
A apresentação da corrida que se fez em Paris ficou algures entre um panfleto científico e uma reunião de um criativo departamento de marketing. Faith Kipyegon e a Nike levaram para a capital francesa a tentativa de, pela primeira vez na história, uma mulher correr a milha abaxo dos quatro minutos e não se poupou nos esforços tecnológico-publicitários.
O Breaking4, sugestivo nome da prova em que a queniana de 31 anos deveria aspirar a fazer os 1.609 metros mais rápido do que qualquer outra atleta, transportou a cúpula da Nike de Oregon para Paris. Nas bancadas, havia executivos com camisolas onde se lia "I've got Faith", num jogo de palavras que mostrava fé em Kipyegon. Nas redes sociais, mensagens, provavelmente pensadas por aqueles publicitários, apelavam à ousadia e exemplo de Faith, dando-a como modelo a seguir pelas jovens atletas, público que a multinacional quer agarrar.
Mas o mais importante terá sido a parafernália tecnológica. É quase preciso um curso em física dos corpos para entender a complexidade inovadora dos materiais usados, desde um novo fato aerodinâmico com aeronodes, uma espécie de saliência impressa em 3D, até mangas que cobriam os braços e as pernas com o objetivo de reduzir o atrito e o impacto do vento.
E, claro, Kipyegon calçava uns sapatos exclusivos, que pesavam apenas 85 gramas. Últimos representantes da série de sapatilhas voadoras, possuem, segundo a pormenorizada e elogiosa descrição da Nike, "uma placa de fibra de carbono nas solas e bolsas de ar que proporcionam uma melhor propulsão". Recorde-se que falamos de sapatos de corrida, não de um foguetão.
A estratégia estava há muito a ser delineada. Segundo um estudo científico, acreditava-se que Faith, ouro olímpico no Rio, em Tóquio e em Paris, conseguiria chegar aos 3,59.37 minutos se, além do laboratório que levou a reboque para Paris, fosse ajudada por corredores à frente e atrás, lebres que cortassem o vento e imprimissem ritmo.
Assim foi. As 13 lebres, 11 homens e duas mulheres, fizeram o seu trabalho com a perícia esperada de um grupo que contava com gente como Grant Fisher, recordista dos 5.000 metros indoor. Os ajudantes iam vestidos com roupa diferente da protagonista, que durante quase todo o esforço seguiu no seu casulo de proteção.
Só na parte final é que a queniana se expôs ao vento. Com um evidente esgar de dor, terminou em 4,6.24 minutos. Ainda não foi desta que baixou dos quatro minutos na milha, mas tirou 1,22 segundos ao anterior recorde da distância. Ainda assim, as características laboratoriais deste exercício ditam que a marca não é oficialmente reconhecida pela World Athletics.
A ocasião no Stade Charlety, onde a atleta fixara máximos mundiais nos 1.500 e nos 5.000 metros, foi em tudo semelhante ao que Eliud Kipchoge aplicou quando, em 2019, se tornou o primeiro homem a correr a maratona em menos de duas horas. Na altura, a corrida foi financiada pela INEOS.
Durante a maior parte do exercício de Faith, havia seis atletas à frente da queniana, um ao lado e seis atrás. A tricampeã mundial tinha de fazer voltas abaixo de 60 segundos, o que dava uma velocidade média de cerca de 24 quilómetros por hora.
A filha do Vale do Rift, região que produz fundistas e meio-fundistas como nenhuma outra no planeta, fez a primeira volta em 1.00,20 minutos e, ao passar a segunda volta, ia com 2.00,75 minutos. A terceira volta foi num nível semelhante, ouvindo a sirene a 3.01,84 minutos. No entanto, a dor e o esforço manifestaram-se na volta final, realizada em 65 segundos.
A "destruidora sorridente", como também é conhecida, não pareceu desanimada no final. O tom de comunicação que a Nike impôs não foi de derrota, mas de valorização do recorde do mundo não oficial.
"Esta foi uma primeira tentativa. Levamos lições desta corrida. Voltarei a tentar, ainda há mais no tanque", prometeu a queniana.