Pronto. Acabou. Já se pode escrever sobre futebol. Não acabou per se, eu sei. Continuam por lá, aqueles conjuntos envergando cores histriónicas, europeus a bocejar de cansaço, sul-americanos inflamados de uma coragem confrangedora, a chutar bolas como quem chuta a fortuna com éfe maiúsculo. Partidas infinitas como se fosse cricket. Sob o calor, a falta de público e de noção. Uma atmosfera de delírio sem glória. Mas acabou para nós, pobres-diabos que torcemos pelo Benfica. Acabou para nós, os crentes na bola preta e branca que hoje já não se reconhece. Acabou e é como se nunca tivesse começado: o Campeonato Mundial de Clubes, que em crianças nos tomava a imaginação, nunca foi nada disto.

O que quer que tenha sucedido nesses Estados Unidos das Coisas Impossíveis — e fosse o que fosse, ao que parece, pagava bem — o Benfica saiu derrotado. Veio embora. Apanhou o avião como quem foge à ventura. Encolheu-se e sentou-se em turística, que é onde se senta quem viaja para fazer turismo. Perdeu contra um Chelsea de terceira categoria, a jogar como equipa pequena. “Os mínimos”, proclamaram os desportivos. “O Benfica cumpriu os mínimos.” E Lage, com aquele ar de quem está sempre a ruminar a própria sombra, fez o que sabe: deixou no banco quem devia estar em campo, queimou quem ainda ardia, trocou tudo. Terá sido esse o famoso “plano para o Prestianni”? Uma criança de 19 anos que fez, imagine-se, o que faria um rapaz daquela idade. E lá estavam os adivinhos de estúdio a fustigar o miúdo, quando deviam 'bater' no Lage, no Rui Costa, no Kökçü, que depois da triste figura que fez nunca deveria ter voltado a pisar a relva.

Torna-se fastidioso, eu sei, enumerar as misérias do costume. E, no entanto, cá estamos nós. “É uma questão de respeito por todos os sócios”, disse o Presidente. Eis a frase que repete como um credo vazio. “É minha função, é minha obrigação, respeitar todos os sócios”, acrescentou, num tom de quem cita o próprio obituário. “Não estou aqui com joguinhos nem com rodriguinhos”, serpenteou no vazio. “O que assumi com os sócios foi que antes de começar a próxima época iria anunciar se era candidato ou não. É uma forma de estar na vida e o [meu] foco neste momento é terminar a época da melhor maneira possível.”

Já está. A época terminou. E agora? Irá dar início àquela farsa chamada “reflexão profunda”? Tomara fosse como António Vitorino, assim não se recandidatava. Mas o que está à vista de todos é este adiamento patológico. Esta morrinha em desencalhar. Esta lerdeza de alma. Esperando Outubro.

Um adepto também se cansa. Cansa-se de presidentes e treinadores. Cansa-se de sofrer na relva. E então procura consolo nas modalidades. No Futebol de Salão; permitam-me a heresia sentimental de continuar a chamar-lhe assim: é um nome tão mais nobre, tão mais brilhante, tão mais bem-acabado do que esse “futsal” competente e sem alma. (Sim, eu sei que “Futsal” e “Futebol de Salão” não são tecnicamente a mesma coisa, mas o leitor sabe que nem sempre a rigidez dos nomes transmite com rigor a poesia das coisas.) Foi um baptismo inventado para apequenar o antigo jogo dos ginásios, das salas com palco, espelhos e espaldares, onde se dançava e se discutia, onde se fazia assembleias gerais, récitas, Karaté e concursos de bandas de música moderna.

Isto do futebol é, às vezes, um romance com acção a decorrer em universos paralelos. Quando parece desaparecer do relvado que o viu nascer, vai parar ao taco polido dos salões. Mais precisamente, ao Pavilhão João Rocha, ali à esquerda, antes de chegar ao Estádio de Alvalade, quem vem da António Stromp, mesmo em frente à bomba da BP. É lá que o Sporting põe em cena as suas modalidades e a sua pose triunfante. Mas há certos Domingos em que a soberba verde contrai. Porque quando ganha o Benfica há qualquer coisa de apolíneo. Qualquer coisa que participa da permanência dos elementos.

Como no Domingo passado: um embate que trespassou o tempo comum. Uma disputa selada com a força de um mito, gravada no mármore da memória.

Mas antes deixem-me situar. O último campeonato do Benfica remonta ao Neolítico: 2019. O Sporting tem empilhado canecos numa catadupa que já vai para seis anos. O Benfica perde; e a derrota tornou-se o seu estado natural. Em jargão filosófico chamemos-lhe “ontologia do fiasco”.

Voltemos a Domingo. Era o Jogo 5. “O” jogo. O Benfica sempre atrás no marcador: 1-0, 2-0, 2-1, 2-2, 3-2. Até que Diego Nunes faz o 3-3. E depois, a reviravolta! Um estoiro do meio-campo, do guarda-redes Gugiél; Afonso Jesus, um dos heróis daquela tarde, desvia ao ângulo — instante de suspensão — a bola entra. Uma coisa de Hóquei em Patins. Só à décima repetição se percebe.

E ainda não tinha acabado. O futebol de salão é prodigioso nessa arte de fingir que terminou. E recomeçar. E roçar o abismo. É a adrenalina do pavilhão que, em termos médicos, se traduz numa correlação entre o que ali se joga e a taxa de ataques cardíacos a dar entrada em São José. O Sporting ainda arranjou tempo para três ou quatro lances de empate. Inacreditável. Só visto. Gugiél defendeu um golo certo, mandou uma bola à trave e, até ao último segundo, ainda pairou a hipótese de tragédia. Foi notável. Foi atroz.

O futebol, como as cartas de São Paulo e os ensaios de Chesterton, é rico em paradoxos. Que é quando somos pequenos que somos grandes, já sabíamos — a paráfrase de Saint-Exupéry que está em todos os murais de todos os liceus. Mas que é quando somos menos que somos mais, isso é inédito. Ora foi isso que aconteceu. Cinco foram mais que onze. E um salão maior que um campo aberto.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.