
Seria apenas mais um episódio infeliz da deplorável miséria humana que caracteriza André Ventura e Rita Matias, se não se desse o caso de se estar a tornar o dia-a-dia de um Parlamento cada vez mais degradado pela ação dos que têm como objetivo político sério o desrespeito pelas instituições democráticas. Só vale a pena a nossa indignação para travarmos, porque ainda estamos a tempo de o fazer, a indigência moral coletiva para que estes seres nos querem atirar como país.
Começou nas redes sociais, pela voz da triste Rita Matias, continuou na Assembleia da República pela voz de André Ventura, com a muito infeliz concordância de Marcos Perestrello, que presidia aos trabalhos. Ler uma lista de nomes de crianças inscritas numa escola pública para fomentar o ódio aos imigrantes; só não sei se é o mais baixo a que se pode descer, porque tenho quase a certeza de que o Chega chegará ainda mais baixo nesta sua determinação em trazer à superfície toda a indignidade que a natureza humana pode gerar.
Já quase tudo foi dito sobre este episódio. Mas é preciso continuar a dizer. Horrorizou-nos porque são crianças. Porque se usam os seus nomes para que os que estão nas escolas, pais e alunos, os odeiem. Para que se gere um movimento de olhar para pautas de alunos e se procurar o nome que se quer odiar. O Chega, naquele dia, perdeu toda a autoridade moral para dizer que quer proteger crianças, que quer que as escolas sejam espaços seguros, que quer uma escola sem ideologias destruidoras, que quer combater a indisciplina ou o bullying entre pares. O Chega assinou, de forma indelével, o desrespeito por todos os valores do humanismo mais básico. Afirmou-se como o partido que está nos antípodas do cristianismo que diz professar. Pôs-se de fora das igrejas onde posa para fotos, apesar do silêncio de muita dessa Igreja. O Chega representa a violação dos direitos humanos. Não sei se estes dois deputados do Chega não cometeram mais um crime, adicionando ao rol de comportamentos ilegais que coloca uma grande parte dos seus deputados e assessores na lista dos políticos indiciados, acusados ou condenados por crimes. Bem podem dizer que querem limpar Portugal ou que “lugar de ladrão é na prisão”. Eles são o exemplo mais claro de uma lama que suja e de um pé a caminho desse lugar para onde querem enviar todos menos a si próprios.
Como sempre, este ódio vem da sua ignorância profunda. Vem também da sua estratégia constante de divulgar informação falsa, de mentir despudoradamente, de fomentar as campanhas de tik-tok em vez da leitura e da informação. Deverão ter horror a livros, porque abominam a complexidade.
Primeira mentira: nenhum filho de imigrante tira vaga a nenhum filho de outrem. O Despacho Normativo que regula as matrículas na escola pública não estabelece prioridades em função da nacionalidade. É falso, é mentira, como quase tudo o que Chega enuncia.
Segunda mentira: o facto de alguém ter um nome de origem estrangeira não significa que seja estrangeiro. Cristina, Catarina, Sandra, Nicole, Cátia, Hugo, Micael… Rita, Maria, André… apenas alguns exemplos de nomes de origem estrangeira que a dupla Matias/Ventura não leu. Porque não geram a estranheza e o ódio que querem fomentar.
Terceira mentira: o Chega não quer combater a imigração. Já os ouvimos falar dos imigrantes americanos, franceses ou italianos? Já reparámos que deixaram de falar dos brasileiros, porque sabem onde estão os seus apoios evangélicos? O Chega não quer combater a imigração ou regularizá-la. Quer promover o racismo, a islamofobia, a discriminação pela língua, etnia ou religião.
Às mentiras alia-se a ignorância.
Um momento alto da sessão parlamentar foi a cara de estupefação (e até indignação) quando a deputada Isabel Moreira informou Rita Matias que o seu apelido Cid tem origem árabe. Seria cómico se não revelasse tudo o quanto lhe falta de compreensão do mundo. Rita Matias sabe pouco, estuda pouco, nem sobre si própria sabe nada. Vive da superficialidade e, por isso, quere-a para todos os outros.
Desconfio que sei qual a escola a que se referem. Se estiver certo, é uma escola modelo pela inclusão dos alunos falantes de outras línguas, em que a aprendizagem do português acontece, onde a associação de pais integra todas as famílias, onde a coordenação da escola promove que todos aprendam palavras de todas as línguas. Mas a dupla chegana ignora o trabalho admirável desta e de tantas escolas, faltando ao respeito já não apenas às crianças, mas também aos profissionais da educação.
O Chega diz-se pró-vida e quer que “deixem as crianças em paz”. É mentira. O Chega está a promover o ódio a crianças de 3 anos (ouso dizer que preferiam que não tivessem nascido, pelo menos em Portugal), mostrando que querem matar em vida, apesar de se dizerem contra a interrupção da vida de crianças. Dizem que querem que as crianças não sejam doutrinadas, mas querem recusar o acesso à educação de muitas e querem impor às escolas o fim da convivência sadia e do respeito por todos. Querem que estas crianças, cujos nomes leram, não sejam deixadas em paz. Querem o seu fim, figurado ou literal.
É bom que saibamos que a comparação entre este partido e os nazis começa a não ser uma figura de retórica. Foram eles que também publicitaram listas de nomes para que toda a população soubesse quem tinha menos direito a existir.
O Livre produziu uma feliz imagem que diz que “Portugal é de todos os nomes.” As lágrimas de Isabel Mendes Lopes são as de todos os que nos sentimos profundamente incomodados pela miséria moral do Chega, de todos os que pensámos no impacto que aquele momento teve em cada criança e em cada família. Basta um pouco de empatia. Basta pensar o que pensaríamos ao ouvir o nome dos nossos filhos naquele parlamento ou o nome dos filhos dos emigrantes portugueses a ser cuspido com ódio em qualquer parlamento de outro país.
Ao ver e partilhar aquela imagem, lembrei-me de um dos meus livros preferidos de Saramago. “Todos os nomes” é sobre humanismo e identidade. Sobre a desumanização burocrática que condena pessoas a serem apenas um nome num registo, sobre os Estados e os políticos que transformam vida em simples dados administrativos. É, sobretudo, sobre o quanto o procurar a vida por trás de um nome pode trazer significado às nossas próprias vidas.
Isto tudo é o que o Chega não sabe. Que por trás de nomes há vidas. Há pessoas. Há sentimentos. Há uma pessoa única e digna, de uma só raça, a humana, de todos nós. Há, em cada criança daquelas, a mesma vontade de aprender, de ter amigos, de jogar à bola, de subir às árvores, de comer chocolate, de rir, de viver em paz.
Tenhamos todos bem noção do que é o Chega. É feito de gente sem moral e sem escrúpulos. Oportunistas que hoje defendem os que atacarão amanhã, ao sabor das suas conveniências. Hoje, foram os filhos dos imigrantes. Em breve, serão os nossos filhos.
P.S.: Já depois de escrever este texto, Aguiar Branco voltou a legitimar o ódio, confundindo-o com liberdade de expressão. Começo a achar que será, daqui por poucos anos, a nova transferência do PSD para o Chega. Talvez não, quando forem os nomes dos seus familiares a serem usados na boca ignóbil daqueles deputados.