Percebeu-se que o título podia estar a invadir os cuidados paliativos quando Hjulmand, asfixiado por amarelos e em vias de ser afastado do dérbi se visse mais um, foi lançado por Rui Borges. Mesmo que convictas tenham sido as promessas de bicampeonato, não existiu quem tivesse escapado ao pressentimento de que tal logro era apenas ambição desmedida perante o que o Sporting demonstrou contra o Gil Vicente.

Quando entrou Hjulmand, também foi a jogo Quenda. Em sentido contrário, saíram Pedro Gonçalves e Morita devido à limitação de minutos imposta pelos problemas físicos. Dito isto, o Sporting nunca foi a melhor versão de si mesmo no jogo que antecedeu o dérbi com o Benfica na Luz. Ouviram-se assobios, cheirou a impaciência, respirou-se medo. O ambiente floreal de Alvalade esteve em vias de se tornar num velório.

Foi então que um milagre aconteceu.


FILIPE AMORIM

Quando a expectativa de ir para o banco é superior à de jogar, é normal existirem alguns interruptores que não estão ligados. Esperando Santi García ser suplente de Fujimoto até perto do silvo de partida do árbitro, os níveis de concentração do médio ainda estavam em modo económico. É pois de prever que, consequentemente, o espanhol tenha, por lapso, deixado um passe a Gyökeres. O glutão por acaso entregou os despojos da má construção do Gil Vicente a Trincão e o remate saiu por cima.

Defender em 4x2x4, com os alas relativamente subidos, permitia aos galos ter João Marques e Félix Correia a espremerem a circulação leonina para regiões interiores. Depois, era esperar que Facundo Cáseres e Mohamed Bamba usurpassem algumas bolas, caso o Sporting arriscasse infiltrações para Debast e Morita.

Temeroso, o Sporting abusou da verticalização até quando não havia profundidade. Com os dedos engessados, Trincão deu mostras que pode não ter mão para isto, mas pézinhos não lhe faltam. A combinação com Geny permitiu ao internacional dispor de outra oportunidade não concretizada. Pedro Gonçalves também foi acionado num universo de espaços, mas nada fazia periclitar a última linha gilista. Marvin Elimbie e Jonathan Buatu, com base na equiparação física, iam-se revelando um bom antídoto para Gyökeres.

A espaços, a equipa de César Peixoto recebia manobras de reanimação ofensiva. As compressões no peito eram realizadas até por Andrew, guarda-redes que praticamente isolou Santi García. Acontece que foi a incursão de Mutombo, pela esquerda, que deu verdadeiramente vida ao Gil Vicente. St. Juste, conhecido pela velocidade, neste caso, chegou tarde demais e apenas atingiu o rasto do francês. De grande penalidade, Félix Correia colocou a bola em cima e o Sporting por baixo, como a estirada de Rui Silva.


Gualter Fatia

À volta da cabeça de quem estava em lugar de submissão começaram a surgir lembranças de quando o Gil Vicente derrubou (0-0) o Sporting na primeira volta do campeonato. No entanto, olhando friamente para as coisas, o emblema de Barcelos estava nesta fase anulado do ponto de vista ofensivo e até já o ponta de lança, Pablo Felipe, ficara aprisionado nas imediações da própria área.

Pelo contrário, a equipa verde e branca aconchegava os defesas nos meandros do meio-campo ofensivo. Hjulmand, embalado pela presença de Gonçalo Inácio, a salvaguardar as costas do dinamarquês, encaracolou um remate que foi parar, inesperadamente, a Maxi Araújo e, a nove minutos dos 90, o resultado estava em aberto. Houve um livre de Trincão que raspou no poste, um cabeceamento de Harder pouco tenso e até o típico passe à baliza de Pote. Durante a segunda parte, nada teve o mesmo efeito que aquilo a que se assistiu já em tempo de compensação.


Gualter Fatia

Dada a desinspiração, uma reviravolta só poderia aparecer com base na emoção e na garra. O desfecho foi como aqueles quadros que valem milhares de euros mesmo quando a sua elaboração é feita apenas com base no arremesso de um balde de tinta contra a tela. Eduardo Quaresma não rematou aquela bola, injetou-lhe fé e só assim esta não travou a marcha para a baliza. Não se conteve aquele tiro, não se conteve o central que lacrimejou até mais não.

No futuro, ninguém perguntará nada sobre os quandos, os porquês e os ondes desta vitória. Se a interrogassem e ela pudesse falar, denunciaria o sofrimento a que foi exposta. Assim não sendo, o esquecimento torná-la-á tão bela como qualquer outra.