No Universo paira uma pergunta, eternizou El Sayed e daí atalhamos cheios de curiosidade, qual a ideia de Bruno Lage para o seu segundo Benfica? O que a recente subida de forma encarnada clarifica?
Até agora, as respostas são mínimas, muito mais condicionadas às imposições técnicas que o planeamento de Roger Schmidt programou na matriz de 4-2-3-1, que não andará muito longe do 4-4-2 predilecto de Lage, mas cada vez mais com um médio ofensivo na posição de apoio ao último homem.
Lage, que sempre se posicionou como homem de 4-3-3 no seu projecto de formação, preferindo impor futebol de posse com dois interiores construtores, chegou aos séniores do Benfica e operou transformação inimaginável, apoiando-se no talentozão de João Félix como trequartista para operacionalizar num 4-4-2 muito mais directo e focado na transição: resultou bem, tentamos dizer muito calmamente, muito estóicos e cheios de postura, mas com o canto do olho a tremer pela enxurrada de boas memórias.
Chegado a 2024, depois de experimentar outras nuances e modas, sobretudo em Inglaterra – onde aproveitou as bases de Nuno Espírito Santo para desenvolver com linha de cinco atrás – o que irá Lage descortinar para voltar a produzir o mesmo efeito da primeira oportunidade?
Os movimentos e posicionamento de Aursnes são a experiência mais significativa ao cabo de cinco jogos e parece ser ele a peça-chave para a mudança. Deixando de ser um interior esquerdo, pega nas suas coisas e vai aproveitar a mesma capacidade de associação, mas em zona central, procurando muitas vezes a meia direita pelas vicissitudes das preferências de Ángel Di Maria, mais preocupado a explorar da direita para o meio, deixando a ala para o lateral – que não sendo Alexandr Bah, ainda lesionado, é Tomás, que é excelente defesa central, com tudo o que isso implica fisicamente.
Não tendo a desenvoltura física para cavalgar cima e baixo, Aursnes fica liberto para a exploração daquela zona, oásis de espaço e recreação associativa onde pode desempenhar o papel que certo dia se tornou famoso pela inclusão no Football Manager: o Raumdeuter, tarefa imaginada e concretizada por Thomas Muller em Munique e que pode ser traduzida como “investigador de espaço”, que será talvez a mais perfeita descrição de Aursnes como futebolista.
Como o craque alemão, a inteligência do norueguês alia-se à invulgar capacidade de imaginar percursos, descobrir linhas de passe e a melhor maneira para perceber as intenções do colega e o que é preciso fazer para o ajudar. Schmidt percebeu-lhe o dom e por isso o utilizou algumas vezes como avançado. Lage, que inventou o Rafa moderno, penetrador em zona central, possibilitando ao alemão o total aproveitamento das suas qualidades, agradece-lhe agora uma suas ideias mais ousadas – e criticadas – para criar um 9,5 completamente diferente de Félix e pouco visto em Portugal, que como zona futebolística de influência mediterrânica prefere sempre remeter os mais pequenitos e tecnicistas para essa posição, no apoio a um latagão como ponta de lança, que se ocupará das lides corpo a corpo, abrindo os espaços necessários.
Pavlidis-Aursnes, se realmente se desenvolver o futebol benfiquista nesse sentido, realidade criada pelos sinais das primeiras semanas, aponta um novo caminho nas concepções táticas do nosso futebol, sem retirar a importância das duas linhas de quatro e da parelha na frente, tradição benfiquista que Bruno Lage sabe ser simbologia difícil de contrariar. Pode-lhe adicionar outras variantes, mas fugir dela para se refugiar no 4-3-3 será sempre arriscar o confronto com o destino, que castigou Jorge Jesus – que tentou durante uns meses em 2013-14, logo desistindo da ideia para ganhar a tripleta nacional – ou Rui Vitória, quando tentou resgatar o Penta mal iniciado com a inclusão de Krovinovic como segundo organizador ao lado de Pizzi e à frente de Fejsa.
O destino tratou de castigar o atrevimento lesionando o croata pouco depois, e não seria Zivkovic, reinventado na posição, a conseguir levar a coisa avante, desmoronando-se tudo tragicamente num remate de Ander Herrera. Mencionar-se a súbita aventura nos três centrais a reboque do sucesso de Rúben Amorim é justo que seja visto como piada de mau gosto.
Porque é sempre inevitável que o Benfica volte a essa base, sem que isso signifique muito na proposta de futebol jogado, importando mais as dinâmicas que qualquer outra coisa como o alinhamento. Mas desde que Béla Guttmann finalmente extinguiu o arcaico WM, impondo o 4-2-4 de raíz húngara e influência brasileira, empregue pela passagem do Mago por São Paulo no final dos 50 e que concedeu ao Benfica a supremacia tática que possibilitou o domínio internacional da década seguinte, que a realidade nos mostra como os períodos de sucesso encarnado estão sempre dependentes dessa organização em campo, sem que isso represente grande consternação para os mais cépticos e pragmáticos.
O 4-2-4 possibilitou o recuo de Mário Coluna e a introdução de Eusébio como o tal elemento de ligação, e foi assim arrumados que explanaram na plenitude o seu QI futebolístico. No final da década, quando o futebol de outras latitudes se começou a impor no continente, até aí dominado por latinos, chegou o 4-3-3 – e à boleia da fama do sistema do Ajax de Cruyff, o Benfica, com Jimmy Hagan, tentou-o, com invencibilidade nacional, mas pouco fulgor internacional, situação que duraria até à chegada de Sven Goran Eriksson em 1982, campeão da UEFA com o IFK Gotemburgo a alinhar no 4-4-2 britânico, de marcação à zona, bloco coordenado e muito ritmo, que ele próprio descreveu como «uma revolta contra o individualismo». Gostava tanto do sistema que foi esse o tema da sua dissertação. Aprovaram-no com grande louvor, naturalmente.
Toni chegou à final da Taça dos Campeões Europeus em 4-4-2, com Diamantino no papel de fantasista central. No ano seguinte, melhor defesa de sempre do Benfica em termos estatísticos (15 golos sofridos em 38 jornadas de campeonato, Ricardo-Mozer como parelha) na mesma ideia. Quando Eriksson regressa em 1989, outra final da Taça dos Campeões, com Valdo atrás de Magnusson; Toni é campeão em 1994 da mesma maneira, Trappatoni recupera o histórico título na mesma toada. De Jesus e das suas ideias todos se lembrarão, e tudo o que se desenvolveu a partir daí.
Tem a palavra Bruno Lage na construção dum Benfica fiel à sua tradição, ainda que noutros moldes, com ideias diferentes na chegada ao golo. O perfil de Aursnes gritaria, à primeira impressão, tudo menos homem de último terço – ideia contrariada por Roger Schmidt, que cumpriu exemplar caminhada na Liga dos Campeões com ele como ponta esquerda, onde geralmente habitam os mais criativos e descomprometidos.
Aursnes, sendo o contrário, é um perfil quase extraterrestre na Primeira Liga – mas ter alguém tão fiável, tão mecânico e responsável perto da baliza adversária é cada vez mais uma boa ideia. Com Kokcu a fazer jorrar a criatividade de posição mais recuada, a inversão de papéis pode resultar num futebol que sempre se habituou ao destruidor como 6, ao construtor como 8 e ao 10 clássico, fazendo tremer convicções e provocando passo na evolução do jogo.
Que se respeite a tradição do 4-4-2, mas que se procure o futuro na exploração de novas combinações é o melhor desafio que Bruno Lage poderia imaginar. Como tirar o máximo do norueguês, como fazê-lo eventualmente coabitar com a verticalidade de Bah e como poderá isso beneficiar Pavlidis, que continua tímido no momento da finalização e corre contra o tempo na conquista da boa vontade do Terceiro Anel.