A natação é uma modalidade individual, mas não há prova mais individual e solitária do que os 1500 metros livres femininos na última década e meia. Porque certamente nessa prova estará Katie Ledecky e na distância mais longa da natação Ledecky nada, essencialmente, sozinha, contra si própria, os seus próprios tempos e a sua história.

Há dois anos, nos Mundiais de Fukuoka, a norte-americana tocou na parede e esperou 16 segundos até à chegada da 2.ª classificada, a italiana Simona Quadarella. Em 2024, nos Jogos de Paris, só teve de esperar 10 segundos. Mas a solidão no bloco não é necessariamente um problema para a melhor atleta feminina da natação de todos os tempos.

As intermináveis horas de treino tendo apenas como companhia a linha negra do ladrilhado da piscina são oportunidades para melhorar cada detalhe, assume, ainda hoje, tantos anos depois de se tornar lenda. Ledecky, que aos 27 anos é uma veteraníssima das piscinas - principalmente porque nunca deixou de ganhar desde aquele título olímpico de 2012, com 15 anos - abraça essa aparente pasmaceira com a mesma graça e fineza com que revelou em tempos que, na universidade, um dos seus divertimentos noturnos favorito era pintar aguarelas com outros colegas.

“Não acho que seja particularmente monótono isso de andar para trás e para a frente, a girar a cada batimento na parede e a olhar para uma linha negra”, assumiu antes dos Jogos de Paris ao “The New York Times”. Muitos poderão comentar que, de facto, há pancas para tudo.

Mas esta é uma panca notoriamente vitoriosa, não fosse Ledecky dona de 14 medalhas olímpicas, nove delas de ouro, e de impressionantes 22 títulos mundiais em distâncias médias e longas. Ela é a única campeã olímpica dos 1500m, prova colocada no calendário olímpico feminino apenas desde Tóquio 2020, porque com Ledecky a longa maratona tornou-se motivo constante de história e não um tedioso vaivém de atletas.

Lintao Zhang

Os últimos anos têm trazido oposição nos 200, 400 e 800 metros livres, Ariarne Titmus, Summer McIntosh, por exemplo, mas nos 1500 metros não há pai, mãe ou qualquer outro familiar direto ou em 2.º grau para a norte-americana, que não perde uma competição na mais longa das corridas desde que tinha 13 anos. E esta terça-feira conquistou, sem surpresa ou suspiros, o seu sexto título mundial na distância - desde 2013 que só não o ganhou por doença (desistiu antes da final em 2019) ou por não estar presente, como aconteceu há um ano, em Doha.

Ledecky chegou a Singapura após fazer o segundo melhor tempo da história nos 1500m em maio, sete anos após parar o relógio em impressionantes 15:20.48 minutos. Em termos de comparação, antes desta final o melhor tempo na distância de alguém não chamado Katie Ledecky estava nos 15:38.88 minutos, mais 18 segundos que o registo mais estrelar da norte-americana, nadado pela dinamarquesa Lotte Friis, em 2013.

O arranque forte da australiana Lani Pallister, que se manteve perto de Ledecky até aos 600 metros, deu ares de missão suicida, de hara-kiri aquático, mas serviu para puxar a proverbial campeã para tempos constantemente abaixo do parcial para recorde mundial - aos 500 metros, Ledecky nadava três segundos mais rápido do que a marca de referência.

Sarah Stier

Quebrada que foi Pallister, como que recebendo uma involuntária lição por desafiar a rainha - Ledecky, conhecida pela sua humildade, por nunca puxar dos seus incontáveis galões, nunca o faria de propósito ou por despeito -, a meio da prova já Ledecky fazia o seu recital a solo, tão comum, tão normal nestes últimos 13 anos, só a resistência e o atrito da água como rival. A queda do recorde do mundo parecia possível, um feito impressionante, sete anos depois da última vez, uma eternidade na tantas vezes efémera natação.

O nado constante apontava para aí, mas nos últimos 200 metros a linha verde que marca nas transmissões televisivas onde está o recorde começou a fugir-lhe. Já lá longe (a concorrência vem sempre longe) vinha Quadarella, a italiana que tem partilhado a piscina com Ledecky nesta maratona nos últimos anos, pensando certamente no azar que teve ter nascido na mesma era desta extraterrestre.

A italiana chegou cinco segundos depois de Katie Ledecky nadar o quinto tempo mais rápido da história. Ainda assim fez uma prova sublime para os parâmetros dos terráqueos, batendo um antiquíssimo recorde da Europa (o tal de Friis) e tornando-se a nadadora deste planeta mais veloz de sempre nos 1500 metros - porque Ledecky é de uma galáxia à parte, claro. Pallister ainda agarrou o bronze, mesmo pagando a ousadia do início da prova.

Antes das finalistas se atirarem à água para mais uma inevitável vitória de Ledecky, a atleta nascida na capital do seu país tinha 24 dos 25 melhores tempos de sempre nos 1500 metros. O quadro assim se mantém, com Quadarella agora a intrometer-se com o 11.º melhor registo de sempre (15:31,79 minutos), uma pausa numa lista onde lemos Ledecky, Ledecky, Ledecky, Ledecky, sempre Ledecky, constantemente Ledecky, e onde durante muito, mas muito tempo não deixaremos de ler Ledecky, 24 vezes Ledecky.