Na Fórmula 1 do século XXI, poucos se podem arrogar tanto quanto a McLaren de serem história da categoria. Presente no Mundial desde 1966, só a Ferrari tem créditos para mais clamar por bónus de antiguidade do que a equipa fundada e nomeada pelo piloto e neozelandês, Bruce McLaren.
A McLaren é a segunda equipa com mais títulos de construtores (9), a segunda com mais vitórias (189), a segunda com mais pódios (424), a segunda com mais poles (164), sempre atrás da Ferrari, ainda dona e senhora dos principais recordes. A McLaren que venceu seis vezes consecutivas o mais mítico dos grandes prémios, o GP Mónaco, entre os anos 80 e 90, cinco das quais com Ayrton Senna, que ganhou os seus três títulos mundiais ao volante do carro então branco e vermelho da escuderia britânica.
Mas todos os gigantes têm as suas crises.
Depois de várias décadas de sucesso assinalável, fosse nos anos 70 com Emerson Fittipaldi, James Hunt, passando pelos anos 80 com Nikki Lauda, Alain Prost e Ayrton Senna, até ao virar do século com Mika Hakkinen e, por fim, com a aposta no fenómeno Lewis Hamilton, a McLaren manteve-se sempre como um das proverbiais candidatas aos títulos de pilotos e construtores. Mas a segunda década do novo século não foi simpática para a equipa de Woking. O espírito de escuderia grande perdeu-se com a saída de Lewis Hamilton, em 2013, e com o crescimento da Red Bull e da Mercedes, dois novos players que transformaram a guerra dos tronos da Fórmula 1.
Em 2015, a McLaren estava em crise profunda de resultados, mesmo tendo nas suas fileiras dois antigos campeões mundiais, Fernando Alonso e Jenson Button. O motor Honda, que em tempos idos tantas alegrias havia dado à McLaren, nunca foi competitivo e a perda de patrocinadores abriu as portas a uma sangria de recursos financeiros. Em 2015 e 2017, a outrora poderosa McLaren terminou em penúltimo lugar no Mundial de construtores.
Dez anos depois, a McLaren tornou-se de novo relevante. O caminho foi longo e tortuoso, mas em 2024, na última corrida, no GP Abu Dhabi, com a vitória de Lando Norris, a equipa britânica confirmou o título de construtores, algo que não alcançava desde 1998, há 26 anos, quando nem Norris ou Oscar Piastri eram sequer nascidos. O 666 (número de pontos alcançados pela McLaren em 2024) é para muitos o número da besta, mas para a equipa marca o esperado regresso à ribalta.
O duro renascimento
Que, ao longo destes quase 10 anos, nem sempre foi estável. Mas o renascimento da McLaren tem um nome incontornável, o do norte-americano Zak Brown. O antigo piloto tornado homem de negócios chegou à McLaren em 2016, em pleno olho do furacão, depois da saída de Ron Dennis, e com a equipa em situação periclitante, não só a nível competitivo como financeiro. O risco de falência era real, mas Brown conseguiu, desde logo, tornar a McLaren fixe de novo, atraindo um bolo grande de vários patrocinadores em vez do mais ancestral modelo de escolher um grande sponsor que colocasse o seu nome ao lado do da equipa. Uma pedrada no charco na forma de negociar na sempre tradicional Fórmula 1.
Sendo a McLaren uma marca histórica, Zak Brown promoveu-a: voltou o laranja original, que tornou o carro impossível de passar despercebido nos asfaltos da Fórmula 1. O público gostou. A mudança para motores Renault começou a dar os seus frutos em 2019, ano em que a McLaren recrutou Andreas Seidl como team manager e Lando Norris como novo piloto da equipa. A dupla com o mais experiente Carlos Sainz, em plena nova era da série ‘Drive to Survive’, da Netflix, funcionava tanto em pista como fora dela, com o carisma do jovem britânico a torná-lo num dos responsáveis pela transformação do próprio adepto-tipo da Fórmula 1, hoje de uma faixa etária média bem mais baixa do que em décadas passadas.
No final da época de 2019, a McLaren voltou aos pódios, algo que não acontecia desde a primeira corrida de 2014. Carlos Sainz foi 3.º no Brasil e a McLaren terminou a temporada no 4.º lugar dos construtores, com vontade de brigar com Mercedes, Red Bull e Ferrari. A temporada seguinte voltou a ser positiva: apareceram mais pódios e a McLaren foi 3.ª nos construtores, antes de nova mudança crítica, com o regresso aos motores Mercedes.
Já sem Carlos Sainz, contratado pela Ferrari, a nova McLaren cor de papaia voltou às vitórias em 2021, no GP Itália, com Daniel Ricciardo a vencer e Lando Norris a fazer 2.º em Monza. Era o primeiro triunfo da equipa desde 2012. Ainda assim, 2021 e 2022 seriam anos de estagnação para a McLaren.
Zak Brown precisava de fazer algo.
Decisões críticas
O fraco desempenho da McLaren no arranque da temporada de 2023 surpreendeu quem assistia ao paulatino renascimento da equipa. Andrea Stella, com anos e anos de experiência na Ferrari, foi a primeira escolha de Brown para o cargo de team principal, depois da abrupta saída de Seidl. Brown admitiu logo na pré-temporada que a equipa tinha “certos objetivos de desenvolvimento” que não haviam sido “alcançados”. Mas, no seu sempre sonoro e bem norte-americano otimismo, deixou logo o aviso que a McLaren ia chegar a esse estado-ótimo de desenvolvimento.
O que não aconteceu sem vítimas colaterais. Depois de não ter conseguido qualquer ponto nas duas primeiras corridas do ano e de ver a McLaren surpreendentemente como a pior equipa do pelotão, Andrea Stella reformulou toda a estrutura técnica, despedindo o diretor técnico, James Key, e dividindo as áreas de aerodinâmica, performance e design por três novos diretores, com mais colaboração entre elas. A política de terra queimada revelou-se eficaz.
A meio da temporada, com um novo pacote de atualizações para o carro trazido para o GP Áustria, os resultados começaram a aparecer. E de que maneira: nas últimas 13 corridas do ano, Lando Norris conseguiu ser 2.º em sete delas, com Oscar Piastri a lograr também dois pódios. No final do ano, a McLaren inaugurou um novo túnel de vento nas suas instalações futuristas em Woking, no bucólico sul de Inglaterra, infraestrutura decisiva para acelerar o desenvolvimento dos carros de Fórmula 1.
O arranque algo atribulado de temporada voltou a repetir-se em 2024 - a McLaren só foi ao pódio à terceira corrida, na Austrália -, contando ainda com o domínio incontestado de Max Verstappen e o salto de desempenho da Ferrari. Mas a partir do GP Miami, 5.ª corrida do ano, a McLaren voltou novamente, anos e anos depois, a ter o melhor carro da Fórmula 1. Lando Norris conquistou na Flórida a sua primeira vitória, após uma longa espera de cinco anos, e Piastri não esperou muito mais, subindo ao topo do pódio no GP Hungria. Novo pacote de updates para o GP Países Baixos levaram Lando Norris a deixar Max Verstappen a escandalosos 23 segundos no 2.º lugar e o título do neerlandês, alicerçado nas sete vitórias que conquistou nos primeiros 10 grandes prémios do ano, pareceu, por momentos, ameaçado.
O título de pilotos, do qual a McLaren não sente nem o cheiro desde 2008, com Lewis Hamilton, só não foi possível porque Max Verstappen é um extraordinário piloto, que conseguiu na reta final da temporada tirar leite da pedra em que se tornou o Red Bull - a vitória no Brasil, após largar de 17.º, só está ao alcance de um génio - e também porque a McLaren, talvez ainda a sofrer com as dores de crescimento após anos e anos de crise e de se desabituar a ganhar, falhou em momentos decisivos. Desbaratou vitórias por erros de estratégia (GP Canadá e GP Grã-Bretanha) e algumas falhas de Norris, que ainda busca a consistência necessária para ser um verdadeiro candidato ao título.
Mas, entre as equipas, e à falta de desempenho de Sergio Pérez na Red Bull, o destino estava traçado: à 17.ª prova, a McLaren passou para a frente do Mundial e não mais de lá saiu - chegou a ter 115 pontos de atraso para a Red Bull. Em 18 meses, passou da pior equipa da Fórmula 1 para a melhor. O trabalho de formiguinha de Zak Brown, a bater às portas de investidores, a acertar em pilotos e engenheiros para a equipa, dava finalmente resultados e o norte-americano, já de si efusivo, foi o mais festivo no pódio do GP Abu Dhabi.
Em busca do outro título
A McLaren é “como uma criança que está a crescer”, diz Andrea Stella, a quem Zak Brown aponta boa parte dos créditos do sucesso da equipa. “Se vires a criança aos dois meses e depois quando tem um ano vais dizer, ‘epá, cresceu muito’. Mas se a vires todos os dias, podes não reparar nesse crescimento. Mas, na realidade, ela cresceu”, explicou o italiano ao The Athletic, numa metáfora arrojada sobre a sua equipa. Calmo, contido e pouco dado ao show, ao contrário do seu patrão, Stella é o homem atrás das máquinas a quem Brown chama “O Cisne”.
“Parece apenas um tipo porreiro, a passear na água, mas lá debaixo da água está a remar bem rápido. É duro, mas muito profissional e articulado. Não liga a políticas e não tem qualquer ego”, sublinhou o CEO da McLaren, também ao The Athletic, no final da temporada passada.
Fast foward para 2024 e, à Sky Sports, Zak Brown confessou que o GP Abu Dhabi foram as “duas piores horas” da sua vida. Oscar Piastri teve um encontro à margem das leis com Max Verstappen na primeira curva e a responsabilidade de levar o título para as centenas de profissionais que há uma década trabalham no renascimento da McLaren ficou nas mãos de Lando Norris, que liderou do início ao fim. “O Lando foi brilhante, infelizmente aconteceu aquilo ao Oscar no início, mas a equipa foi perfeita. A paragem nas boxes foi incrível e acho que eu era mesmo o único prestes a ter um ataque cardíaco naquelas duas horas”, atirou.
O objetivo no próximo ano é “tentar repetir o título de construtores e ir em busca do título de pilotos”, apontou ainda Brown. “Deixo o Oscar e o Lando discutir esse entre eles.”
Lando Norris é, no papel, o mais experiente dos pilotos da McLaren, mas o jovem australiano Oscar Piastri já mostrou ter mãos e fortaleza mental para ser bem mais do que um sidekick. A vantagem teórica para 2025 parece estar do lado dos carros papaia. Lando, após a última prova do ano, confessou que teve “outras oportunidades” na Fórmula 1, mas que optou por ser paciente e manter-se na McLaren. “Queria muito chegar ao topo com quem me deu a oportunidade de estar na Fórmula 1. Sabíamos que este ano poderia não ser possível, mas estamos muito ansiosos pelo próximo ano, que era, na verdade, o nosso alvo. O facto de sermos campeões este ano é, por isso, um feito ainda maior”. Erguer uma escuderia do fim de linha até à glória deve saber bem melhor.