada mais importante do que isso. “Tu consegues, tu consegues…” E nós conseguíamos.

Não sei em que altura passei de subalterno a amigo (poucos anos depois, a contragosto, o António veria a sua extenuante chefia repartida em várias editorias), mas quero pensar que talvez tenha sido num momento de união de forças perante um inimigo comum (falhámos, claro). E é já aí, na condição de compincha, que este filme me apanha no dia do meu 26º aniversário cagadinho de medo que o António pedisse a todos os convidados do seu segundo casamento que me cantassem o ‘Parabéns a Você’. A 13 de julho de 2003, o António casava-se outra vez, agora com a Paula Cabeçadas (então promotora da editora Universal), e nunca o vi tão feliz. Inconfidência certamente permitida: o padrinho foi José Cid, familiar da noiva, e algures num salão de festas em Queluz houve uma mini-reunião do Quarteto 1111.

Católico convicto, benfiquista sofredor, senhor de uma enorme gargalhada, especialista em trocadilhos com nomes de bandas, apaixonado pelos Joy Division (mas também pelos Gaiteiros de Lisboa), muito e bom fado, ainda mais músicas do mundo, desenferrujaria a veia nos últimos anos do BLITZ-jornal e, findo o semanário, escreveria livros sobre o Quarteto 1111 e as “raízes e antenas” da ‘world music’ a que já se dedicava afincadamente (aliás, discorreria sobre elas na BLITZ-revista, uma visita a ‘casa’ que sempre encarou com relutância mas à qual me orgulho de ter estado associado).

Para o António todas as mulheres eram belas, todas as extravagâncias lhe mereciam um sonoro, mas bem-humorado, “ó valha-me Deus”, todos os almoços eram galhofeiros, mas também em todos os dias reservava um par de minutos para ralações (A culpa judaico-cristã? Demasiado Joy Division no gira-discos?). “Calma, António”, dizíamos-lhe. “Eu estou calmo, eu estou calmo”, retorquia entre baforadas de cigarro. E depois ríamo-nos. Tinha um coração maior do que a vida debaixo da capa (fina) de ‘lobo do mar’ que viveu muito e já não se deixa impressionar. Pelo contrário: nunca conheci um mestre com tão poucas certezas (ainda bem; obrigado!); só assim – e, claro, através dos seus escritos, sobre Feelies, Morphine, etc. – foi capaz de nos ensinar o melhor ABC da comoção.

“Dance, dance, dance, dance, dance, to the radio” – lá dizia a canção. É uma espécie de nervosismo vital.